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sábado, 21 de março de 2020

Carlos Magno, rei dos Cristãos

Mort de Roland, na obra Grandes Chroniques de France, ilustrada por Jean Fouquet (1455-1460). Na pintura, Baudouin se lamenta pela morte do príncipe no ataque dos Bascos.

O rei Carlos Magno viveu entre 742 e 814 d.C., período que repartiu a Idade Média na Europa. Para o Cristianismo, foi um espaço entre quase desaparecer no Ocidente e se tornar uma força modeladora do mundo.

ALTA IDADE MÉDIA

A Antiguidade da Europa terminou com a fragmentação de Roma Ocidental. Desde uns 500 a.C. até por volta do séc. 4 d.C., quando abraçou o Cristianismo, Roma cresceu e modelou todas as terras ao redor da Itália. Conquistou toda volta do Mediterrâneo, incluindo as briguentas filiais de Cartago, no norte da África; avançou para o norte até as ilhas Britânicas; dominou a Grécia e atual Turquia. Roma construiu estradas ligando as cidades comerciais, levantou pontes e cidades de pedra esculpida que os Europeus demoraram a reproduzir. Fez alianças entre povos variados e inimigos, todos com reis educados por famílias Romanas, instalou governadores e legiões para impedir guerras e rebeliões, definiu o latim como idioma oficial ou mundial dos governos. Roma tornou-se tão grande que foi preciso ter dois imperadores a fim de governar seu imenso território. Mesmo a China chegou a receber legiões.

O período Romano da Europa terminou com o fortalecimento de impérios rivais. No norte, os Saxões começaram a invadir as ilhas Britânicas, Dinamarca, Germânia, Holanda, norte da França. Ali até se dividiram, formando o povo Franco, que se espalhou pelo norte da Espanha e Portugal. No sul, os Godos aprenderam as lutas a cavalo dos Bérberes na África, tornaram-se guerreiros hábeis e cruzaram o Mediterrâneo para atacar a antiga Roma. Logo surgiu o Islã, um conjunto de califados ligados pela religião e descendência de Maomé, que tomou o Oriente Médio, Egito, juntou-se aos Godos no norte da África e sul da Espanha. Do leste, começaram a chegar as tribos guerreiras de Hunos vindos da China e Rússia, que atacavam as terras agrícolas e tornaram absolutamente necessário viver sob a proteção de grandes muralhas. Nessa época, todo o centro da Europa era ocupada por uma grande floresta, da qual a principal sobrevivente, hoje, é a Floresta Negra, na Alemanha.

Nas cidades Européias margeando os rios e planícies, o que era um grande reino se acabou ao longo de três gerações. As rotas de comércio mudaram. Antes, as caravanas vinham da China para a Índia, seguiram para o Iêmen por barco, dali para a Palestina através do Mar Vermelho, e depois pelo Mediterrâneo até Roma e o sul da Espanha. Até a Inglaterra recebia materiais vindos da Índia e China.

Com o erguimento de Constantinopla e os conflitos por terras no Oeste, as caravanas passaram a terminar na Grécia e toda a Europa empobreceu. Desapareceram as porcelanas, os tecidos finos e as tintas para escrever e pintar. Com a fuga dos Romanos, a cultura dos povos dominados voltou a seu estágio pré-Roma, mas agora com as pessoas vivendo nos escombros das grandes cidades de pedras. Era nas muralhas dessas cidades que elas se protegiam contra ataques dos Hunos, Francos, Godos e Mouros. Era ali que um pequeno reino se protegida dos soldados de outro pequeno reino, pois não havia mais um grande rei para submeter a todos. Sem o latim usado para os inúmeros registros do governo imperial, rarearam e até desapareceram as pessoas com conhecimento da escrita. O nome "Idade das Trevas" é usado hoje, com sentido pejorativo, para uma época sobre a qual simplesmente faltam documentos.

A Alta Idade Média surgiu na Europa com o desaparecimento do governo Romano. Não foi do dia para a noite. Aos poucos, não havia mais legiões guardando as fronteiras, nem impostos a pagar, nem leis de um Imperador. Para o Cristianismo, foi um período de grandes perdas: a Igreja havia se enlaçado com o governo imperial e, sem um, o outro também se quebrou. Ainda havia um papa em Roma, mas nada que forçasse os reinos a segui-lo: os movimentos Cristãos se reduziram a mosteiros e missões enviadas de Roma ou de Constantinopla para evangelizar povos pagãos em reinos pagãos.

Grande parte dos novos reis baseava suas ações nas previsões astronômicas ou divinatórias de magos, que para eles não eram tão diferentes do que foram Samuel e Elias no Velho Testamento. Algumas missões Cristãs, no entanto, como na Irlanda e na Inglaterra, foram promissoras. Em outros locais, as ruínas Romanas e os resquícios de Igrejas deram origem a santos misturando bem os milagres do Novo Testamento com os poderes sobre a Natureza dos deuses pagãos. São Patrício, por exemplo, foi um missionário Irlandês a que se credita o banimento de todas as serpentes da ilha.

MUDANDO O MUNDO MEDIEVAL

Uns 100 anos antes de Carlos Magno nascer, os Francos haviam iniciado sua expansão/centralização. Esse processo começou com o rei Clóvis I (466 - 509 d.C.), conquistador guerreiro de vários pequenos reinos Francos, que aderiu ao Cristianismo no final de sua vida. Os motivos dessa adesão são misteriosos: vários historiadores falam sobre a influência da esposa, que era Cristã. Outros (e acredito estarem certos) falam sobre a possibilidade de, assim, ele contar com o apoio militar dos Cristãos no sul da França, de forma a ter um exército superior ao dos outros reis. Boa parte da atual França havia aderido ao Cristianismo nos tempos de Roma, então o apoio da Igreja, mesmo repartida em abadias e mosteiros, daria a Clóvis uma força com o qual outros reis Francos não contavam.

No Natal de 508 d.C., o rei Clóvis foi batizado Cristão. Como previsto, essa medida logo deu-lhe influência sobre toda a terra entre a Espanha e a Alemanha. Foi uma questão de tempo até estabelecer tratados e se tornar o primeiro imperador desde a queda de Roma.

A linhagem de Clóvis, apesar do sucesso em unir as terras ocidentais, não foi próspera em manter-se no poder. Acabaram por delegar a autoridade sobre suas muitas terras a famílias administradoras que, como os generais de Alexandre, em breve decidiram sentar elas mesmas no trono. O grande golpe aconteceu quando o 1º ministro Pippin o Pequeno solicitou ao papa Zacarias (741 - 752 d.C.), em Roma, que ele apoiasse a tomada do trono Franco. A semelhança do nome com o personagem de Senhor dos Anéis não é casual. Acreditando no retorno da Igreja ao poder imperial, o que de fato estava em curso, o papa deu seu aval para uma nova dinastia na Europa. Assinando documentos forjados de Roma, em troca da Coroa, o novo rei Pippin assumia-se arrendatário de terras que por direito eram de Cristo e, portanto, da Igreja.

UM REI E SEUS ADVERSÁRIOS

Carlos I era filho de Pippin e assumiu um trono Cristão poderoso em 771 d.C., já então sendo famoso como conquistador, após 3 anos repartindo o governo com seu irmão. Além dos reinos Francos e Germânicos menores, que ele anexava continuamente no seu reino "Francia", Carlos tinha como inimigos poderosos os Mouros a oeste, os Lombardos ao sul, os Saxões ao norte e os Eslavos a leste². Alternando entre guerras no sul e no norte, ele acabou conquistando os Lombardos e os anexando a seu reino em 774. Os Saxões, por outro lado, eram ferozes: Carlos I promoveu massacres de milhares de Saxões capturados nas cidades que conquistava. Apesar do banho de sangue, os Saxões jamais se renderam².

Um dos grandes objetivos de Carlos I era muito alinhado com Roma: destruir os cultos não-Cristãos na Europa, que tinham se expandido desde a destruição do Império Ocidental. A maneira de fazê-lo, entretanto, era a conquista militar e não a pregação do Evangelho. Em 772, uma das expedições de Carlos I contra os Saxões destruiu um dos Irminsul, ou árvore sagrada, que conectava o mundo dos deuses e dos homens. Dez anos depois, ao sufocar uma rebelião nas montanhas Süntel, ele perdeu a captura de Widukind, um grande líder Saxão. Como resposta ao fracasso, o rei Franco-lombardo ordenou na cidade de Verden que 4500 prisioneiros fossem decapitados; supostamente os responsáveis pelo levante. Carlos I considerava-se o rei da "Nova Israel" e não faltou ao extermínio de raças rebeldes, como os Amalequitas e Moabitas do Velho Testamento. Muito mais tarde, em 1935, sua decisão quanto ao genocídio seria lembrada pelo Partido Nazista³.

As investidas de Carlos I contra os Mouros também não foram tão afortunadas. Numa delas, até perdeu um de seus generais, e também sobrinho, no episódio que foi "pintado" no mais típico estilo medieval na Canção de Rolando. O enredo desta canção de gesta (narrativa poética de fatos) fala da batalha de Roncesvales (ano de 778). O exército Franco havia ido a Saragoça para intervir numa negociação entre líderes Mouros. Após estabelecer acordos, o exército de Carlos I iniciou seu retorno para Francia. Os Cristãos da região, duvidando da lealdade dos Francos, num ataque súbito, dizimaram sua retaguarda, matando Rolando, sobrinho de Carlos I. Enquanto isso, no Oriente, emissários do rei faziam acordos com o califa de Bagdá, Harum al-Rachid: a idéia de Cruzada contra o Islã não era do tempo se Carlos I. Aparentemente, o rei tratava suas batalhas com os Mouros como negócios e disputas entre governantes, tal como fazia com os demais líderes Francos*.

Contra os Eslavos, Carlos I foi exemplar como candidato a Imperador. Os Eslavos haviam estado sob o comando dos Ávaros, descendentes dos Hunos, desde o séc. 5, mantendo inclusive a capital de Átila, chamada "O Anel", provavelmente perto da cidade de Craiova, na atual Romênia. No séc. 8, entretanto, os Ávaros haviam enfraquecido por suas muitas batalhas perdidas contra Bizâncio. Dessa forma, os Eslavos eram governados por príncipes que duelavam entre si e não mais um grande rei. Incapaz de esmagar seus inimigos, que lutavam muito bem sobre cavalos em meio a montanhas e florestas, Carlos impediu que desenvolvessem agricultura ou caça, sufocando-os pela fome. Em alguns anos, as guerras irromperam entre os príncipes Eslavos e um acordo de paz foi conseguido após a captura do Anel por um dos príncipes de Carlos I e a entrega de 15 carroças de ouro (grande parte tesouros tomados dos Germânicos e Lombardos), em 795. Claro que esse acordo não contou com apoio de todos os príncipes, o que reiniciou as guerras e terminou com a destruição do Anel em 799.

REI DO MUNDO

Em 800 d.C., os nobres de Roma tentaram remover o Papa de sua posição imperial e ele buscou auxílio do grande rei Franco. Carlos I foi convidado a Roma. No Natal daquele ano, o papa Leão III (795-816) o coroou como Carlos Magno, Imperador do Mundo (ou, mais propriamente, da nova Roma Ocidental). Fundava-se, assim, o Sacro Império Romano-germânico. Além da extensão territorial que lembrava a antiga Roma, indo do leste da Turquia até o oeste de Portugal e do sul da Itália até o norte da Alemanha, esse novo reino investia Carlos Magno e seus descendentes do poder concedido "por Cristo" para reger as vidas de todos os homens. O imperador ocupava, assim, a função que fora de Augusto e seus inimigos seriam inimigos de Deus, sua saúde a saúde de todas as terras.

O rei assumiu prontamente seus novos poderes: estabilizou as famílias nobres de suas terras por juramentos de lealdade feitos pessoalmente a ele e em presença do Papa, reorganizou a Igreja promovendo a educação e ordenação oficial do Clero, ordenou a "cristianização" de todos os povos submissos. Boa parte da organização medieval de poderes se desenvolveu a partir de seu reinado, com hierarquias como bispo e abade incorporadas ao governo e religiosos destacados para essas posições políticas.

Além disso, os muitos pequenos principados cercados de muralhas que fazem nosso imaginário sobre a Idade Média mudaram. Reinos foram unidos, os grandes países que formam a Europa atual começaram a ser desenhados. O comércio foi aos poucos restabelecido e engatilharam-se as mudanças tecnológicas (ex. na agricultura e no sistema de trabalho) que caracterizam a Baixa Idade Média. As escolas Carolíngeas, embora direcionadas ao Clero, tornaram-se compiladoras de muitos textos antigos - não necessariamente religiosos - dos quais as únicas cópias atuais vieram desse período.

NOVOS RUMOS PARA A IGREJA

Carlos morreu de causas naturais no ano de 814. Sua última obra foi coroar um dos filhos, Luis o Piedoso, em 813. No entanto, os reis Saxões do norte fortaleceram-se, dando origem aos reinos de Dinamarca, Noruega e Suécia. Eles desenvolveram um poderoso sistema de batalhas, em que hordas diferentes convergiam sobre as mesmas cidades. A partir de 820, os Vikings choveram sobre o norte da França e as ilhas Britânicas, conquistando mesmo Paris e Londres.

O levante dos reinos Francos e Germânicos contra os ataques Vikings deu poder militar a muitos clãs nobres que, após o reinado de Luis, repartiram as terras e fundaram seus próprios reinos. Com sua divisão, os Eslavos, agora Cristãos, gradativamente se aliaram ao Império Bizantino. Eles fortaleceram uma Igreja Oriental que se distanciava de Roma e terminaria por fundar o Catolicismo Ortodoxo, após as Cruzadas.

Os Vikings queriam, mais ainda que ouro, terras aráveis onde plantar e criar animais (a imigração maciça para a Groenlandia - descrita erroneamente como Green Land ou "Terra Verde" - mostra isso). As invasões só acabaram, tanto na França quanto na Inglaterra, com a concessão de territórios a eles. Em ambas as terras, ganharam o nome de Normandos (literalmente, Homens do Norte). A Igreja Ocidental manteve-se, a partir de Carlos Magno, como validadora e responsável pela coroação dos reis Europeus.

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¹ MOUROS: reis/califas Islâmicos, em geral negros, que conquistaram o sul da Espanha (Califado de Córdoba) a partir da atual Mauritânia e Marrocos, no séc. 7. Foram conhecidos por sua riqueza e forte comércio de ouro, além das inovações em criação de cavalos, medicina, astronomia e arquitetura que trouxeram diretamente do mundo Árabe para a Europa. LOMBARDOS: foram um povo nórdico que usava runas para c escrita. Atravessaram a Alemanha no séc. 1 d.C., depois Áustria e foram residir no norte da Itália pelo séc. 6, que estava despovoada depois das guerras entre Roma e os Godos. Eles habitaram as ruínas das cidades romanas, usando os amplos salões sem teto como pastos e os templos como currais. SAXÕES: foram um povo nórdico, mais antigo que os Lombardos e a partir do qual esses vieram. Os Saxões eram famosos por sua escrita em runas, produção de cerveja, fabricação de escudos e barcos resistentes, e uso de pesados machados em batalha. Apesar da defasagem em técnicas agrícolas (comparados aos Romanos), eram grandes navegadores e povoadores de regiões inóspitas, hábeis em estruturar uma hierarquia militar de governo, onde raramente um líder se revelava contra seu senhor. ESLAVOS: os Romanos descreveram esse povo como inicialmente formado de duas tribos, os Scytios e os Sarmatianos, que vieram do Iran e se uniram no centro da Europa. Segundo os historiadores Romanos, eram bárbaros numerosos, capazes de habitar e prosperar mesmo em pântanos e florestas impenetráveis. Lutavam contra as legiões nus e portando machados. No séc. 5, a chegada dos Hunos na Europa fez os Eslavos, nômades, se deslocarem para dentro do território Romano, onde hoje ficam os países do Leste Europeu. Lá, estabeleceram grandes terras agrícolas. Pela proximidade com Bizâncio, os Eslavos acabaram adotando o Cristianismo Ortodoxo.

² Os Saxões aparecem na História como guerreiros por natureza. De fato, na Cosmogonia deles, a única forma de ascender a terra dos deuses era morrendo em batalha. Acredita-se que as estórias sobre Arthur, na Inglaterra, sejam na verdade reflexos de um líder pós-romano combatendo contra a invasão dos Saxões em sua ilha. Mais tardiamente, após Carlos Magno, os Saxões reaparecem sob o nome de piratas Vikings que trouxeram terror as ilhas Britânicas e ao norte da França.

³ Os Nazistas eram muito orgulhosos de seu poderio de conquista. Eles acreditavam na superioridade genética de uma raça com grande estatura, pele clara e olhos verdes, a qual emendavam inteligência maior. Traçavam mesmo uma descendência entre os governos que unificaram toda a Europa sob um único trono: Roma (1º Reich ou Reino), Carlos Magno (2º Reich) e a Alemanha Nazista (3º Reich). Felizmente, a vitória dos Aliados (França, Inglaterra e EUA) e Soviéticos na 2ª Guerra impediu a criação do sonhado 3º Reich.

* A Canção de Rolando foi escrita pelo menos uns 200 anos após os fatos que narra. Excetuando-se alguns nomes próprios e de lugares e o malogro da expedição, tudo o mais é fictício. Ela traz um Carlos I Imperador do Mundo (esse título ele só ganharia uns 20 anos após Roncesvales), Francos e Mouros conversando sem problemas linguísticos, comandando exércitos com armas que ainda não existiam, os Francos lutando contra os Mouros com a obstinação de destruir inimigos de Deus, nas Cruzadas.

Entre os sertanejos do Nordeste Brasileiro, é curiosa a menção aos heróis de Roncesvales, lembrança que os Portugueses trouxeram para cá. E que aqui ficou como cultura popular, tendo desaparecido mesmo na França. Há um distrito denominado Roldão, no município de Morada Nova, Ceará. Os soldados da escolta pessoal do falso monge José Maria, da guerra do Contestado (1912-1914), eram “Os doze pares de França” (exatamente assim se chamavam os cavaleiros de Rolando, enviados com ele por Carlos I), embora no Contestado fossem 24 homens, e não 12 como os originais. Seu líder, não podia se chamar menos que Roldão. Na festa da Cavalhada de Maceió, representação de uma batalha medieval, o Partido do Encarnado é chefiado por Roldão, o Partido Azul por Oliveiros (na época de Roncesvales, Portugal era território Franco, em guerra contra o sul da Espanha, que era Mouro).

Acredita-se que a história do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França nos chegou de Lisboa no séc. 18, traduzida por Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor do Algarve, que fez releituras de várias obras do séc. 16 como "Orlando enamorado", "Orlando furioso" e "História del Emperador Carlomagno y de los Doce Pares de Francia e de la cruda batalla que hubo Oliverios con Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del Almirante Balan". A forma definitiva dessas estórias, semelhantes à lenda de Arthur, foi alcançada no séc. 19, quando virou a fonte principal das cantorias e cordéis nordestinos.

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BORDADOS NA TAPEÇARIA ANTIGA

Avars - wikipédia
Avar-Khaganate - wikipédia
Charlemagne - Religious reform, Enciclopedia Britannica, britannica.com
Clovis I - wikipédia
Irminsul - wikipédia
Lombards - wikipédia
Mark JJ, Charlemagne, Ancient History Encyclopedia, 2019
Marton F, Saiba quem foi St. Patrick e por que ele ganhou uma data comemorativa, Aventuras na História, 2019
Morris C, Charlemagne and the Avars, Historical Tales vol. 6, 1893
Sarmatian people, Enciclopedia Britannica, britannica.com
Slavs - wikipédia

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Congo 1900 - a lembrança de uma barbárie que os livros apagaram

Vítimas do Estado Livre do Congo e os ingleses que denunciaram Leopold II. Estas não são as piores imagens da época, que incluem soldados belgas enforcando crianças e pais chorando ao lado de partes dos seus filhos esquartejados.

Muitos experimentos antropológicos e psicológicos feitos no pós-2ª Guerra mostraram como pessoas comuns, educadas segundo os valores tradicionais de cultura e religião, podiam ser levadas a reproduzir as crueldades perpetradas contra os Judeus se estivessem imersas no ambiente adequado. Especialmente com os facilitadores e pressionadores sociais voltados para que tais atrocidades fossem premiadas e a hesitação ao fazê-las, punida.

Estamos novamente em tempos nos quais a Igreja brasileira (e não só aqui) se volta para favorecer uma organização de cima para baixo, hierárquica, quase militar de atuação. Por isso, tendo passado recentemente talvez um dos últimos feriados da Consciência Negra, trago aqui o lembrete de uma atuação particularmente nefasta de homens brancos e negros, guiados por essa frutífera organização vertical de poder, sobre uma região particularmente castigada da raça humana, o Congo. Como a nossa Educação despreza por completo a África e o Oriente Médio, provavelmente você jamais ouviu falar da terrível história do Congo. Talvez nem sequer saiba onde fica essa região e as almas que vivem lá. Geograficamente, trata-se de uma grande planície da África Ocidental bem na mesma latitude que o estado do Amapá, ao redor do rio Congo, onde hoje se encontram a República Democrática do Congo, o Congo, República Centro-africana e Guiné. Historicamente, ali floresceram os povos negros Kongo e Hausa na antiguidade, os 1os colonizados por Portugal e os últimos pelo Islã, que chegou através das caravanas do Saara e pelos Malí.

No séc. 16, o reino Kongo era bem pouco urbanizado, em comparação com outros reinos da África Ocidental. Havia uma capital na margem sul do rio, muitos quilômetros acima do litoral, com cerca de 100 mil habitantes e fartas áreas agrícolas ao redor. O rei (Manikongo) Nzinga foi levado a conhecer Portugal e retornou chamando-se João I, convertido ao Cristianismo Católico e junto com vários religiosos. Ele e seu sucessor, Afonso I, criaram uma versão sincrética do Catolicismo misturado à religião animista tradicional (resultando algo parecido com a Umbanda brasileira e a Santeria caribeña). Havia terrenos sagrados, como o cemitério dos reis, e a palavra para Bíblia era nkanda ukisi, algo como livro-amuleto. Essa religião (os grupos se auto-denominam Católicos, apesar da vertente afro) permanece muito disseminada no Congo até hoje.

Longe da capital, a população do Congo estava organizada em aldeias agrícolas de uma centena de pessoas próximas aos afluentes do grande rio. Os missionários Católicos e Protestantes contribuíram na interiorização da região pelos europeus a partir de 1850; as missões, além de evangelistas, abriram caminho para as empresas colonizadoras estabelecerem postos comerciais. Longe de serem postos de desenvolvimento, tais instalações direcionavam os produtos extrativistas (marfins, como se isso significasse fazer uma colheita) para os portos no Atlântico em troca de pagamentos mínimos à população ou, ainda, apenas ao governante local, muitos estabelecidos à força de armas pelos colonizadores. Graças a uma miríade de tratos comerciais, de empobrecimento de algumas nações e enriquecimento de outras, ao final do séc. 19 o Congo era habitado por cerca de 20 milhões de pessoas, metade delas Cristãos, repartido entre a Bélgica e a Inglaterra.

A DENÚNCIA

Foi Joseph Conrad, o escritor inglês e aventureiro, quem primeiro descreveu as condições de ocupação do Congo em 1889, quando esteve na África. Seu famoso livro Heart of Darkness (O Coração das Trevas) refletia as próprias experiências. Tendo navegado para o interior do Congo em um barco a vapor, ele ouviu pessoas e testemunhou abominações que chocaram a Europa. Ele descreveu como até mesmo as mentes mais bem intencionadas, encapsuladas na figura fictícia do agente de marfim Kurtz, poderiam afundar nas profundezas da depravação, insanidade e maldade, ante a disponibilidade de riquezas e ausência de restrições morais. E estamos falando aqui de europeus Cristãos, que aprenderam sobre “amai-vos uns aos outros”...

Na década de 1880, dezenas de europeus aventureiros ou com apetite por riqueza rápidas desembarcaram no Congo em resposta ao chamado colonial de "civilizar e desenvolver”. Isso literalmente significava participar de uma empresa de comércio ou posto do governo cuja principal obra era extrair o máximo de marfim possível (quem precisa dos elefantes que Deus criou?). Havia uma pressão enorme, desde o rei belga Leopold II até o gerente mais humilde, para obter esse marfim a qualquer custo. Além disso, disputavam espaço a noção de que os africanos deviam conhecer a Cristo e a noção de que simplesmente não eram humanos, e portanto não valiam mais do que a caça. Enquanto na América os escravos eram chicoteados até certo ponto para que não morressem, pois eram caros, no Congo esses “animais” eram gratuitos, disponíveis aos montes em cada aldeia.

A fartura de marfim no Congo e a disponibilidade de escravos para coletá-lo logo fizeram a região ganhar notório interesse da coroa Belga. Ao invés de estabelecer o Congo como uma colônia tradicional, o rei Leopold II usou de todas as artimanhas legais para propagandear a necessidade iminente de desenvolver e cristianizar a região, trazendo-a para a luz da civilização, para o que precisava ter o Congo como sua propriedade particular, sem interferência do Estado. Sua petição foi baseada na expedição de Henry Morton Stanley, famoso por ter encontrado o missionário Britânico David Livingstone em 1871 (descrito em seu livro “Through the Dark Continent”). Não conseguindo atrair o interesse Britânico para a região do Congo, Stanley começou a trabalhar para o rei Leopold, organizando a construção de uma estrada. Enquanto percorria as aldeias, Stanley estabeleceu tratados com os chefes locais onde nenhum deles tinham idéia de que assinando um papel estavam transferindo suas terras ao rei Belga. Na Conferência de Berlim em 1885, Leopold II apresentou seu planos de banir o tráfico de escravos na região, combatendo mercadores árabes do Zanzibar como Hamad bin Muhammad bin Juma bin Rajab el Murjeb (conhecido por Tippu Tip). As reivindicações e documentos trazidos pelo rei Belga foram tidas em grande honra e uma pequena parte da região ficou sob administração conjunta dos parlamentos Inglês e Belga, enquanto a maior parte das terras foi atribuída ao rei como seu direito privado, o que ficou conhecido como Estado Livre do Congo. Mas as alegações de Leopold II não podiam ser mais falsas...

BORRACHA

A descoberta de látex no Congo mudou todo o curso da história.. Conrad retrata o que viu em Heart of Darkness quando seu protagonista, Marlow, descreve a chegada de alguns infelizes que haviam trabalhado até a morte e foram abandonados, como se fossem animais dispensáveis.

Formas negras agachadas ou deitadas, sentadas entre as árvores, encostadas nos troncos, agarradas à terra, meio que saindo, meio apagadas na penumbra, em todas as atitudes de dor, abandono e desespero... Estavam morrendo lentamente - era muito claro. Eles não eram inimigos, não eram criminosos, não eram nada terreno agora - nada além de sombras negras de doença e fome, confusos na escuridão esverdeada. Trazidos de todos os recessos da costa em toda a legalidade dos contratos, perdidos em ambientes incontestáveis, alimentados com comida desconhecida, eles adoeceram, tornaram-se ineficientes, e então foram autorizados a rastejar para longe e descansar para sempre…” (Conrad J, Heart of Darkness)

Esses primeiros rumores da máquina de exploração do rei Leopold II não eram nada comparados com o que viria a seguir. Apesar dos esforços da administração colonial para aumentar a produção, os lucros do comércio de marfim não conseguiam acompanhar os custos de urbanizar a Bélgica com obras portentosas. Leopold, cada vez mais desesperado à medida que as dívidas se acumulavam, teria que encontrar outra maneira de garantir sua fortuna. A inocente criação, por volta de 1888, do primeiro pneu inflável pelo inventor escocês John Boyd Dunlop (então usado somente em bicicletas) sem querer deu um passo gigantesco rumo à industrialização do transporte. O próprio Dunlop começou a fabricar pneus em 1890, sendo seguido por uma legião de empreendedores.

As vendas de látex decolaram. Quase da noite para o dia, a borracha bruta tinha a lucratividade do ouro e vários países no mundo se dedicaram a sua produção. Brasil, Indonésia e o Congo despontaram entre os grandes produtores de borracha para a indústria européia. Diferentemente das árvores seringueiras que eram plantadas em todo entorno da Amazônia no Brasil, a borracha do Congo vinha de videiras ou trepadeiras nativas (Landolphia owariensis gentilii), espalhadas por toda a mata da região. Retirar o látex geralmente significava rasgar a planta com uma faca. E o lucro fabuloso que o mercado de borracha oferecia (algo da ordem de 10 000%) dependia basicamente da colheita dessas trepadeiras e de levá-las ao mercado em quantidade máxima, com a máxima rapidez e eficiência. Por isso foram feitos acordos com companhias de exploração, distribuídas concessões territoriais e facilitada a criação de uma força de trabalho massiva. Essas companhias eram projetadas para levar os congoleses a produzir borracha implacavelmente, num período que ficaria conhecido como o "Terror da Borracha".

ABIR

A história de apenas uma dessas empresas já lança muita luz sobre a natureza do empreendimento. A Anglo Belgian India Rubber (Empresa Anglo-Belga de Borracha da Índia, ou ABIR), foi criada em 1882 pelo coronel britânico John Thomas North, que fez uma fortuna especular extraindo salitre no Chile. Ele reuniu investimentos Ingleses e Belgas, recebendo de Leopold II a concessão exclusiva de exploração no norte do Congo em 1892. Essa exploração era feita taxando os habitantes como num sistema feudal, isto é, cada aldeia e cada pessoa devia entregar semanalmente uma quantidade de látex à empresa colonial, pelo direito de habitar as terras que anteriormente eram dos seus ancestrais. Mas sair da terras também não era uma opção.. O sistema de coleta da borracha girava em torno dos “postos de desenvolvimento” ao longo dos dois principais rios da concessão. Cada posto era comandado por um agente europeu e tinha guarnições armadas para impor pagamentos e punir os rebeldes.

A ABIR aproveitou bem o “boom” do preço do látex no final da década de 1890, vendendo 1 Kg de borracha na Europa por até 10 francos, o que lhes custara apenas 1,35 francos para coletar e transportar. Esse dinheiro, ainda, eram os gastos em munição dos agentes, não o que era pago aos congoleses. Estes eram ameaçados com prisão, flagelação e outras punições corporais. Como a coleta destruía as trepadeiras de onde o látex era extraído, o processo de extração fazia elas se tornarem cada vez mais escassas e, em 1904, os lucros começaram a cair. Durante o início do século XX, a fome e a “doença do sono” se espalharam pela concessão, um desastre considerado “natural”. Os anos 1900 viram revoltas generalizadas contra o domínio de ABIR e tentativas de migração em massa para o Congo Francês ou para o sul. Esses eventos normalmente resultavam em a ABIR mobilizar um exército para “restaurar a ordem”.

Esse exército eram 50-100 “sentinelas armadas” por posto, na maioria das vezes unidades da Force Publique de Leopold II, mas também poderia significar ex-escravos, ex-prisioneiros ou aldeões locais mais egoístas, ansiosos por serem elevado ao status de "policiais" (recusar o recrutamento era punido com a morte). Esses Askaris ou recrutas andavam armados com fuzis e chicotes, sendo regularmente enviados pela ABIR contra as aldeias para disciplinar e punir. Homens, mulheres e crianças deviam se esforçar até a morte para conseguir a cota de látex exigida, abandonando plantações e a própria alimentação, pelo que apenas o líder da aldeia recebia, quando muito, algumas quinquilharias.

ATROCIDADES

Ao contrário da obra de Joseph Conrad, no Congo de 1900 não havia apenas um “Kurtz” descontrolado em sua ambição, mas havia muitos “Kurtz's” em altos postos da ABIR e também na Force Publique. Mais recentemente, outro livro que abordou essa tragédia humana foi “The King Leopold’s Ghost” (O Fantasma do Rei Leopold), de Adam Hochschild, um historiador que decifrou Kurtz como possivelmente um Belga de nome Leon Rom. Este era um um rapaz de pouca instrução que se juntou ao exército com 16 anos em 1880 e, aos 25, estava servindo no Congo, em busca de aventuras. Ele tornou-se comissário de distrito em Matadi e mais tarde foi encarregado das tropas Askari. A brutalidade de Rom não conheceu limites. Era tal que até os brancos servindo junto a ele ficaram chocados.

"Quando Rom era chefe de estação em Stanley Falls", revela Hochshild, "o governador-geral enviou um relatório a Bruxelas sobre alguns agentes reputados por ter matado massas de pessoas por razões mesquinhas". Ele menciona o notório canteiro de flores de Rom, enfeitado com cabeças humanas, e acrescenta: "Ele mantém uma forca permanentemente erguida em frente à estação".

Enquanto o sistema feudal se estendia pelo Congo como uma praga, a resistência naturalmente aumentava. Muitos congoleses fugiam para dentro das florestas ou através das fronteiras, alguns até contra-atacando, outros arrancando as trepadeiras de onde vinha o látex. Para enfrentar essa resistência, os agentes da ABIR simplesmente aumentaram suas crueldades na forma de ataques punitivos em aldeias. Foram feitos muitos massacres para servir de exemplo a outras aldeias. Os congoleses capturados eram chicoteados, espancados e mutilados, especialmente as mulheres e crianças, pois os homens eram mão de obra necessária à colheita do látex.

Como o Congo oferecia muita caça, especialmente aos mercadores de pele e marfim, Leopold II criou uma legislação que dava poder de matar aos oficiais que soubessem do desperdício de balas. Desperdiçar balas significava atirar em animais, não em seres humanos: o Congo recebia, mensalmente, carregamentos fartos de munição. Para cada cartucho disparado, os soldados da Force Publique deviam entregar a mão direita do homem que tivessem matado, como prova de que fizeram “bom uso” da munição. Mas ao invés de coibir a caça “ilegal”, qualquer soldado que atirasse em um animal passou a simplesmente decepar a mão direita do primeiro aldeão que encontrasse. Estabeleceu-se, até, um comércio de cestos cheios de mãos humanas recolhidas pelos Askari e usadas como moeda de troca por marfins e peles. Embora os livros de história não contem, essa prática de decepar mãos também foi usada por Cristóvão Colombo na ilha caribenha de Hispaniola (Haiti+ República Dominicana), onde ele e seus oficiais massacraram o povo nativo Taino para cumprissem suas pesadas cotas de ouro e algodão.

Mas voltemos a um exemplo mais detalhado de como outro "Kurtz", o comissário distrital Leon Fievez, reforçou o Terror da Borracha no Congo, novamente citando o livro de Hochshild. Um padre católico que registrou histórias orais meio século depois cita um homem, Tswambe, falando de um oficial do estado particularmente odiado chamado Fievez, que aterrorizou um distrito ao longo do rio 300 Km ao norte de Stanley Pool:

Todos os negros viram este homem como o diabo... De todos os corpos mortos no campo, você tinha que cortar as mãos. Ele queria ver o número de mãos cortadas por cada soldado, que tinha que trazê-las em cestas... Uma vila que se recusasse a fornecer borracha seria completamente limpa. Quando jovem, eu vi o soldado Molili [de Fievez], então guardando a aldeia de Boyeka, pegar uma rede grande de pesca, colocar 10 homens presos nela, amarrar em grandes pedras e jogar no rio. A borracha causou tormentos; é por isso que não queremos mais ouvir o seu nome. Soldados fizeram homens jovens matarem ou estuprarem suas próprias mães e irmãs.

Um oficial da Force Publique que passou pelo posto de Fievez em 1894 cita o próprio Fievez descrevendo o que ele fez quando as aldeias vizinhas não conseguiram abastecer suas tropas com o peixe e a mandioca que ele havia exigido: “Eu fiz guerra contra eles. Um exemplo foi o suficiente. Uma centena de cabeças foi cortada, e desde então há muitos suprimentos na estação. Meu objetivo é basicamente humanitário. Eu matei cem pessoas... mas isso permitiu que outras quinhentas pessoas vivessem.

Reparemos, como Cristãos, que esse modo de pensar de Fievez é pior do que a concupiscência ou lascividade bíblica. É se perdoar o mal pela simples possibilidade de fazer mais mal ainda. Está registrado que esse auto-descrito "humanitário" Fievez, "matou cerca de 1.300 congoleses, queimou 162 aldeias, cortou plantações e destruiu hortas - levando indiretamente a inúmeras outras mortes pela fome". O incentivo para os congoleses desafiarem a floresta em busca de látex não eram os pequenos pagamentos, mas o medo da punição. Se um homem não cumprisse sua cota, sua família poderia ser tomada como refém pela ABIR. Se a aldeia não cumpresse sua cota, o chefe seria preso. Em julho de 1902, um dos registros apontava que havia 44 chefes de aldeias nas prisões de Bongandanga e Mompono. Um documento semelhante, de 1899, revelava as condições das mesmas prisões: de 3 a 10 prisioneiros morriam nelas, todos os dias.

Os congoleses que resistissem às imposições da ABIR eram levados para campos de trabalhos forçados. Havia pelo menos três desses campos, um em Lireko, um no alto rio Maringa e um no alto rio Lopori. Além do encarceramento, havia seções de até 200 chicotadas. Quando os coletores de látex desapareciam nas matas, mulheres e crianças da comunidade seriam mantidas como reféns até que voltassem. Se não voltavam, elas eram transportadas para a costa e vendidas. Um missionário sueco descreveu ver “um grupo de 700 mulheres acorrentadas e transportadas”, a caminho de serem vendidas como escravas.O notável relato do cônsul britânico Roger Casement, que abriu caminho para as intervenções humanitárias no Congo, descreveu a passagem de um oficial belga pelo rio:

... chegaram em canoas em uma aldeia, ... Eles atacaram os nativos até conseguirem apoderar-se de suas mulheres; essas mulheres foram mantidas como reféns até que o chefe do distrito trouxe o número exigido de quilos de borracha. Tendo a borracha sido trazida, as mulheres foram vendidas de volta a seus homens por um par de cabras cada uma, e assim ele continuou de aldeia em aldeia até que a quantidade necessária de borracha fosse coletada.

Desnecessário dizer que muitas dessas esposas presas foram estupradas e abusadas pelos guardas, conforme documentado por missionários e outros durante o Terror de Borracha. Assim, a humilhação sexual foi acumulada sobre as mutilações, morte sem fim e a vasta injustiça contra os nativos do Estado Livre do Congo. O Terror só diminuiu quando metade da população havia sido dizimada pela fome, “doença do sono” (parente mais agressiva da nossa “doença de Chagas”), e as barbaridades praticadas pelo sistema de Leopold II. Entre os sobreviventes, um sem número de pessoas mutiladas e violentadas. A partir da denúncia feita pelo cônsul britânico Roger Casement em 1904, iniciou-se um movimento internacional de direitos humanos para retirar a posse do território de Leopold II e entregá-la ao parlamento Belga.

Nas palavras de Roger Casement:

Na aldeias S., depois que a confiança em nós foi restaurada e os fugitivos começaram a sair da floresta onde eles haviam se escondido, eu vi mulheres carregando seus bebês, seus utensílios domésticos, e até a comida que haviam arrebatado às pressas. Quando me aproximava, elas disseram, sorrindo: ‘Nós pensamos que você era Bula Matadi’ (isto é, "homens do governo"). Um medo desse tipo era anteriormente desconhecido no Alto Congo; há muitos anos, o povo vinha de todos os lados para saudar um estranho branco. Mas hoje a aparição de um barco a vapor era o sinal para fugirem.

Dois casos chegaram ao meu conhecimento quando eu estava no lago. Um homem jovem, cujas duas mãos haviam sido cortadas com as lâminas dos fuzis contra uma árvore, o outro, um garoto de 11 ou 12 anos de idade, cuja mão direita fora decepada no pulso. Esse garoto descreveu as circunstâncias de sua mutilação e, em resposta a minha pergunta, disse que, embora ferido, ele estava perfeitamente consciente quando arrancaram-lhe a mão, mas fingiu estar morto porque temia que, se se movesse, o matariam. Em ambos os casos, os soldados do governo [Askaris] estavam acompanhados por oficiais brancos cujos nomes foram dados a mim. De 6 nativos (um menina, três meninos, um jovem e uma velha) que haviam sido mutilados dessa maneira durante o regime de borracha, todos, exceto um, estavam mortos quando voltei ao lugar tempos depois. A velha tinha morrido no começo deste ano e sua sobrinha me contou como se dera sua mutilação.

As multas infligidas às aldeias por delitos insignificantes eram assustadoras: o oficial impusera como punição uma multa de 55.000 barras de latão (2.750 francos ou 110 libras). Essa quantia eles tinham sido forçados a pagar e, como não tinham meio de levantar uma soma tão grande, foram obrigados a vender seus filhos e suas esposas. Não vi nenhum tipo de criação de animais na aldeia W. - salvo pouquíssimas aves - possivelmente uma dúzia - e parecia, de fato, como essas pessoas afirmavam, que tivessem grande dificuldade em garantir seus suprimentos. Um pai e uma mãe saíram e disseram que tinham sido forçados a vender seu filho, um garotinho chamado F., por mil barras de latão, para cobrir sua parte na multa. Uma viúva veio e declarou que tinha sido obrigada, a fim de cumprir sua parte na multa, a vender sua filha G., uma menininha que, segundo sua descrição, julgava ter 10 anos de idade.

Isso foi o que um deles me relatou. ‘Costumava demorar dez dias para encher as vinte cestas de borracha necessárias - estávamos sempre na floresta e, quando nos atrasávamos, éramos mortos. Tínhamos que ir cada vez mais longe na floresta para encontrar as trepadeiras, ficávamos sem comida e nossas mulheres tinham que abandonar os campos e os jardins. Então nós passamos fome. Os leopardos da floresta mataram alguns de nós quando estávamos trabalhando, outros se perderam ou morreram de fome. Imploramos aos homens brancos que nos deixassem em paz, dizendo que não conseguiríamos mais borracha, mas os eles e seus soldados disseram: ‘Vocês são apenas bestas; você é nyama (carne).’ Nós tentamos, sempre indo mais longe na floresta, e quando nós falhávamos e havia pouca borracha, os soldados vinham para nossas cidades e nos matavam. Muitos foram baleados, alguns tiveram suas orelhas cortadas; outros foram amarrados pelos pescoços e levados embora. Os homens brancos nos postos às vezes não sabiam das coisas ruins que os soldados faziam a nós, mas eram eles que enviavam os soldados para nos punir.’

Embora as repercussões do relato de Roger Casement tenham sido imensas, houve um movimento do governo Britânico (sem falar do governo Belga) para silenciá-lo. Após os desenvolvimentos que terminaram com a retirada da posse de Leopold II sobre o Congo, o cônsul Casement foi afastado de suas funções e até incriminado como traidor da coroa. Apesar disso, aliados seus fizeram questão de incluir partes do relato de Casement em obras literárias, para que suas palavras chegassem ao público. Um desses divulgadores, amigo pessoal de Casement, foi o célebre Sir. Arthur Conan Doyle, autor das popularíssimas obras sobre o detetive Sherlock Holmes. Uma parte significativa do documento de Casement foi copiado na íntegra em seu livro “The Crime of the Congo”, em 1909, de forma a alarmar toda a população européia que falasse inglês sobre o que estava acontecendo na África. Doyle ainda frisava a falta de atuação da Igreja contra os massacres da população africana:

A organização da Igreja Católica é mais disciplinada e menos individualista que os órgãos religiosos defensores de direitos no Congo. Os sacerdotes estavam, sem dúvida, tão horrorizados quanto todos os outros, mas os meios de expressão lhes eram negados. M. Colfs, ele próprio Católico, disse na Câmara Belga: ‘Nossos missionários têm menos liberdade do que os missionários estrangeiros. Eles são ordenados a manter silêncio .... Há uma mordaça colocada na boca dos missionários Belgas’".

Deve-se admitir que a Igreja Católica Romana, como um corpo organizado, não levantou a voz na questão do Congo. ... Falamos com orgulho daquela igreja que, nos dias sombrios da história do homem, era a força que permanecia entre o opressor e o oprimido. Esta nobre tradição foi tristemente esquecida no Congo, onde as missões têm, como eu entendo, feito excelente trabalho, mas onde o poder da Igreja nunca foi invocado contra as barbaridades do Estado. Os principais estabelecimentos Católicos estão rio [Congo] abaixo e longe das zonas de borracha. … mais que uma disputa entre credos rivais, há realmente uma disputa entre humanidade e civilização de um lado e cruel ganância do outro.

Leopold II conseguiu silenciar os missionários católicos Belgas. Boatos circulavam para desacreditá-los como se fossem dissidentes da Igreja; editores foram subornados; críticos foram acusados ​​de realizar campanhas secretas para promover as ambições coloniais de outros países. Até mesmo os relatos de missionários como William Henry Sheppard foram rejeitados como tentativas dos Protestantes para difamar os padres Católicos. Por pelo menos uma década, as críticas ao Estado Livre do Congo foram contidas.

Mas devido ao sistema extrativista e matança da mão de obra, as exportações de borracha continuaram a cair após 1900 e as rebeliões aumentaram, resultando no Estado Livre assumindo o controle da concessão de território da ABIR em 1906. A empresa continuou a receber uma parte dos lucros das exportações de borracha e em 1911 foi refundada como uma empresa de plantação de seringueira (no entanto, não se registra a real agricultura dessas trepadeiras, no Congo). A história posterior da empresa é desconhecida, mas ainda estava ativa em 1926.

EPÍLOGO

O Estado Livre do Congo existiu entre 1885 e 1908, quando seu território foi anexado à região controlada pelo parlamento Belga. Nesse período, estima-se que 10 milhões de pessoas tenham morrido assassinadas, por fome ou contágio de doenças. Após a publicação de Heart of Darkness, Edmund Dene Morel, jornalista inglês e chefe de comércio com o Congo numa empresa de navegação, publicou que os navios trazendo borracha do Congo só retornavam para lá carregados com armas e munição. Morel nutria-se dos relatos, documentos e fotografias fornecidos por missionários Protestantes no Congo e tornou-se uma espécie de inimigo público do rei Leopold. Ele abandonou o cargo na navegação e fundou sua própria revista - The West African Mail - onde difundia documentos roubados da ABIR e críticas severas ao rei Belga. Assim fez com que as notícias sobre as atrocidades no Congo corressem não só por toda Europa, mas também chegassem aos jornais estadounidenses. Diante da difamação da Bélgica, o parlamento começou a organizar a retirada das terras africanas sob posse do rei. Mais tarde, Morel se tornou amigo dos escritores Arthur Conan Doyle e Mark Twain*, atuando como mediador de paz em conflitos internacionais. Ele até derrotou Winston Churchill (primeiro ministro durante a 2ª Guerra) nas eleições para o parlamento Britânico, durante a 1ª Guerra.

Infelizmente, como Jesus predisse dos seus seguidores, a vida não recompensou nenhum dos que lutaram contra a crueldade no Congo. Casement foi executado por alta traição em 1916, na Irlanda. Morel foi preso por escrever artigos contra o império Britânico. Bertrand Russell, um pacifista amigo de Casement, relatou sua libertação: "... seu cabelo era completamente branco (quase não havia um tom de branco antes). Quando ele saiu, desmaiou por esgotamento físico e mental”.

Leopold II enriqueceu muito com a exploração do Congo. Ele ergueu numerosos edifícios particulares e públicos com esse dinheiro, o que lhe rendeu o epíteto de "Rei Construtor". Suas obras incluem o Hipódromo de Wellington, as Galerias Reais e o Hendrikapark em Ostende, o Museu Real da África Central em Tervuren, os parques Cinquentenário e Duden em Bruxelas, e a estação de trens em Antuérpia. Suas propriedades privadas alcançaram luxo até então não visto. Quando Leopold perdeu a posse do Congo, os fornos do palácio em Bruxelas passaram mais de uma semana queimando documentos que pudessem incriminá-lo. As autoridades Belgas impediram o acesso ao que restava dos arquivos por quase 20 anos.

Nessa terrível história de um Holocausto contra o povo do Congo, fica notória a participação nefasta dos Belgas aventureiros e ansiosos por riquezas (custasse isso vidas ou não), a persuasão de nativos a trucidar sua própria gente e a quase ausência de atuação da Igreja (Católica e Protestante) a esse respeito. Não é tão diferente do que ocorreu na 2ª Guerra quanto ao massacre dos Judeus. Mas, ao contrário da imprensa que sensibilizou todo o mundo quanto ao genocídio dos Judeus, a tragédia do Congo foi considerada “natural” ou “de pouca importância”. Possivelmente você nunca ouviu falar de semelhante coisa.. Infelizmente, essa possibilidade de considerar vidas humanas como “dispensáveis” ou “tão valiosas quanto a caça” costuma ser uma consequência comum de esquemas verticais de governo, onde um pequeno grupo controla outros, que controlam toda uma população. Não há nenhum exemplo bíblico de Jesus ou de qualquer dos Seus agindo dessa forma, muito pelo contrário, o que torna evidente o quanto a “Igreja de Deus” pode se tornar terrivelmente mundana segundo os parâmetros de “amar a Deus e ao seu próximo como a si mesmo” pregados por Jesus.

Tenhamos a Sabedoria de “temer a Deus” e ser diferentes.

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* Mark Twain (1835-1910; seu verdadeiro nome era Samuel Langhorne Clemens) já era um escritor estadounidense famoso por obras como “As aventuras de Tom Sawyer” e “Huckleberry Finn”. Em 1905 ele publicou um panfleto satírico sobre Leopold II se defendendo das críticas internacionais, dizendo que não tomou nenhum dinheiro do governo, que não usou o Congo para ganhos pessoais e que tais afirmações foram feitas pelos "intrometidos missionários americanos", "cônsules britânicos" e "tagarelas belgas". Todos os críticos seriam traidores, além de que criticar um rei era blasfêmia. O livro trazia o relatório do missionário William Henry Sheppard sobre 80 pessoas massacradas numa cobrança de impostos. O “Leopold de Twain” ainda dizia que seus críticos só falavam do que lhe era desfavorável, como os impostos injustos, a fome e o extermínio de aldeias inteiras, mas não citavam os perversos missionários enviados para evangelizar aquele povo.

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Papéis que sobraram

ABIR Congo Company - wikipedia
Congo Free State - wikipedia
E D Morel - wikipedia
Mac McKinney, The horror crescendos, www.laprogressive.com
Mark Twain - wikipedia
O Cristianismo negro - 2ª parte, www.loungecba.blogspot.com
O Cristianismo negro - 3ª parte, www.loungecba.blogspot.com
The crime of the Congo, www.online-literature.com
The real heart of darkness, The telegraph, 31/mai/1999
Thornton JK, Afro-Christian syncretism in the Kingdom of Kongo, The Journal of African History, 54(1), 53-77, 2013.
Twain M, King Leopold's soliloquy (PDF)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Uma história dos diabos

Acima, "Jesus separando carneiros e bodes", mosaico do séc. 6, Basilica de Sant'Apollinare Nuovo, Ravenna, Itália (repare o Diabo como um anjo azul). Abaixo, Mephistópheles, cartaz da ópera Faust, de Gounod, Paris, 1869. À direita, "Satanás", Codex Giga (coleção de livros da Bíblia), séc. 13, República Tcheca.

Uma abordagem desse tema do Diabo já foi feita em O Diabo do Novo Testamento

Aqui, gostaria de apresentar algumas interpretações Cristãs pós-bíblicas do Diabo. Uma delas, bem inicial, é sua associação com a serpente no jardim do Éden.

Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: "Foi isto mesmo que Deus disse: ‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’?" (Gênesis 3.1) … Então o Senhor Deus declarou à serpente: "Já que você fez isso, maldita é você entre todos os rebanhos domésticos e entre todos os animais selvagens! Sobre o seu ventre você rastejará, e pó comerá todos os dias da sua vida. (Gênesis 3.14)

Se observarmos cuidadosamente o texto que se refere à serpente, supostamente escrito por Moisés (aprox. 1400 a.C.) e, sabemos, re-compilado pelos profetas do rei Josias (640-609 a.C.), não há uma ligação entre a serpente e o Diabo. Para falar a verdade, a maldição “sobre o seu ventre rastejarás” parece bem pouco adequada a um anjo rebelde e muito mais semelhante a um mito de criação do réptil sem patas. Pelo menos na concepção hebraica, parece que a condenação de Adão e Eva se deu por uma ação deles mesmos, no máximo influenciada por uma cobra (realmente uma cascavel, sucuri, etc) no sentido literal. Ok, é menos degradante pensar nos 1os humanos sucumbindo a um poderoso ente celestial maligno que estaria lá no Éden “disfarçado de serpente”, mas as Escrituras não falam nada sobre isso. Falam sobre um réptil astuto, enganador e tagarela.

A associação da serpente com o Diabo pode ter surgido nos tempo do Velho Testamento pelo contato dos Judeus com povos cultuadores desses animais (ex. Egípcios, Cretenses, Sumérios, etc), mas as escrituras de fato falam da disputa religiosa com crenças Cananéias como Baal (senhor das tempestades), Astarte (senhora dos céus, das estrelas especificamente), Asherá (senhora das matas) e Moloque (deus da fertilidade agrícola). Em nenhum desse cultos as serpentes tinham algum significado especial. Os Judeus também absorveram muito da cultura Neo-babilônica durante seu cativeiro (597-539 a.C.), mas isso não incluiu os deuses babilônicos como Marduk ou Sin, que também não incluíam serpentes. Mesmo no período greco-romano (332 a.C.-70 d.C.), os Judeus sempre se preservaram de absorver novos deuses; e esses povos também não cultuavam serpentes. No Novo Testamento, entretanto, João faz uma profecia em Patmos, relativa ao fim do mundo, ligando o Diabo à serpente:

E houve batalha no céu. Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhavam o dragão e os seus anjos. Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo. Ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele. …. E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do Seu testemunho; e não amaram as suas vidas até à morte. Por isso alegrai-vos, ó céus, e vós que neles habitais. Ai dos que habitam na terra e no mar; porque o diabo desceu a vós, e tem grande ira, sabendo que já tem pouco tempo. (Apocalipse 12.7-12)

Essa passagem coloca o Diabo, Satanás, na Terra após uma espécie de guerra nos Céus. E mais, o coloca na forma de um grande dragão, semelhante ao Tiamat da Acádia (antiga Babilônia, aprox. 2000 a.C.) ou ao Jörmungandr viking (séc 10 d.C.). Ainda que o chame de “antiga serpente”, é algo bem diferente de uma cobra como costumamos pensar, e de como parece ser o caso na cena do Éden. João também fez sua profecia cerca de 1500 anos após o texto de Moisés, e talvez 9000 anos após a tal batalha (ver O que Deus fazia antes de Noé). Apesar disso, desde a tradição Cristã mais antiga, associou-se a serpente no Éden com o Diabo.

LÚCIFER, IMAGINO

Um ponto inicial é o nome assumido para essa entidade: Lúcifer. Tal nome não é hebraico e provavelmente não está na sua Bíblia.

Uma parte da origem de “Lúcifer” se deve à Bíblia do rei James I da Inglaterra (1566-1625; uma tradução mais adequada do seu nome Cristão seria Tiago I). Como sucessor da linhagem Protestante de reis, James I organizou uma tradução da Bíblia a partir dos textos latinos e gregos mais antigos, e sua versão se tornaria uma das mais populares da história. Várias expressões linguísticas do Inglês surgiram a partir dos textos bíblicos dessa tradução, como "bite the dust” (“comer poeira", cair morto, fracassar, “beijar o chão”), "mosca na sopa" e "sagacidade". Foi nela que o nome “Lúcifer” se popularizou, citado pelo profeta Isaías:

Como você caiu do céu, ó Lúcifer, filho da alvorada! Como és reduzido ao chão, o que enfraqueceu as nações! (Isaías 14.12)

O texto original usado pelos tradutores do rei James I era uma outra tradução, feita por São Jerônimo, ou Jerônimo de Stridônia (347-420), um estudioso Cristão famoso por compilar uma das 1as versões da Bíblia. No seu texto, em latim, a passagem de Isaías se lê como:

Quomodo cecidisti de caelo lucifer qui mane oriebaris? Corruisti in terram, qui vulnerabas gentes?

Refazendo a tradução do latim de forma mais cuidadosa, podemos ficar também com o formato final:

Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado à terra, você, que derrubava as nações! (Isaías 14.12)

São formas semelhantes de escrever mas, aqui, o nome Lúcifer simplesmente não existe. Na verdade, se lermos o texto de Isaías, veremos que se trata de uma profecia sobre a queda do Império Babilônico (626-429 a.C.). Mais especificamente, Isaías profetiza o fim triste do imperador Nabucodonosor II (reinou de 605 a 562 a.C.)¹. Em outras palavras, a versão do rei James I parece criar o nome “Lúcifer” onde Isaías colocou somente uma exaltação sarcástica ao rei de Babilônia, que havia invadido a Judéia, e não a uma entidade espiritual.

É interessante que Isaías iguala Nabucodonosor (o título, pelo menos) à “estrela da manhã”, nome usado na Antigüidade para o planeta Vênus, que aparece como astro mais brilhante no céu 1-2h antes do nascer do Sol. No tempo de Isaías, Vênus era cultuado pelos Egípcios como Sekhmet/Hator e pelos Babilônicos como símbolo da deusa Ishtar. Os gregos associaram-no com a deusa Vênus (de quem levou o nome atual) e os romanos da era republicana associaram o planeta-estrela com Afrodite. No latim que São Jerônimo usou para escrever, o nome do planeta Vênus era Lúcifer, que significava “o mais brilhante”.

O DIABO ANTIGO

Sem trocadilho, as composições por detrás da imagem do Diabo eram muito tentadoras. De um lado, João deixou a idéia de um grande dragão celestial combatido pelo anjos, que arrastou consigo (para a Terra) um terço das estrelas. De outro, São Jerônimo traduziu o texto de Isaías para dar um nome ao ser que caíu do céu: Lúcifer, a estrela-da-manhã. O dragão ainda era uma serpente, como aquela no Éden.

Um nome que o NT usa é Belzebu, príncipe dos demônios (Lucas 11.15). Esse nome é registrado, muito antes, como Baal-Zebube, deus de Ecrom (cidade-estado dos Filisteus) e “Senhor das moscas”, pensando-se em um divindade que expulsa as pestilências (2ª Reis 1). A demonização da divindade dos Filisteus é presumível, mas a sua imagem prevaleceu como símbolo do mal. A representação mais antiga de Baal é de Ur (de 2000 a.C., bem antes dos Caldeus), sendo um homem segurando um machado com o qual lançava relâmpagos (segura essa, Thor!). Na Judéia, entretanto, a associação de Baal com a fertilidade das terras lhe rendeu a imagem de um touro enfeitado de ouro. O deus Dagon dos Fenícios também fez sua contribuição ao apresentar uma divindade rival meio-homem, meio-animal (1ª Samuel 5.2-4). Os Judeus mais ortodoxos não demoraram a associar esse Baal agrícola com o bezerro de ouro dos seguidores de Moisés, de forma que o “Diabo”/Belzebu ao qual associaram Jesus era uma figura mais profana do que medonha, sendo às vezes representado como touro ou homem-touro.

Os Judeus não costumavam fazer representações divinas ou mesmo de demônios, entendendo-os mais como forças sobrenaturais do que como entidades que precisavam de rosto e forma. Na verdade, incomodava-os a adoração a qualquer tipo de imagem, fosse homem ou animal. Uma espécie de Satanás aparece no Tanach³, mais especificamente no apócrifo Livro dos Jubileus (150 a.C.), onde Yahweh concede a Satanás/Mastema autoridade sobre um grupo de anjos caídos para tentar os humanos e puni-los. Reparemos a semelhança com os Djins árabes (espíritos tentadores do deserto) e com o Satanás descrito no evangelho de Lucas. Essa era provavelmente a representação mais popular no imaginário da época de Jesus: um espírito tentador ou punitivo, às vezes o Belzebu profano com chifres de touro.

Nos sécs. 1 e 2 d.C., quando Roma impunha seu poder aterrorizante sobre Judeus e Cristãos, as estátuas imperiais eram vistas como “abominações” e representavam imperadores, mas também divindades portando lanças, espadas, escudos e tridentes. E foi assim que o Diabo ganhou sua ferramenta favorita. Com o apocalipse de João, esse ser maligno ganhou ainda coroa e símbolos de rei que seriam as marcas do Anticristo e suas bestas. Tal Diabo “coroado” aparece em figuras da Idade Média, nos estudos de demonologia do séc. 18 e, recentemente, no filme “Hellboy”.

Uma mudança significativa aconteceu com a institucionalização do Cristianismo (séc. 4 d.C.). Uma preocupação típica dos religiosos nessa época era a dualidade corpo-espírito, onde as cartas de Paulo e a obra Confissões, de Santo Agostinho, ajudaram a formar uma concepção de que o mal residia em tudo que fosse animal, carnal, instintivo. Como consequência, o Diabo pré-medieval era praticamente um lobo ou fera andando sobre duas patas, coberto de pelos, com dentes pontiagudos e cauda.

Mais ao norte da Europa, a disputa religiosa entre Cristãos romanos e Pagãos romanos lhe dava a imagem dos bodes europeus, bastante cultuados como sinal de fertilidade da terra pelos Romanos e demais povos. Por isso a representação preferida que a Igreja fazia do Diabo no norte era esse ser com chifres, pêlos e cabeça de bode. Os cavaleiros medievais deixaram muitas figuras desse tipo para simbolizar seu maior temor, o qual também esteve envolvido na perseguição feita a feiticeiros e bruxas desde o séc. 10 d.C.

No Alcorão (séc. 7 d.C.), Shaitan ou Iblis é uma entidade feita de fogo (pois o fogo era considerado o mais divino dos 4 elementos) como os demais anjos, que foi expulso do Céu porque se recusou a obedecer Alá e se curvar perante o recém-criado Adão. Cheio de mágoa, Iblis transforma seus seguidores em Djinns que habitam os desertos para incitar os humanos ao pecado, infectando suas mentes com wiaswās (sugestões malignas). Reparemos que bem diferente do conceito Cristão de um Diabo habitando entre os homens, os árabes entendiam um Diabo que era perigoso às pessoas sozinhas. No 1º caso se trataria de um ser mágico oferecendo favores em troca do culto humano; no 2º caso seria um ser mais perto do molde judaico, fazendo mágicas que perturbem a harmonia humana.

UM DIABO MODERNO

A idéia de que o Diabo governa o inferno parece ter uma fonte bem mais recente, no poema de Dante Alighieri, A Divina Comédia², publicado por volta de 1320. O poema descreve a viagem do próprio Dante através do Inferno, Purgatório, Paraíso e Céu, guiado por 3 seres: Virgílio (guia no Inferno e Purgatório), Beatriz (guia no Paraíso) e São Bernardo (guia no Céu). Virgílio foi um grande poeta romano (70 a.C. - 19 a.C.); Beatriz foi a 1ª esposa e grande amor de Milton; São Bernardo (1090-1174) foi o fundador da Ordem dos Cavaleiros Templários. Na cosmogonia registrada por Dante, Deus criou o inferno quando expulsou o Diabo e seus demônios do Céu. A ira divina foi tão grande que produziu um enorme buraco no centro da terra, onde os demônios foram habitar. Dante retratou o Diabo como uma criatura alada grotesca com três rostos - cada um mastigando um pecador desonesto - cujas asas sopravam ventos gelados por todo o Inferno.

Em 1654, o holandês Joost Van den Vondel fez de Lúcifer o protagonista e título de uma de suas grandes peças teatrais. Seu interesse pelo VT o levou a produzir também “Adão Banido” e “Noé”. A peça Lúcifer era uma trama envolvendo apenas os anjos. Nela, o anjo Appolion descreve o Éden que ele viu, com seres feitos do barro e no entanto perfeitos, comandando um lugar mais belo que o Céu. Gabriel então anuncia que Deus havia reservado também o Céu para suas novas criaturas, que reinariam sobre os anjos. Lúcifer, o preferido de Deus, se rebela e comanda diversos anjos a se oporem aos desejos de Deus, mantendo os homens na Terra (reparemos a influência árabe). Deus manda Gabriel repreender os seguidores de Lúcifer e Rafael anunciar que serão perdoados, caso se conformem às ordens do Senhor. Em desespero, Lúcifer se vê diante dos seguidores a avisa que haviam ido longe demais para recuarem. Após uma feroz batalha, ele e seus parceiros são derrotados e caem do Céu. Durante a guerra, no entanto, Lúcifer trama impedir que os homens cheguem ao Céu envenenando e corrompendo-os, para que Deus jamais os queira. Lúcifer é transformado numa mistura de 7 bestas, representando os pecados capitais. Enquanto isso, Gabriel aparece entre os anjos leais para avisar que Belial, disfarçado como serpente, havia entrado no Éden e corrompido os homens. A peça termina com os anjos, chorosos, expulsando Adão e Eva do Éden. Pouco depois de sua composição, a peça foi proibida pela Igreja da Holanda, só voltando aos teatros no séc.19.

Em 1667, o diabo também ganha a posição de protagonista no livro do inglês John Milton que, cego, escreveu sua obra prima descrevendo a queda do anjo Lúcifer até se tornar Satanás. Fala-se de uma Guerra Celestial, onde Deus (noutra parte do livro é Jesus) lança todos os raios dos céus contra os rebeldes. No início do livro, os anjos estão caídos num inferno de “fogo e enxofre”. Lúcifer se torna rei deles e seus seguidores (Belzebu, Belial, Mamon, etc) constroem um grande palácio de ouro (Pandemônio), onde se reúnem para planejar a vingança contra Deus. Aos poucos ele deixa a aparência angelical (que Gustave Doré ilustrou como um jovem herói grego com asas, imenso para os padrões humanos) para se tornar um ser não só maligno, mas também destituído de beleza, aparentado com um animal voador. Mudando de forma, Lúcifer escala O Abismo e faz várias tentativas de infiltrar-se no Éden, mas é visto pelos anjos, até que consegue entrar disfarçando-se como serpente. Como o nome sugere, a obra termina com a expulsão de Adão e Eva do Éden. Ao contrário da peça de Vondel, o Paraíso Perdido se tornou um dos livros mais lidos no Ocidente e influenciou decisivamente a cultura Cristã.

Em 1806, o alemão Johann Wolfgang von Goethe publicou sua obra Fausto. Apropriando-se do livro de Jó e do conceito de um diabo tentador, Goethe misturou tais idéias com as estórias sobre um médico-bruxo alemão, Johann Faust, que ficou famoso por volta de 1530. Ele imaginou que o diabo deveria ser atraente e fazer todas as suas maldades de forma oculta. A fantasia clássica desse personagem inclui maquiagem com rosto sinistro e sorridente, além de uma roupa vermelha com capa. Na famosa peça teatral, o demônio Mephistópheles vai ao Céu e aposta com Deus de que ele seria capaz de seduzir seu humano favorito, Fausto. Na Terra, Fausto queria ser capaz de resolver todos os problemas. Buscando na Bíblia suas respostas, ele não as encontra. Nem tampouco na Filosofia ou na Magia. Desamparado com a futilidade dos homens (há vários trechos copiados de Eclesiastes, na peça), ele tenta se matar e falha. Na volta para casa, é seguido por um cão que se transforma em Mephistópheles. O demônio promete a Fausto realizar qualquer desejo seu na Terra, e Fausto o serviria no inferno. Mas Fausto coloca um porém: Mephistópheles poderia levá-lo apenas quando estivesse plenamente feliz. O demônio ajuda Fausto a seduzir Gretchen, a moça que ele admirava, e ainda induz Gretchen a sem saber matar sua mãe com uma dose excessiva de sonífero, para que Fausto pudesse ir ao seu quarto. Ela depois descobre que está grávida. Seu irmão vai atrás de Fausto e morre ao chegar perto dele. Gretchen tem o bebê e, sendo um ilegítimo, mata a criança e vai presa. O demônio ajuda Fausto a ir libertá-la da prisão, mas Gretchen recusa-se a ir. Fausto vai embora ouvindo anjos que o avisam de que Gretchen estava salva. Finalmente, Fausto morre mas, como jamais havia sido plenamente feliz, o demônio assiste enquanto ele sobe ao Céu.

Devil as a tailor, Jerome Witkin, 1978

Em 1978, o pintor Jerome Witkin produziu um “retrato” do diabo como alfaiate ou costureiro musculoso e sinistro, semelhante aos gênios da Disney, tecendo os uniformes de soldados. Essa idéia de alguém agindo “por trás das cortinas”, influenciando as ações dos homens, foi bastante aproveitada em obras como Hellblazer (1988, DC Comics), de onde surgiu o personagem cinematográfico John Constantine. De quimera boi-homem ou bode-homem, o diabo moderno ganhou ares de poderoso empresário e ser controlador dos homens que nem sabem sobre serem suas vítimas.

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¹ Nabucodonosor II foi um rei-símbolo do Império Neo-babilônico. Vários sucessores usaram seu nome como se fosse um título, assim como aconteceu com César, em Roma. Ele teve um reinado extremamente longo e não morreu de forma humilhante como Isaías previu, tendo inclusive conduzido seu reino a um auge de poder e riqueza. Certamente esse nome foi usado por seu penúltimo sucessor Nabonidus (reinou de 556 a 539 a.C.), que pode ser a vítima predita por Isaías. Nabonidus era na verdade um religioso, que se isolou da função de rei em um oásis para cultuar a deusa ancestral Sin (representada pela Lua). Ao desprezar o deus maior de Babilônia, Marduk, ele revoltou os altos sacerdotes, que o culparam pela invasão dos Persas liderados por Ciro, o grande. Apesar disso, não se sabe dizer se mesmo Nabonidus teve o fim desonroso que Isaías prevê. Ciro era famoso por seu respeito aos reis conquistados e, segundo a única fonte escrita descrevendo o fim de Nabonidus, ele foi exilado como administrador de terras do rei.

² A palavra Comédia não significava, para Dante, o que significa para nós hoje. Trata-se de uma palavra aparentada com Cômico, no sentido de ser teatral, novelístico. Talvez uma tradução atual para o nome da obra pudesse ser “Novela Divina”. Ainda hoje se usa, no inglês, a palavra Comics para descrever não obras engraçadas, mas sim fictícias ou fantasiosas e com uma arte visual.

³ Tanach é o equivalente hebraico do Velho Testamento. Há outros livros sagrados, no Judaísmo. Tanach é a junção das iniciais de Torá (a Lei) + Neviim (os Profetas) + Chetuvim (as Escrituras). A Torá é a junção de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Neviim é o conjunto formado por Josué, Juízes, 1ª Samuel, 2ª Samuel, 1ª Reis, 2ª Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. Chetuvim compreende Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras, Neemias, 1ª Crônicas e 2ª Crônicas.

Todos são livros muito antigos. A tradução utilizada nas Bíblias vem das versões em grego e latim desses livros, que foram produzidas a partir de 37 a.C., com a anexação da Judéia ao Império Romano. Apesar disso, versões mais antigas foram preservadas na Babilônia (atual Irã/Iraque), que são utilizadas na Tanach.

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PALAVRAS DO ORCO

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