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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Obscurantismo vs. Cristianismo


Capa do Epistolæ Obscurorum Virorum (Cartas de Homens Obscuros), publicado em 1515-1519 por Johann Reuchlin


A palavra 'obscurantismo' é entendida hoje como a restrição proposital do conhecimento, a si mesmo ou a outros. Esse nome passou a ser largamente usado desde o séc. 18, com uma revolução do método científico que deu aos homens conhecimentos sobre as transformações químicas, gases - e daí os primeiros motores, astronomia e a eletricidade. Muitos, de repente, tiveram a certeza de poderem descobrir por si mesmos qualquer coisa no Universo. 

Não descobrir 'por si mesmo' significava que o conhecimento ou ciência seria herdado ou concedido de alguma fonte divina. No mundo Cristão, seria o insight provido por Deus sobre as questões mundanas, totalmente em acordo com as Escrituras.

Curiosamente, o nome 'obscurantismo' surgiu em uma sátira que diversos intelectuais fizeram sobre o intento de um monge alemão em destruir as cópias do Talmude judaico, no começo do séc. 16. O Talmude era visto como uma deturpação do entendimento de outra escritura judaica, que chamamos Velho Tratamento. Ou, pelo menos, esse era o argumento para encomendar a queima das obras.

Mais ou menos desde então, muitas ações da Igreja foram chamadas de obscurantistas. O propósito deste texto é levantar o que há de verdade e inverdade nisso.

A IGREJA ANTI-OBSCURANTISTA

Enquanto funcionou sob a tutela de Roma Ocidental (sécs. 4 - 6), a Igreja se tornou um pólo educacional. Grandes pensadores como Justinus de Roma (100-165 d.C.), Irenaeus de Lyon (130-202 d.C.), Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), Tertulliano de Cartago (155-240 d.C.) e Santo Agostinho (354-430 d.C.)¹ encontraram no ambiente religioso a estabilidade para produzir suas obras. Também foi através dos mosteiros e abadias que a educação greco-romana chegou à Europa Ocidental.

Quando o Império Ocidental se desintegrou, ocupado por povos menos educados, as províncias Romanas foram deixadas sem a tecnologia Romana (nem meios de reproduzir ela). Os mosteiros Beneditinos passaram a ser a única estrutura educacional existente. Por volta do séc. 8, boa parte das pessoas com recursos suficientes estudava nesses mosteiros. A adesão à vida religiosa era temporária: a partir de doações da família à ordem religiosa, o jovem era admitido como noviço e podia permanecer na vida ascética dos monges até que resolvesse sair. De fato, a maioria retornava às ocupações dos seus clãs para substituir os mais velhos como senhores de terras.

Nesses mosteiros medievais desenvolveram-se tecnologias como rodas-d'água, ferraduras, criação de peixes, rotação de culturas nos campos, óculos, relógios mecânicos e a produção de cervejas a partir de cereais. O aproveitamento frutífero da Natureza era visto como um dom divino de sabedoria, e oferecer esse conhecimento aos outros era uma demonstração de caridade. Não por acaso, foram ordens religiosas que administraram as primeiras universidades do Ocidente e até fundaram as primeiras escolas nas Américas.

A NOMEAÇÃO DOS APÓCRIFOS

Os escritos Cristãos circulam desde o séc. 1. Num primeiro momento, que se estendeu até o séc. 3, não havia o que hoje chamamos de um 'códice sagrado'. Diversos autores escreveram suas próprias versões dos Evangelhos e das cartas teológicas de Paulo. Boa parte desse material nem mantinha a linha teológica seguida pelos supostos autores. Por exemplo, cerca de metade das cartas de Paulo se contrapõe a conceitos da outra metade, tais como a manutenção de classes ou estratos sociais, além do papel das mulheres dentro da Igreja.

Um exemplo disso é a carta a Filemon, onde Paulo apresenta o caso do escravo Onésimo, que estava sob sua proteção. Paulo argumenta que Onésimo se tornara Cristão e o ajudava na prisão, encomendando que Filemon (dono de Onésimo) o tratasse como a ele mesmo. Na carta aos Colossenses, Paulo por outro lado manda que os escravos obedeçam a seus senhores (Colossenses 3.22). Hoje acredita-se que as cartas aos Efésios, Colossenses, 2ª Tessalonicenses, 1ª e 2ª Timóteo, e a Tito muito provavelmente não se originaram de Paulo. Os autores desses textos (assim como Lucas) tentaram romanizar Paulo, fazer de sua mensagem algo em acordo com as autoridades.

A negação de materiais bibliográficos (e sua ocultação do público), nesse início, teve o papel de selecionar obras que formassem um conjunto lógico, e que dessem suporte umas às outras, e também a uma instituição. Foi então que o nome 'apócrifo' ou 'oculto' passou a ser usado. Apócrifo era tudo aquilo que não se encaixava, que deveria ficar de fora, escondido do público.

CATEQUIZAÇÃO DAS MASSAS

Num segundo momento, o Cristianismo já fundido com o Império Romano se dedicou a difundir o credo imperial para os territórios na Europa e nas cercanias do Mar Negro. Um dos motores dessa difusão foi Santo Agostinho, educado na rica Cartago, que tratou de explicar Deus para as audiências Gregas. Agostinho era um pregador e argumentador poderoso. Mas entre os detalhes de sua preparação, segundo ele mesmo, estava a crença de que o conjunto total do Cristianismo seria chocante e ininteligível aos ouvintes. Por isso, ele intencionalmente desviava de certos temas ou conteúdos.

Tal estratégia e justificativa ainda são muito usadas. Faltaria habilidade dos ouvidores para compreender 'corretamente' os detalhes de uma pregação, ou mesmo elementos da fé que apoiam. Afinal, como representado no exemplo dos seguidores de Coré (Números 16), há eleitos de Deus para interpretar Suas palavras e estes não devem ser questionados. Dar elementos para questionar seria como estimular disputas.

A passagem da 'Igreja agência educacional' para a 'Igreja perseguidora de conhecimentos', ambas até convivendo num mesmo local e tempo, como se pode imaginar, ocorreu pela via do poder. Começou na medida em que os mosteiros se converteram em abadias e se vincularam aos poderes imperiais. Do séc. 10 em diante, religiosos voltavam das Cruzadas, para serem autoridades, com habilidades sacerdotais e militares, além de pertencerem a clãs da nobreza. Alguns monastérios evoluíram para fortalezas. Houve não poucos casos de uma abadia financiar ou dirigir ataques armados a outras. Educar nobres era uma tarefa santa, mas os nobres lutam entre si; os santos de uns podiam ser nomeados como os demônios de outros.

Um ponto importante do Obscurantismo é que o exemplo da Igreja de Beréia (Atos 17.10-11) nunca foi útil a um sistema militar ou de dominação. Nos primórdios da Igreja Imperial, os Concílios foram estratégias para definir quais seriam os textos aceitos, como seriam ensinados e para quem. O 'para quem' foi bem marginal quanto ao público comum: no séc. 6 a Europa já era pelo menos 50% cristianizada, mas as primeiras traduções bíblicas para idiomas populares só apareceram nos sécs. 8 e 9. Embora algumas frases e eventos bíblicos fossem populares, apenas depois do séc. 16 houve realmente uma difusão texto. Até então, conhecer os Evangelhos privilégio dos religiosos que, por seu juramento de fidelidade à Igreja, seriam menos tentados a discordar do entendimento institucional.

MUDANÇAS DE RUMO

A Reforma Protestante, no séc. 16, foi inicialmente um poderoso movimento anti-obscurantista. Os defensores da Reforma argumentavam que a Igreja Católica mantinha seus fiéis alheios às Escrituras, substituindo a mensagem de Cristo por interesses mesquinhos. De fato, várias criações Católicas como o Purgatório, a paga de tributos pelas almas dos mortos e a bênção dos doadores de grandes fortunas eram famosas trocas do texto Cristão por criações convenientes.

Qualquer língua além do Latim ou Grego eram consideradas seculares (não religiosas), desde que a Igreja se uniu funcionalmente ao Império Bizantino, no séc. 6. Por isso, a Bíblia só era copiada em Latim ou Grego Koiné (de Alexandria). No séc. 8, apareceram uma tradução de João para o idioma inglês e outra de Mateus para o alemão. No séc. 11, época das Cruzadas, apareceram versões em inglês do Pentateuco e dos 4 Evangelhos. Nos sécs. 13 e 14 surgiram versões bíblicas completas em Francês e Tcheco. Pelo menos 1200 anos depois de Jesus!

A partir de uma tradução do texto completo para o Alemão, feita por Lutero, um dos líderes da Reforma, muitas outras traduções foram produzidas. Até contrariando os esquemas Coloniais do próprio séc. 16, produziu-se versões em línguas africanas e indígenas, nos séculos seguintes.

No séc. 18, durante a Revolução Francesa, os intelectuais acusavam abertamente o rei e a Igreja por ocultarem da população os problemas sociais alarmantes. Isso era verdade, assim como foi verdade na Revolução Russa em 1905. Desde o Sacro Império Romano-Germânico (de quem a Igreja Católica francesa descendia) e Roma Oriental (de quem a Igreja Ortodoxa russa descendia), a Igreja desqualificava problemas mundanos como fome, exploração e doenças em favor da busca da espiritualidade e uma permissão única das autoridades ao conhecimento. Não sem razão, muitos movimentos anti-obscurantistas, como o Iluminismo na França e o Socialismo na Alemanha/Rússia, também se tornaram anti-Cristãos.

O Socialismo alemão, por exemplo, se valeu da educação de trabalhadores sobre direitos e fluxos monetários para produzir uma quebra da aceitação de deveres. O movimento das elites em combater esse tipo de educação como algo maligno incluiu a Igreja demonizando o movimento. Para hilaridade geral, um dos movimentos 'Socialistas' mais antigos foi a comunidade dos Essênios perto do Mar Morto, onde possivelmente João Batista teria se instruído, antes de ‘preparar os caminhos do Senhor’. E outro foi a comunidade Cristã de Jerusalém descrita no livro de Atos dos Apóstolos (Atos 2.44-47).

EVOLUÇÃO

O Cristianismo nasceu dentro do Judaísmo, numa época de conflitos políticos e inicialmente aceitando a cosmogonia judaica. Ou seja, os Cristãos eram párias dos Judeus por sua rejeição aos mestres Saduceus/Fariseus, e não por seu entendimento de mundo. Para os primeiros Cristãos, estava OK a formação do homem a partir do barro (Adama, em Aramaico), um mundo de terra plana sobre o grande mar subterrâneo e embaixo do oceano celestial.

Diversas contendas também surgiram entre a Igreja e a Ciência, como resultado da revolução metodológica. A Torah judaica foi canonizada como livro sagrado, anunciante de Jesus, e então seus conceitos sobre o funcionamento do mundo passaram a duelar com a tradição de cada povo e as descobertas científicas. Que absurdo os Bwiti africanos guardarem os ossos de seus antepassados! Que terrível uma luz produzida por eletricidade! Embora a maior parte dos duelos Igreja-Ciência diga respeito ao Velho Testamento, que é a Torah judaica, foi a Igreja Cristã quem mais se posicionou contra a Ciência.

Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, por exemplo, usaram medições astronômicas para deduzir que a Terra orbitava o Sol, e não o contrário. Nesse mesmo séc. 16, Vasco da Gama faria sua viagem ao redor do mundo, provando que se tratava de uma esfera e não um plano. Esse modelo desafia coisas como o livro de Josué, quando o Sol e a Lua foram ordenados a parar no céu.

Josué, cap. 10
12. Josué falou ao Senhor no dia em que ele entregou os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse em presença dos israelitas: Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu, ó lua, sobre o vale de Ajalon. E o sol parou, e a lua não se moveu até que o povo se vingou de seus inimigos. Isto acha-se escrito no Livro do Justo. O sol parou no meio do céu, e não se apressou a pôr-se pelo espaço de quase um dia inteiro.

Ainda que a tradução do hebraico tomada pudesse ser problemática², ela foi amplamente abraçada como verdadeira. Num mundo que girasse feito peão ao redor do Sol, com a Lua orbitando em volta, parar os astros no céu seria desastroso. Por isso, jamais Copérnico, Galileu ou mesmo Vasco da Gama poderiam estar corretos. Seus dados, raciocínio e mesmo espólios de viagem não poderiam ser obras de Deus, e não deveriam ser acreditados jamais. Eles próprios deveriam morrer, se não negassem suas obras (declarando-as como falsas) em público. Nenhum deles foi morto.

No séc. 19, outro elemento científico a causar ampla controvérsia foi a Teoria da Evolução. A Torah judaica começa justamente com Deus produzindo a Terra e os seres tais como são atualmente. O homem, em especial, foi feito do barro. Como então os cientistas poderiam dizer o absurdo de animais e plantas produzidos a partir de outros seres ancestrais? Mesmo em pleno séc. 21, esse embate quanto à Evolução existe: um verdadeiro 'crente' (em Jesus?) é entendido como alguém que deveria rejeitar por completo as evidências científicas nesse quesito, ainda que possa recorrer às mesmas evidências e metodologias em muitos outros assuntos. Poderia até mesmo consumir levedo transgênico num pão feito com trigo modificado geneticamente, assado num forno de microondas.

ESCONDENDO A BÍBLIA NA IGREJA

Muitos religiosos (e não apenas Cristãos) chamam a atenção para um mal hábito dos processos de conversão. 'Conversão' é o nome Cristão usado para a adesão de uma pessoa a um credo. Nesses processos, é comum que as pessoas realmente não vejam o objetivo, mas algo que os missionários apresentam e lhes parece bom. Nalguns lugares, missionários bem vestidos fazem pensar que o credo proporcionará riqueza. Noutro, autoridade e poder. Noutro ainda, uma boa aparência. Em muitas comunidades assoladas por dependências e problemas de saúde, o credo significa afastamento das drogas e tratamento.

O problema é que o Cristianismo, em especial, não trata disso. Jesus reuniu discípulos extremamente diferentes (e aparentemente eles até brigavam entre si) e tentou inspirar eles a ficarem juntos, apesar disso. Os grupos religiosos não costumam ser assim, e que bom haver muitos deles e bem diferentes! Não raramente, os líderes religiosos se associam a tais imagens problemáticas (desenhadas pelos novos convertidos) e se tornam estereótipos: "o rico", "o poderoso", "o curandeiro", "o juiz". A própria Igreja tem uma tradição de se associar com governos e fazer dos líderes 'novos representantes do Império', o que tem suas retribuições por parte dos governantes. A Igreja ordenou as Cruzadas, apoiou os reis Católicos em sua conquista dos povos nas Américas e na África. Depois também apoiou invasões e massacres nas duas Guerras Mundiais.

Dentro desse panorama, é importante notar que o Obscurantismo tem uma função social significativa: ele promove o poder de uns sobre os outros. Isso também acontece com o dinheiro, política, militarismo, racismo, etc. Dentro do Cristianismo, tal ferramenta de poder foi usada até como meio de manipular os ensinamentos bíblicos.

Primeiramente, houve a determinação de que apenas escritos Cristãos estariam em concordância com Deus, e portanto apenas esses seriam verdadeiros. Não raro, os demais deveriam ser destruídos. Em 325 d.C., o Concílio de Nicéia determinou que todas as obras de Árius³ fossem queimadas. Em 1240, o ex-judeu e monge franciscano Nicholas Donin de La Rochelle traduziu o Talmude para o latim e apresentou uma solicitação ao Papa para que as obras fossem queimadas, o que de fato aconteceu. Esse acontecimento foi quase idêntico ao de 1507, com o monge Johannes Pfefferkorn, a fonte para o livro Epistolæ Obscurorum Virorum. Em 1562, o bispo Diego de Landa ordenou a queima dos livros Maia, no México. No final do séc. 17, os Anglicanos eram famosos por queimar em público os livros Católicos, na Inglaterra. Esses são alguns exemplos de queimas ‘religiosas’, havendo outras famosas, como os Nazistas queimando livros ‘Comunistas’ na Áustria. Tal prática marcou a fase de cristianização da Europa, perdurou na retomada dos territórios Mouros e se estendeu para as batalhas de dominação promovidas por Espanha/Portugal nas Américas e na África durante o séc. 18. Mais recentemente, os sécs. 19 e 20 viram diversos movimentos Protestantes banirem toda literatura 'não Cristã' de comunidades fundamentalistas o suficiente para se apartarem da vida urbana.

Num segundo momento, precisamos entender o que seria uma literatura Cristã. Mesmo os Evangelhos foram produzidos muito depois de Jesus, então ser Cristão na prática era ser aceito pelas lideranças religiosas. Muitos livros foram condenados pelos Papas, Patriarcas e não foi diferente com os líderes Protestantes. Logo, para uma obra ser Cristã ela deve ser validada pela autoridade Cristã local. Por isso, o Obscurantismo foi usado, acima de tudo, para reforçar uma autoridade ou poder já existente. Talvez o exemplo mais pitoresco desse tipo de Obscurantismo seja a Bíblia dos Escravos. Tratou-se de uma re-edição do texto Bíblico feita no começo do séc. 19 para os escravos convertidos nos EUA, mas retiradas todas as partes que falassem sobre liberdade. A pregação aos escravos também era 'editada', para reforçar a importância de obedecer ao senhor. No caso, o Senhor-Deus e o senhor-dono eram figuras intercambiadas. Por definição, o dono era enaltecido como bom e justo (logo, suas maldades eram na verdade retribuições).

Mesmo hoje, ainda que exista uma lista enorme de pensadores Cristãos, a maioria absoluta dos fiéis jamais ouviu falar deles, nem ouvirá. Brennan Manning? Wendell Berry? Karl Barth? Huberto Rohden? Géza Vermés? Thomas de Aquino? Ugolino Brunforte?* São nomes desconhecidos do público religioso, bem mais afeito às 'invocações do poder de Deus'. Embora sejam/tenham sido claramente defensores da fé e exploradores do mundo espiritual dentro de suas teologias, há muito tempo não faz parte do funcionamento Cristão questionar e racionalizar, sobretudo o próprio Cristianismo. Mesmo no Protestantismo, as vezes em que esse questionamento apareceu resultaram em rupturas de grupos.

No mundo Judeu, a prática questionadora surgiu com a destruição de Jerusalém e o desaparecimento dos Saduceus, supostamente descendentes dos Levitas da época de Salomão, e na prática descendentes dos Macabeus. Os apontamentos e discussões produzidos pelos Rabinos deram origem ao Talmude. Já entre os Cristãos, a aliança Igreja-Estado cristalizou uma obediência militar que repudia o questionamento filosófico. Para defender-se desse questionamento, a Igreja desembocou em ações obscurantistas.

PANDEMIA DE 2020

A intrusão de religiosos Cristãos em diversas áreas do conhecimento produziu frutos como as belas músicas de Antônio Vivaldi e também os estudos de Gregor Mendel, pai da Genética. Mas geralmente essa intrusão é perigosa. Seguidos por fiéis como se fossem canais de comunicação com o divino, facilmente os líderes religiosos usam de seu status social para afirmar idéias perante um público pouco instruído - ou que até substitui seus conhecimentos por falas de uma autoridade. No Brasil são conhecidas atuações religiosas para moldar práticas legais, políticas, psicológicas e médicas. Longe do curandeirismo que permeia todas as culturas, os líderes religiosos se valeram atualmente como validadores (ou não) de práticas dos profissionais da Saúde.

Muitas igrejas, desde a disseminação maciça do vírus SARS-COV-2, mais vulgarmente 'novo coronavírus', prestaram grandes des-serviços à Saúde Pública. As más ações foram desde a afirmação de que Deus protegeria todos do grupo religioso (logo não deveriam apostatar da fé usando máscaras e evitando contato social), até a prescrição de orações curativas, exorcismos em pacientes de Covid-19 e venda de amuletos que poderiam curar os doentes, e por fim a insistência na continuidade de cerimônias coletivas. Em diversos países do mundo, houve tanta disseminação de novos casos da doença nas igrejas quanto em eventos esportivos, bares, etc porque, basicamente, o que tornava os ambientes perigosos era a quantidade e proximidade das pessoas. Não houve qualquer tipo de proteção divina dentro dos templos.

Diante da necessidade de encerramento temporário das atividades coletivas, as igrejas Cristãs em geral preferiram arriscar a vida de seus fiéis. Foram mais enfáticas ainda aquelas com acesso a autoridades políticas. Com ambas as lideranças concordando quanto a arriscar as pessoas e não avisar sobre (e nem mesmo reconhecer) os riscos, milhares de casos da doença foram rastreados com sua origem em um único culto religioso. Não foi diferente na época da Gripe Espanhola, apesar dos mais de 100 anos de avanços desde então.

Onde está a restrição ao conhecimento? Poucas religiões no mundo mantém ritos que ainda dependem de um espaço sagrado, que não podem ocorrer fora dali. O Judaísmo tinha essa relação com o Templo de Jerusalém. O Cristianismo, em especial, não mantém tal ligação com um local sagrado. Mas tal detalhe geralmente é omitido das discussões (como fazia Santo Agostinho), das pregações, das conversas até, porque é institucionalmente valioso cultuar os espaços. Os templos são referidos como 'casa do Senhor'. Fora da igreja (espaço físico), aceita-se a perda do contato com Deus, em detrimento de ensinos do próprio Jesus (João 4:20-24).

A QUEBRA

Há uma cisão lógica entre a Religião e a Ciência, bem conhecida. De um lado, o conhecimento é fruto de um entendimento do texto sagrado e jamais poderá discordar de tal texto. De outro lado, o conhecimento nasce da lógica aplicada aos dados experimentais, e questionada tanto quanto for possível. A base para o conhecimento é uma base, e somente isso. Inevitável que o estabelecido e o mutante se contraponham... Mas é necessário, num mundo de fé, viver com ambos. Boa parte das pessoas não faz a menor idéia de como seus próprios telefones funcionam.

O caminho obscurantista sempre foi a supressão da diferença, ou da discussão, declarando outras opiniões como falsas, outros trabalhos como falsos, até a evidência experimental como falsa. Como mostrado acima, mesmo partes do texto ‘sagrado’ precisam ser escondidas para manter privilégios e poderes. Questões como a sabedoria embutidas nos ensinamentos bíblicos, interferência de Deus na história humana e a significação de Jesus no funcionamento das sociedades são altamente discutíveis e de proveitosa discussão, mas quase sem exceção tidas como já resolvidas em contextos obscurantistas. Geralmente essa 'discussão já resolvida' é simplesmente um pacto entre autoridades, um acordo de 'toma lá, dá cá'. Para vergonha do Cristianismo, tanto o nome de Cristo como a Verdade pregada por Ele foram e são comumente usados em favor dos mesmos poderes que determinaram Seu assassinato.

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¹ Justinus de Roma defendeu o Cristianismo perante o Senado Romano, argumentando que as características do Logos ou Mundo Ideal se cumpriam em Deus e Jesus era um transmutador entre esse 'mundo divino' e o 'mundo material'.

Irenaeus de Lyon atuou fortemente contra as seitas Gnósticas. Ele defendia que as experiências visionárias jamais poderiam substituir a tradição dos apóstolos e os Evangelhos. Ele é a referência mais antiga a citar juntos Mateus, Marcos, Lucas e João, bem antes que houvesse um livro emendando todos esses textos.

Clemente de Alexandria se dedicou à conversão dos Gregos para o Cristianismo. Ele descreveu uma antropologia da religião grega, apresentando a crença nas forças da Natureza, depois em seres antropológicos, depois em mitos semi-divinos e finalmente em deuses que apenas serviram para desmembrar os atributos de Deus, juntando -os com todo tipo de falha moral dos homens.

Tertuliano de Cartago elaborou uma das 1as metafísicas do corpo, espírito e Divino. Esse foi um assunto importante na Cristandade, desde então. Segundo ele, havia um 'material' que compunha o Pai, Filho e Espírito Santo. Algo semelhante a isso tinha sido dado a Adão, mas foi poluído pelo pecado e o material 'sujo' espalhou-se para cada homem desde então. Ele via o contato religioso como uma 'purificação', à qual tinham chegado os fundadores da Igreja.

Santo Agostinho compreendia a dualidade corpo-espírito no sentido Plantonista, isto é, uma criação imperfeita e uma perfeita, inimigos entre si. Agostinho elaborou o conceito de Pecado Original e argumentava pelo distanciamento do homem de tudo que fosse carnal.

² Traduções, principalmente a partir de um idioma antigo que não usava vogais nem separações entre palavras, sempre foi problemático. Muitas vezes, palavras diferentes eram escritas igual, e resta comparar trechos para ‘deduzir em aproximação’ o significado das expressões. Uma teoria curiosa sobre esse evento de Josué fala sobre a palavra usada para 'parar', que é só aparece repetida no Salmo 38:

Salmos, cap. 38
7. De fato, o homem passa como uma sombra, é em vão que ele se agita; amontoa, sem saber quem recolherá.

Obviamente, aqui se trata de 'escurecer' e não parar. Escurecer o Sol indicaria um eclipse solar prolongado na região da Judéia. Eclipses são previsíveis, e houve um evento assim em 30/out/1207 a.C.

³ Arius (256-336 d.C.) foi um líder religioso de Alexandria, no Egito. Sua pregação era de que Deus Pai estava acima e comandava tanto o Filho como o Espírito Santo. Essa idéia não era apenas dele, mas corrente de uma grande parte dos Cristãos. Apesar do Edito do Concílio de Nicéia, no séc. 7 ainda havia relatos de obras de Arius na Espanha.

* Brennan Manning (1934-2013) foi um ex-padre que defendia conceitos profundos de fé desvinculados da prática religiosa, traduzidos no relacionamento das pessoas com Deus e com as outras pessoas. Sua obra mais famosa é o Evangelho Maltrapilho.

Wendell Berry é um escritor e fazendeiro que analisa as relações entre os homens e o ambiente com base em princípios Cristãos. Sua obra mais famosa é The Unsettling of America - A inquietação da América.

Karl Barth (1886-1968) foi um ex-pastor argumentando pela desvinculação entre a Graça Divina e fatores culturais ou políticos. Ele foi um grande opositor de Hitler, na Alemanha. Sua obra mais famosa é Epístola aos Romanos, um comentário sobre a carta de Paulo.

Huberto Rohden (1893-1981) foi um ex-padre que se dedicou à transcrição filosófica do Cristianismo, isto é, às conexões entre o Cristianismo e outras religiões, assim como às Ciências em geral. Possui muitas obras famosas, entre elas "De alma para alma".

Géza Vermés (1924-2013) foi um estudioso do Judaísmo e Cristianismo, famoso por suas traduções de obras antigas e as pesquisas sobre a vida dos Cristãos no séc. 1. Ele foi um dos tradutores dos textos da famosa biblioteca Essênia encontrada nas cavernas de Qumram, às margens do Mar Morto. 

Tommaso d'Aquino (1225-1274) foi um teólogo Católico que traduziu as idéias de Aristóteles para o Cristianismo. Segundo ele, os homens só poderiam ser felizes/prósperos na medida em que descobrissem o seu propósito segundo Deus. De estudo obrigatório na formação eclesiástica, sua obra mais famosa é Suma Teologica.

Ugolino Brunforte (1262-1348) foi integrante do grupo de Francesco d'Assisi e um de seus biografistas. Nos contos de Brunforte, Francesco e seus nomes pregavam avidamente a humildade e irmandade entre os homens, revelando Cristo como cerne dessa comunhão. Sua obra mais famosa é Fioretti (Pequenas flores).

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PAPÉIS QUEIMADOS NOUTRO DIA

FOSTER, Frank Hugh. Theological Obscurantism. The American Journal of Theology, v. 15, n. 1, p. 96-106, 1911.


Bible translations - wikipedia


CARTWRIGHT, Mark. Medieval Monastery, ancient.eu, 14/dez/2018.

Irenaeus - wikipedia

Justin Martyr - wikipedia

Obscurantism - wikipedia

QUADRI, Sayed A. COVID-19 and religious congregations: Implications for spread of novel pathogens. International Journal of Infectious Diseases, 2020.

REUCHLIN, Johann. Epistolæ Obscurorum Virorum. Ed. Chato & Windus, 1909.

STETZER, Ed. Beware of Obscurantism, christianitytoday.com, 8/jul/2014.


WIETHOFF, William E. The obscurantist design in Saint Augustine's rhetoric. Communication Studies, v. 31, n. 2, p. 128-136, 1980.

sábado, 21 de março de 2020

Carlos Magno, rei dos Cristãos

Mort de Roland, na obra Grandes Chroniques de France, ilustrada por Jean Fouquet (1455-1460). Na pintura, Baudouin se lamenta pela morte do príncipe no ataque dos Bascos.

O rei Carlos Magno viveu entre 742 e 814 d.C., período que repartiu a Idade Média na Europa. Para o Cristianismo, foi um espaço entre quase desaparecer no Ocidente e se tornar uma força modeladora do mundo.

ALTA IDADE MÉDIA

A Antiguidade da Europa terminou com a fragmentação de Roma Ocidental. Desde uns 500 a.C. até por volta do séc. 4 d.C., quando abraçou o Cristianismo, Roma cresceu e modelou todas as terras ao redor da Itália. Conquistou toda volta do Mediterrâneo, incluindo as briguentas filiais de Cartago, no norte da África; avançou para o norte até as ilhas Britânicas; dominou a Grécia e atual Turquia. Roma construiu estradas ligando as cidades comerciais, levantou pontes e cidades de pedra esculpida que os Europeus demoraram a reproduzir. Fez alianças entre povos variados e inimigos, todos com reis educados por famílias Romanas, instalou governadores e legiões para impedir guerras e rebeliões, definiu o latim como idioma oficial ou mundial dos governos. Roma tornou-se tão grande que foi preciso ter dois imperadores a fim de governar seu imenso território. Mesmo a China chegou a receber legiões.

O período Romano da Europa terminou com o fortalecimento de impérios rivais. No norte, os Saxões começaram a invadir as ilhas Britânicas, Dinamarca, Germânia, Holanda, norte da França. Ali até se dividiram, formando o povo Franco, que se espalhou pelo norte da Espanha e Portugal. No sul, os Godos aprenderam as lutas a cavalo dos Bérberes na África, tornaram-se guerreiros hábeis e cruzaram o Mediterrâneo para atacar a antiga Roma. Logo surgiu o Islã, um conjunto de califados ligados pela religião e descendência de Maomé, que tomou o Oriente Médio, Egito, juntou-se aos Godos no norte da África e sul da Espanha. Do leste, começaram a chegar as tribos guerreiras de Hunos vindos da China e Rússia, que atacavam as terras agrícolas e tornaram absolutamente necessário viver sob a proteção de grandes muralhas. Nessa época, todo o centro da Europa era ocupada por uma grande floresta, da qual a principal sobrevivente, hoje, é a Floresta Negra, na Alemanha.

Nas cidades Européias margeando os rios e planícies, o que era um grande reino se acabou ao longo de três gerações. As rotas de comércio mudaram. Antes, as caravanas vinham da China para a Índia, seguiram para o Iêmen por barco, dali para a Palestina através do Mar Vermelho, e depois pelo Mediterrâneo até Roma e o sul da Espanha. Até a Inglaterra recebia materiais vindos da Índia e China.

Com o erguimento de Constantinopla e os conflitos por terras no Oeste, as caravanas passaram a terminar na Grécia e toda a Europa empobreceu. Desapareceram as porcelanas, os tecidos finos e as tintas para escrever e pintar. Com a fuga dos Romanos, a cultura dos povos dominados voltou a seu estágio pré-Roma, mas agora com as pessoas vivendo nos escombros das grandes cidades de pedras. Era nas muralhas dessas cidades que elas se protegiam contra ataques dos Hunos, Francos, Godos e Mouros. Era ali que um pequeno reino se protegida dos soldados de outro pequeno reino, pois não havia mais um grande rei para submeter a todos. Sem o latim usado para os inúmeros registros do governo imperial, rarearam e até desapareceram as pessoas com conhecimento da escrita. O nome "Idade das Trevas" é usado hoje, com sentido pejorativo, para uma época sobre a qual simplesmente faltam documentos.

A Alta Idade Média surgiu na Europa com o desaparecimento do governo Romano. Não foi do dia para a noite. Aos poucos, não havia mais legiões guardando as fronteiras, nem impostos a pagar, nem leis de um Imperador. Para o Cristianismo, foi um período de grandes perdas: a Igreja havia se enlaçado com o governo imperial e, sem um, o outro também se quebrou. Ainda havia um papa em Roma, mas nada que forçasse os reinos a segui-lo: os movimentos Cristãos se reduziram a mosteiros e missões enviadas de Roma ou de Constantinopla para evangelizar povos pagãos em reinos pagãos.

Grande parte dos novos reis baseava suas ações nas previsões astronômicas ou divinatórias de magos, que para eles não eram tão diferentes do que foram Samuel e Elias no Velho Testamento. Algumas missões Cristãs, no entanto, como na Irlanda e na Inglaterra, foram promissoras. Em outros locais, as ruínas Romanas e os resquícios de Igrejas deram origem a santos misturando bem os milagres do Novo Testamento com os poderes sobre a Natureza dos deuses pagãos. São Patrício, por exemplo, foi um missionário Irlandês a que se credita o banimento de todas as serpentes da ilha.

MUDANDO O MUNDO MEDIEVAL

Uns 100 anos antes de Carlos Magno nascer, os Francos haviam iniciado sua expansão/centralização. Esse processo começou com o rei Clóvis I (466 - 509 d.C.), conquistador guerreiro de vários pequenos reinos Francos, que aderiu ao Cristianismo no final de sua vida. Os motivos dessa adesão são misteriosos: vários historiadores falam sobre a influência da esposa, que era Cristã. Outros (e acredito estarem certos) falam sobre a possibilidade de, assim, ele contar com o apoio militar dos Cristãos no sul da França, de forma a ter um exército superior ao dos outros reis. Boa parte da atual França havia aderido ao Cristianismo nos tempos de Roma, então o apoio da Igreja, mesmo repartida em abadias e mosteiros, daria a Clóvis uma força com o qual outros reis Francos não contavam.

No Natal de 508 d.C., o rei Clóvis foi batizado Cristão. Como previsto, essa medida logo deu-lhe influência sobre toda a terra entre a Espanha e a Alemanha. Foi uma questão de tempo até estabelecer tratados e se tornar o primeiro imperador desde a queda de Roma.

A linhagem de Clóvis, apesar do sucesso em unir as terras ocidentais, não foi próspera em manter-se no poder. Acabaram por delegar a autoridade sobre suas muitas terras a famílias administradoras que, como os generais de Alexandre, em breve decidiram sentar elas mesmas no trono. O grande golpe aconteceu quando o 1º ministro Pippin o Pequeno solicitou ao papa Zacarias (741 - 752 d.C.), em Roma, que ele apoiasse a tomada do trono Franco. A semelhança do nome com o personagem de Senhor dos Anéis não é casual. Acreditando no retorno da Igreja ao poder imperial, o que de fato estava em curso, o papa deu seu aval para uma nova dinastia na Europa. Assinando documentos forjados de Roma, em troca da Coroa, o novo rei Pippin assumia-se arrendatário de terras que por direito eram de Cristo e, portanto, da Igreja.

UM REI E SEUS ADVERSÁRIOS

Carlos I era filho de Pippin e assumiu um trono Cristão poderoso em 771 d.C., já então sendo famoso como conquistador, após 3 anos repartindo o governo com seu irmão. Além dos reinos Francos e Germânicos menores, que ele anexava continuamente no seu reino "Francia", Carlos tinha como inimigos poderosos os Mouros a oeste, os Lombardos ao sul, os Saxões ao norte e os Eslavos a leste². Alternando entre guerras no sul e no norte, ele acabou conquistando os Lombardos e os anexando a seu reino em 774. Os Saxões, por outro lado, eram ferozes: Carlos I promoveu massacres de milhares de Saxões capturados nas cidades que conquistava. Apesar do banho de sangue, os Saxões jamais se renderam².

Um dos grandes objetivos de Carlos I era muito alinhado com Roma: destruir os cultos não-Cristãos na Europa, que tinham se expandido desde a destruição do Império Ocidental. A maneira de fazê-lo, entretanto, era a conquista militar e não a pregação do Evangelho. Em 772, uma das expedições de Carlos I contra os Saxões destruiu um dos Irminsul, ou árvore sagrada, que conectava o mundo dos deuses e dos homens. Dez anos depois, ao sufocar uma rebelião nas montanhas Süntel, ele perdeu a captura de Widukind, um grande líder Saxão. Como resposta ao fracasso, o rei Franco-lombardo ordenou na cidade de Verden que 4500 prisioneiros fossem decapitados; supostamente os responsáveis pelo levante. Carlos I considerava-se o rei da "Nova Israel" e não faltou ao extermínio de raças rebeldes, como os Amalequitas e Moabitas do Velho Testamento. Muito mais tarde, em 1935, sua decisão quanto ao genocídio seria lembrada pelo Partido Nazista³.

As investidas de Carlos I contra os Mouros também não foram tão afortunadas. Numa delas, até perdeu um de seus generais, e também sobrinho, no episódio que foi "pintado" no mais típico estilo medieval na Canção de Rolando. O enredo desta canção de gesta (narrativa poética de fatos) fala da batalha de Roncesvales (ano de 778). O exército Franco havia ido a Saragoça para intervir numa negociação entre líderes Mouros. Após estabelecer acordos, o exército de Carlos I iniciou seu retorno para Francia. Os Cristãos da região, duvidando da lealdade dos Francos, num ataque súbito, dizimaram sua retaguarda, matando Rolando, sobrinho de Carlos I. Enquanto isso, no Oriente, emissários do rei faziam acordos com o califa de Bagdá, Harum al-Rachid: a idéia de Cruzada contra o Islã não era do tempo se Carlos I. Aparentemente, o rei tratava suas batalhas com os Mouros como negócios e disputas entre governantes, tal como fazia com os demais líderes Francos*.

Contra os Eslavos, Carlos I foi exemplar como candidato a Imperador. Os Eslavos haviam estado sob o comando dos Ávaros, descendentes dos Hunos, desde o séc. 5, mantendo inclusive a capital de Átila, chamada "O Anel", provavelmente perto da cidade de Craiova, na atual Romênia. No séc. 8, entretanto, os Ávaros haviam enfraquecido por suas muitas batalhas perdidas contra Bizâncio. Dessa forma, os Eslavos eram governados por príncipes que duelavam entre si e não mais um grande rei. Incapaz de esmagar seus inimigos, que lutavam muito bem sobre cavalos em meio a montanhas e florestas, Carlos impediu que desenvolvessem agricultura ou caça, sufocando-os pela fome. Em alguns anos, as guerras irromperam entre os príncipes Eslavos e um acordo de paz foi conseguido após a captura do Anel por um dos príncipes de Carlos I e a entrega de 15 carroças de ouro (grande parte tesouros tomados dos Germânicos e Lombardos), em 795. Claro que esse acordo não contou com apoio de todos os príncipes, o que reiniciou as guerras e terminou com a destruição do Anel em 799.

REI DO MUNDO

Em 800 d.C., os nobres de Roma tentaram remover o Papa de sua posição imperial e ele buscou auxílio do grande rei Franco. Carlos I foi convidado a Roma. No Natal daquele ano, o papa Leão III (795-816) o coroou como Carlos Magno, Imperador do Mundo (ou, mais propriamente, da nova Roma Ocidental). Fundava-se, assim, o Sacro Império Romano-germânico. Além da extensão territorial que lembrava a antiga Roma, indo do leste da Turquia até o oeste de Portugal e do sul da Itália até o norte da Alemanha, esse novo reino investia Carlos Magno e seus descendentes do poder concedido "por Cristo" para reger as vidas de todos os homens. O imperador ocupava, assim, a função que fora de Augusto e seus inimigos seriam inimigos de Deus, sua saúde a saúde de todas as terras.

O rei assumiu prontamente seus novos poderes: estabilizou as famílias nobres de suas terras por juramentos de lealdade feitos pessoalmente a ele e em presença do Papa, reorganizou a Igreja promovendo a educação e ordenação oficial do Clero, ordenou a "cristianização" de todos os povos submissos. Boa parte da organização medieval de poderes se desenvolveu a partir de seu reinado, com hierarquias como bispo e abade incorporadas ao governo e religiosos destacados para essas posições políticas.

Além disso, os muitos pequenos principados cercados de muralhas que fazem nosso imaginário sobre a Idade Média mudaram. Reinos foram unidos, os grandes países que formam a Europa atual começaram a ser desenhados. O comércio foi aos poucos restabelecido e engatilharam-se as mudanças tecnológicas (ex. na agricultura e no sistema de trabalho) que caracterizam a Baixa Idade Média. As escolas Carolíngeas, embora direcionadas ao Clero, tornaram-se compiladoras de muitos textos antigos - não necessariamente religiosos - dos quais as únicas cópias atuais vieram desse período.

NOVOS RUMOS PARA A IGREJA

Carlos morreu de causas naturais no ano de 814. Sua última obra foi coroar um dos filhos, Luis o Piedoso, em 813. No entanto, os reis Saxões do norte fortaleceram-se, dando origem aos reinos de Dinamarca, Noruega e Suécia. Eles desenvolveram um poderoso sistema de batalhas, em que hordas diferentes convergiam sobre as mesmas cidades. A partir de 820, os Vikings choveram sobre o norte da França e as ilhas Britânicas, conquistando mesmo Paris e Londres.

O levante dos reinos Francos e Germânicos contra os ataques Vikings deu poder militar a muitos clãs nobres que, após o reinado de Luis, repartiram as terras e fundaram seus próprios reinos. Com sua divisão, os Eslavos, agora Cristãos, gradativamente se aliaram ao Império Bizantino. Eles fortaleceram uma Igreja Oriental que se distanciava de Roma e terminaria por fundar o Catolicismo Ortodoxo, após as Cruzadas.

Os Vikings queriam, mais ainda que ouro, terras aráveis onde plantar e criar animais (a imigração maciça para a Groenlandia - descrita erroneamente como Green Land ou "Terra Verde" - mostra isso). As invasões só acabaram, tanto na França quanto na Inglaterra, com a concessão de territórios a eles. Em ambas as terras, ganharam o nome de Normandos (literalmente, Homens do Norte). A Igreja Ocidental manteve-se, a partir de Carlos Magno, como validadora e responsável pela coroação dos reis Europeus.

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¹ MOUROS: reis/califas Islâmicos, em geral negros, que conquistaram o sul da Espanha (Califado de Córdoba) a partir da atual Mauritânia e Marrocos, no séc. 7. Foram conhecidos por sua riqueza e forte comércio de ouro, além das inovações em criação de cavalos, medicina, astronomia e arquitetura que trouxeram diretamente do mundo Árabe para a Europa. LOMBARDOS: foram um povo nórdico que usava runas para c escrita. Atravessaram a Alemanha no séc. 1 d.C., depois Áustria e foram residir no norte da Itália pelo séc. 6, que estava despovoada depois das guerras entre Roma e os Godos. Eles habitaram as ruínas das cidades romanas, usando os amplos salões sem teto como pastos e os templos como currais. SAXÕES: foram um povo nórdico, mais antigo que os Lombardos e a partir do qual esses vieram. Os Saxões eram famosos por sua escrita em runas, produção de cerveja, fabricação de escudos e barcos resistentes, e uso de pesados machados em batalha. Apesar da defasagem em técnicas agrícolas (comparados aos Romanos), eram grandes navegadores e povoadores de regiões inóspitas, hábeis em estruturar uma hierarquia militar de governo, onde raramente um líder se revelava contra seu senhor. ESLAVOS: os Romanos descreveram esse povo como inicialmente formado de duas tribos, os Scytios e os Sarmatianos, que vieram do Iran e se uniram no centro da Europa. Segundo os historiadores Romanos, eram bárbaros numerosos, capazes de habitar e prosperar mesmo em pântanos e florestas impenetráveis. Lutavam contra as legiões nus e portando machados. No séc. 5, a chegada dos Hunos na Europa fez os Eslavos, nômades, se deslocarem para dentro do território Romano, onde hoje ficam os países do Leste Europeu. Lá, estabeleceram grandes terras agrícolas. Pela proximidade com Bizâncio, os Eslavos acabaram adotando o Cristianismo Ortodoxo.

² Os Saxões aparecem na História como guerreiros por natureza. De fato, na Cosmogonia deles, a única forma de ascender a terra dos deuses era morrendo em batalha. Acredita-se que as estórias sobre Arthur, na Inglaterra, sejam na verdade reflexos de um líder pós-romano combatendo contra a invasão dos Saxões em sua ilha. Mais tardiamente, após Carlos Magno, os Saxões reaparecem sob o nome de piratas Vikings que trouxeram terror as ilhas Britânicas e ao norte da França.

³ Os Nazistas eram muito orgulhosos de seu poderio de conquista. Eles acreditavam na superioridade genética de uma raça com grande estatura, pele clara e olhos verdes, a qual emendavam inteligência maior. Traçavam mesmo uma descendência entre os governos que unificaram toda a Europa sob um único trono: Roma (1º Reich ou Reino), Carlos Magno (2º Reich) e a Alemanha Nazista (3º Reich). Felizmente, a vitória dos Aliados (França, Inglaterra e EUA) e Soviéticos na 2ª Guerra impediu a criação do sonhado 3º Reich.

* A Canção de Rolando foi escrita pelo menos uns 200 anos após os fatos que narra. Excetuando-se alguns nomes próprios e de lugares e o malogro da expedição, tudo o mais é fictício. Ela traz um Carlos I Imperador do Mundo (esse título ele só ganharia uns 20 anos após Roncesvales), Francos e Mouros conversando sem problemas linguísticos, comandando exércitos com armas que ainda não existiam, os Francos lutando contra os Mouros com a obstinação de destruir inimigos de Deus, nas Cruzadas.

Entre os sertanejos do Nordeste Brasileiro, é curiosa a menção aos heróis de Roncesvales, lembrança que os Portugueses trouxeram para cá. E que aqui ficou como cultura popular, tendo desaparecido mesmo na França. Há um distrito denominado Roldão, no município de Morada Nova, Ceará. Os soldados da escolta pessoal do falso monge José Maria, da guerra do Contestado (1912-1914), eram “Os doze pares de França” (exatamente assim se chamavam os cavaleiros de Rolando, enviados com ele por Carlos I), embora no Contestado fossem 24 homens, e não 12 como os originais. Seu líder, não podia se chamar menos que Roldão. Na festa da Cavalhada de Maceió, representação de uma batalha medieval, o Partido do Encarnado é chefiado por Roldão, o Partido Azul por Oliveiros (na época de Roncesvales, Portugal era território Franco, em guerra contra o sul da Espanha, que era Mouro).

Acredita-se que a história do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França nos chegou de Lisboa no séc. 18, traduzida por Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor do Algarve, que fez releituras de várias obras do séc. 16 como "Orlando enamorado", "Orlando furioso" e "História del Emperador Carlomagno y de los Doce Pares de Francia e de la cruda batalla que hubo Oliverios con Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del Almirante Balan". A forma definitiva dessas estórias, semelhantes à lenda de Arthur, foi alcançada no séc. 19, quando virou a fonte principal das cantorias e cordéis nordestinos.

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BORDADOS NA TAPEÇARIA ANTIGA

Avars - wikipédia
Avar-Khaganate - wikipédia
Charlemagne - Religious reform, Enciclopedia Britannica, britannica.com
Clovis I - wikipédia
Irminsul - wikipédia
Lombards - wikipédia
Mark JJ, Charlemagne, Ancient History Encyclopedia, 2019
Marton F, Saiba quem foi St. Patrick e por que ele ganhou uma data comemorativa, Aventuras na História, 2019
Morris C, Charlemagne and the Avars, Historical Tales vol. 6, 1893
Sarmatian people, Enciclopedia Britannica, britannica.com
Slavs - wikipédia

segunda-feira, 29 de abril de 2019

O Cristianismo da Pobreza - 1ª parte (séc. 1 ao 14)


Esquerda: decapitação de São Justino em 165 d.C., mosaico na Igreja Monte das Beatitudes/Jerusalém; Centro: Santo Agostinho, pintura de Pietro di Giovanni D'Ambrogio/Itália, 1435; Direita: encontro entre o sultão Malek al-Kamil e Francisco de Assis, em 1219, no Egito - pintura do Frei Robert Lentz/EUA

Ver ações da Igreja Cristã em benefício de populações carentes talvez não seja vívido na memória dos mais novos como é, na dos mais velhos. Até os anos 1970, por exemplo, diversos países da América Latina, assolados por regimes ditatoriais ou a mais legítima exploração capitalista tiveram intervenções da Igreja Católica. Raramente essas intervenções assumiram um papel político, no entanto. Uma ação política significa mobilizar grupos sociais para desfazer esquemas de exploração dos mais fracos pelos mais poderosos. Isso pode descambar para movimentos revolucionários e rebeldias, o que jamais foi o objetivo da Igreja, sempre associando a palavra “revolução” com a guerra de Lúcifer*. Mas como desmontar um sistema social / econômico em que algumas pessoas ricas, favorecidas legal e politicamente, se beneficiam do sofrimento de outras, sem produzir uma revolução? Desde o século 1, esse tem sido o desafio de parte da Igreja.

JESUS

O ponto inicial desses movimentos religiosos foi o nascimento e convivência de Jesus entre os mais pobres. É difícil avaliar a posição social de Jesus a partir dos Evangelhos, mas a profissão do pai como carpinteiro, o nascimento em um lugar frequentado por pastores, a convivência com pescadores, a não menção de qualquer propriedade faz pensar que Jesus estava entre os mais pobres de sua gente, só acima dos inválidos e leprosos. Quando Ele ainda emenda a fala “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus" (Marcos 10.25), conclui-se imediatamente que Jesus não era rico.

Mas como Jesus via as pessoas com posses? Embora muitos sejam tentados a pensar logo no elogio da viúva pobre por doar “duas pequeninas moedas de cobre, de muito pouco valor” (Marcos 12.42), é importante ressaltar que se trata de uma fala sobre doação, antecedida por uma repreensão aos mestres da lei, que “devoram as casas das viúvas” (Marcos 12.40) e coroada por “deu tudo o que possuía para viver" (Marcos 12.44). O que Jesus acaba fazendo com seu exemplo é parear as condições “favorecido” e “ruim”. Mas isso não O impediu de se envolver com centuriões romanos e publicanos, até incluindo Mateus, um deles, entre o seu grupo de apóstolos (Mateus 10.2-4).

No episódio do jovem rico, anotado apenas por Lucas em sua pesquisa histórica, Jesus coloca como condição para ser salvo que ele “vendesse tudo o que possui e desse o dinheiro aos pobres, tendo então um tesouro nos céus" (Lucas 18.22). Embora essa passagem deixe dúvidas sobre a importância de livrar-se do dinheiro ou de dar o mesmo aos pobres, ela é bem semelhante à conversa de Jesus com o publicano Zaqueu:

“Olha, Senhor! Estou dando a metade dos meus bens aos pobres; e se de alguém extorqui alguma coisa, devolverei quatro vezes mais". Jesus lhe disse: "Hoje houve salvação nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão”. (Lucas 19.8,9)

Não se relata, curiosamente, um episódio semelhante com Mateus, também publicano, ou alguma evidência posterior com Paulo de Tarso, fariseu-romano bem abastado. De fato, a preocupação da Igreja Primitiva com as riquezas parece se resumir em as riquezas serem distrações que afastam de Deus, mais ou menos como os espinhos da Parábola do Semeador. É Tiago (irmão de Jesus) quem primeiro estrutura essa relação Cristã com os pobres, resgatando-a do profeta Isaías:

As suas mãos estão cheias de sangue! Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva. (Isaías 1.15-17)

A religião que Deus, o nosso Pai aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo. (Tiago 1:27)

IGREJA PRIMITIVA

A forma como o livro de Atos descreve a organização da Igreja Primitiva, isto é, com as pessoas vendendo suas posses e levando o dinheiro para repartir entre todos (Atos 2.44,45), conforme a necessidade de cada um, sugere ainda uma sociedade comunal. Podemos pensar que em tal sociedade inexistem riscos e pobres, nem uma classe privilegiada, mas as primeiras cartas apostólicas, relativas às igrejas nascentes, sugerem que não havia tal controle.

Quando vocês se reúnem, não é para comer a ceia do Senhor, porque cada um come sua própria ceia sem esperar pelos outros. Assim, enquanto um fica com fome, outro se embriaga. Será que vocês não têm casa onde comer e beber? Ou desprezam a igreja de Deus e humilham os que nada têm.. (1ª Coríntios 11.20-22)

Mas vocês têm desprezado o pobre. Não são os ricos que oprimem vocês? Não são eles os que os arrastam para os tribunais? (Tiago 2.6)

Seguindo o mandamento de Jesus quanto a “amar o próximo”, assim como Isaías e Tiago, vemos Paulo reunindo, em suas viagens, doações com as quais ajudava os crentes mais pobres:

Naqueles dias, crescendo o número de discípulos, os judeus de fala grega entre eles queixaram-se dos judeus de fala hebraica, porque suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária de alimento. Por isso os Doze reuniram todos os discípulos e disseram: "Não é certo negligenciarmos o ministério da palavra de Deus, a fim de servir às mesas. Irmãos, escolham entre vocês sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria. Passaremos a eles essa tarefa ..." Então escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, além de Filipe, Prócoro, Nicanor, Timom, Pármenas e Nicolau, um convertido ao judaísmo, proveniente de Antioquia. (Atos 6.1-5)

Agora, porém, estou de partida para Jerusalém, a serviço dos santos. Pois a Macedônia e a Acaia tiveram a alegria de contribuir para os pobres dentre os santos de Jerusalém. Eles tiveram prazer nisso, e de fato são devedores a eles. Pois se os gentios participaram das bênçãos espirituais dos judeus, devem também servir aos judeus com seus bens materiais. Assim, depois de completar essa tarefa e de ter a certeza de que eles receberam esse fruto, irei à Espanha e visitarei vocês [romanos] de passagem. (Romanos 15.2528)

Tiago, Pedro e João, tidos como colunas, ... somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o que me esforcei por fazer. (Gálatas 2.9,10)

Um relato do final do séc. 1 nos chega pela 1ª carta de Clemente, bispo de Roma, aos Coríntios (81-96 d.C.). Nessa carta, Clemente ressalta a natureza pobre e humilde de Jesus, diversas vezes evocando as passagens acima, de Isaías.

cap. 16 1. Cristo está entre os humildes, e não entre aqueles que se sobrepõem ao seu rebanho. 2. O Senhor Jesus Cristo, cetro da majestade de Deus, não veio, embora pudesse, no alarde da arrogância ou da soberba, mas humilde, conforme o Espírito Santo havida dito sobre ele.

Pouco à frente, o livro Pastor de Hermas (96-150 d.C.) também sugere a convivência de ricos e pobres nas igrejas, atribuindo aos ricos a função de cuidar dos pobres e aos pobres a função de orar pelos ricos, pois sua oração era ouvida pelo Senhor (Hermas 51.1-6). Cumprir essas obrigações (tanto os ricos quanto os pobres estavam comprometidos) era, segundo Hermas, condição para ser contado entre as “pedras brancas” que compunham sua torre símbolo do Reino de Deus.

Relatos do séc. 2 nos chegaram, também, por meio da Apologia de Justino**, uma carta ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César Augusto (governou de 138 a 161 d.C.), onde o teólogo judeu defende os Cristãos como cidadãos romanos que não deveriam ser tratados por inimigos. Em sua carta, Justino usa passagens de Isaías, Mateus e Clemente, apontando que os ritos dominicais (do dia de Sol, segundo ele) se destinavam a recolher doações para órfãos, viúvas, necessitados, prisioneiros e forasteiros.

5. .. Vem depois a distribuição e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos diáconos. 6. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provedor de todos os que se encontram em necessidade. (1ª Apologia 67.5-6)

ROMA

A transformação da Igreja em órgão político deu-se a partir do Incêndio de Roma em 64 d.C., seguida pela destruição de Jerusalém em 70 d.C. Com judeus e Cristãos transformados em párias da sociedade romana, sua organização em grupos onde cada protegesse os demais foi essencial para que sobrevivessem. As 1as dioceses (Roma, Alexandria, Síria, … ) já estabeleceram redes de proteção entre os Cristãos que culminaram, por exemplo, no estabelecimento de reinos como Axum na Etiópia, Hymiar no Iêmen depois Bizâncio na Turquia. O surgimento de uma classe rica e poderosa de Cristãos acabou por atrelar a Igreja ao governo imperial, a ponto de o rei Constantino I declarar o Cristianismo como fé do Império, no início do séc. 4. O que nos restou de tal época foram os documentos de definição da doutrina Cristã, litigiosos e militares, muito pouco atentos a questões sociais.

No séc. 5, Agostinho bispo de Hippona Regia, no norte da África gerenciado pela diocese de Cartago, escreveu sua obra “Cidade de Deus”. Agostinho provavelmente foi uma das pessoas mais influentes no Cristianismo romano e medieval (sécs. 4 a 16). No livro, ele descreve uma Roma se fragmentando, sendo invadida por estrangeiros e culpando os Cristãos pelos rumos tenebrosos do Império.

Mas alguns homens bons e cristãos foram submetidos à tortura, para os forçar a entregarem seus bens ao inimigo. Eles não podiam entregar nem perder aquele bem que os tornava bons entre os homens. Se, no entanto, eles preferiam a tortura à rendição das riquezas, então eu digo que eles não eram bons homens. Antes, deveriam ser lembrados de que, se sofriam tão severamente por causa do dinheiro, deveriam suportar todo tormento por amor a Cristo. Que eles aprendam a amá-Lo antes, e saibam que Ele enriquece com felicidade eterna todos os que sofrem por Ele. Não o fazem a prata nem o ouro, pelos quais era lamentável sofrerem, quer os preservassem mentindo ou os perdessem dizendo a verdade.” (Cidade de Deus, cap. 10)

Agostinho compõe as imagens de uma “cidade dos homens” gerida por vícios e concupiscências, ou libertinagens, e uma “cidade de Deus” governada pela devoção e aperfeiçoamento dos homens, atrelando uma e outra aos acontecimentos da sua época e à longa história do Império. A divisão social dentro do Cristianismo fica evidente quando Agostinho cita, em sua obra, o grande valor das esmolas dadas pelos Cristãos ricos aos Cristãos pobres.

... Ele pode assim mostrar a ineficácia da caridade para eliminar os pecados do passado. Tais pessoas que dão esmolas, ao invés de mudarem maus hábitos de vida por uns melhores, não podem ser ditas como fazendo obras de caridade. Pois este é o significado do ditado: se você não fez bem a um dos menores destes, você não fez bem para mim (Mateus 25:45). Eles não realizam ações de caridade mesmo quando pensam que estão fazendo isso. Pois, se dessem pão a um cristão faminto porque ele é cristão, certamente não negariam a si mesmos o pão da justiça, isto é, o próprio Cristo. Deus não considera a pessoa a quem o presente é feito, mas o espírito no qual ele é feito.” (Cidade de Deus, cap. 27)

Quando enalteceu uma vida simples e pobre (Agostinho foi um exemplo disso), ele de certa maneira definiu o que seria dos monges medievais: homens que abjuraram de suas posses, que entregaram tudo para entrar no Reino de Deus, para não serem desencaminhados pelas riquezas. A Igreja Cristã, enquanto isso, tornou-se a instituição recebedora dessas doações.

Em toda a Europa, à medida que o governo romano recuava e as terras ficaram reduzidas a pequenos reinos sem lei, sabemos que os mosteiros tiveram um forte papel educacional. Em seu círculo de monges pobres e auto-sustentantes (essa era a filosofia de São Benedito de Nursia, Itália - 480 a 547 d.C.), a Igreja se tornou o polo urbano e organizador da vida medieval no Ocidente.

No Oriente, a Igreja e o Império de Bizâncio/Constantinopla enriqueciam com o comércio de seda e incenso para Índia e Arábia, bloqueando a expansão do Islã com Cristãos, pela 1ª vez na história, treinados para a guerra..

IDADE MÉDIA

Esse período entre o desmantelamento de Roma Ocidental (aprox. 500 d.C.) e a destruição de Roma Oriental pelo Islã (1453) foi caracterizada por enormes contrastes entre os Cristianismos Ocidental e Oriental, a ponto de que ambos separaram-se oficialmente em 1054. O ano 1000 e a Grécia representavam fronteiras importantes no tempo e espaço da Idade Média.

No Oriente, falamos de Grécia, Turquia, Egito e Palestina. Toda essa região era controlada por Bizâncio/Roma Oriental, com capital em Constantinopla e usando o grego como idioma. Paulo chamava essa região de Galácia, por onde passavam as caravanas de seda, linho, incenso e pedras preciosas indo da China e Índia para o Iêmen e então para a Europa. Por isso Bizâncio enriqueceu e, como tinha a Igreja atrelada ao Estado, floresceram igrejas. Apesar disso, o modelo grego de Cristianismo era pouco centralizado, com muitos religiosos casados e cada comunidade cuidando de si própria, o que levou a uma separação definitiva do Ocidente em 1054 (no Ocidente ficaram os Católicos Romanos e, no Oriente, os Católicos Ortodoxos). O rico Estado/Igreja Bizantino manteve um equilíbrio fluido com o Islã, através de batalhas e acordos monetários com os povos vizinhos.

A população de Bizâncio era mais tradicional, instruída e urbana que a de Roma Ocidental, sendo formada por judeus, gregos e romanos abraçados pelo Cristianismo. Essa fusão produziu menos desigualdade social e mais abertura religiosa, além de as culturas grega e judaica favorecerem debates filosóficos. Como era uma rota comercial, Bizâncio oferecia muitos empregos aos pobres, seja nos mercados de todos os tipos, serviços portuários ou mesmo como ladrões de mercadorias. A aristocracia enquanto isso cuidava de barcos e remessas, ou de negócios e expedições militares contra o Islã, no Mediterrâneo e Mesopotâmia. Após o ano 1000, os favores imperiais por sucessos comerciais e militares faziam famílias inteiras ascenderem ou afundarem socialmente. A alta mortalidade por pragas do Oriente ou batalhas requeria uma ação social importante da Igreja na manutenção de asilos e orfanatos. A Igreja Ortodoxa, apesar de ligada ao Estado, sempre foi a responsável por manter as instituições de ajuda aos pobres, baseando-se sobretudo na pregação de João Crisóstomo (349-407 d.C.), bispo de Constantinopla e até hoje um ícone no Cristianismo Oriental.

"Privar é pegar o que pertence a outro. Por isso somos ensinados que quando não mostramos misericórdia, seremos punidos como aqueles que roubam. Porque o nosso dinheiro é do Senhor, no entanto, podemos tê-lo em mãos. Se fornecermos para os necessitados, obteremos grande abundância. É por isso que Deus permitiu que você tivesse mais: não para você desperdiçar prostitutas, bebidas, comidas chiques, roupas caras e todos os outros tipos de indulgência, mas distribuir para os necessitados. Um funcionário do tesouro imperial, quando se nega a distribuir o que é ordenado, mas em vez disso se dedica à sua própria indulgência, paga a multa e é condenado à morte. Assim também o rico é um tipo de mordomo do dinheiro para distribuição aos pobres. Ele é ordenado a distribuí-lo aos seus companheiros que estão em falta. Então, se ele gastar mais consigo mesmo do que sua necessidade exige, ele pagará a pena mais severa. Porque os seus próprios bens não são seus, mas pertencem aos seus conservos. Devemos usar nossos bens com parcimônia, como pertencentes a outros, para que eles possam se tornar nossos. Como devemos usá-los sendo pertencentes a outros? Quando não os gastamos além de nossas necessidades, e não gastamos apenas para as nossas necessidades, mas entregamos partes iguais às mãos dos pobres. Se você é rico, mas gasta mais do que precisa, você dará uma conta dos fundos que lhe foram confiados. Isso também acontece em grandes famílias. Muitas pessoas confiaram seus assuntos financeiros a seus empregados domésticos. Aqueles que receberam esta confiança guardam o que lhes foi dado, e não fazem mal uso do dinheiro, mas o distribuem onde e quando o seu mestre o orienta. Você também deve fazer isso. Pois você obteve mais do que os outros, não para gastá-lo por si mesmo, mas para se tornar um bom administrador" (João Crisóstomo)

No Ocidente, falamos da Europa entre Espanha e Turquia. A África fora perdida para o Islã, assim como parte da Espanha e França. Esse lado da Europa empobreceu e se fragmentou em inúmeros reinos sob autoridade de bárbaros - mais precisamente pagãos semi-convertidos ao Cristianismo. A vida dos pobres era regulada pela proteção e ataques militares das famílias ricas, que mantinham acordos diplomáticos com os mosteiros. Os nobres defendiam suas terras (contra outros nobres) e às vezes os mosteiros; os mosteiros negociavam acordos entre os nobres, além de ajudarem os pobres em épocas de crise. Não havia luxos ou uma “classe média”; as pessoas tinham seus destinos traçados ao nascer nobres (destinados ao serviço militar, por isso o nome “cavaleiros”) ou camponeses (literalmente destinados ao campo). Dependendo das colheitas boas ou não, os camponeses dependiam das esmolas coletadas pelos mosteiros.

Esmolas eram, como acusava Agostinho, a forma de famílias ricas comprarem a bênção Cristã. Uma marca dessa época é a titulação de nobres como “santos” e seu enterro dentro das igrejas. Também a Igreja era detentora de terras, criando uma teia de recolhimento de produtos onde muitas vezes os mosteiros e abadias acumulavam fortunas. Os mosteiros beneditinos, cujo lema era “trabalho e adoração”, tornaram-se centros educacionais (educação = ensino estórias bíblicas ou locais por pinturas nas paredes¹), médicos e sociais da população que vivia em chalés rústicos de madeira espalhados nos campos ou nas bordas das florestas. A educação religiosa fez os camponeses profundamente religiosos, regulando seu dia e calendário por significados Cristãos. Por outro lado, as famílias ricas vinham de clãs pagãos antigos e os pobres, sujeitos à imprevisibilidade das colheitas, cultuavam deuses agrícolas como Lug, Kernunos, Dagda, Thor, etc. Tal fusão cultural e o desuso de textos religiosos produziu tradições como a Páscoa (ressurreição de Cristo + ovos e animais no início da primavera), o dia de Finados (oração pelos mortos + Samhain ou dia dos mortos) e a Caça às bruxas (causas misteriosas de pestilências + encantamentos com ervas e animais).

Após o ano 1000, a Europa Ocidental voltou a receber linho, lã, medicamentos (ex.ópio) e incenso do Oriente, vindos por Bizâncio (Roma Oriental). Muitas famílias nobres se filiaram à Igreja na reconquista da Terra Santa, enquanto a Igreja sacralizou os direitos sobre as terras. Com menos conflitos na Europa e cavaleiros sendo sustentados, as vilas tornaram-se cidades dentro de fortalezas, onde se aninhavam as abadias. Muitos nobres e religiosos entraram no “exército celestial”, que combatia tempestades, doenças e as forças do mal formadas por demônios, bruxas e bestas. Os cuidados médicos nos mosteiros evoluíram para hospitais de leprosos e idosos (eram locais onde se mantinham os doentes longe da população, com alguém lhes fornecendo alimento), peregrinos (viajar para um local sagrado e fazer doações lá era um modo usual de obter perdão legal e religioso), doentes (os cuidados médicos da época não iam muito além de alimentação e dormitório para quem não conseguia trabalhar) e pobres (locais onde eram distribuídas doações da Igreja e dos nobres). Esses abrigados eram chamados de “irmãos e irmãs”, nomes que depois foram usados pelos religiosos, sendo sustentados principalmente pelo trabalho comunal junto com os religiosos, em terras da Igreja, ou por doações de rejeitos dos mercados.

Foi nessa situação que um mercador de tecidos da fronteira França/Itália chamado Peter Waldo assumiu um discurso religioso por volta de 1170. Ele declarou seus bens um fardo para seguir a Cristo (quem se lembra do jovem rico?) e diversos padres o seguiram. Seu grupo, “Os Pobres de Lyon/da Lombardia”, defendia a pobreza voluntária, inexistência do Purgatório (para o qual a Igreja coletava muitas doações), pregação leiga e a tradução da Bíblia para o Arpitan (dialeto Franco-Provençal). Foram até Roma defender-se perante o papa, acabando excomungados anos depois. Até o séc. 16 houve perseguição e morte de Waldenses, mas se descentralizaram e semearam movimentos por toda Itália e França. Em 1202, juntou-se a eles o jovem Giovanni di Pietro di Bernardone, também de uma rica família de comerciantes de tecidos, que voltava da guerra entre os reinos italianos de Perugia e Assis. Giovanni fez a sua versão do Waldensianismo menos rebelde às doutrinas, mas ainda clamando pela pobreza e cuidado com os pobres. Ordenado Francisco de Assis, ele seria a 3ª figura Cristã mais influente na Europa, atrás apenas de Jesus e Maria.

FRANCISCO

Já próximo ao final da Idade Média, o grupo dos “Irmãos Menores” de Francisco ficou famoso por sua defesa da humildade e pobreza perante o papa Inocente III, em 1209, conseguindo o que Peter Waldo não pode. Peregrinando entre o centro e o norte da Itália, eles conseguiram muitos adeptos em seu propósito de caridade, a ponto de que novas ordens mendicantes surgiram e Francisco foi ao Egito, 10 anos depois, como diplomata da Igreja junto ao sultão Malek al-Kamil. Grande parte do que se sabe dele foi escrito postumamente, especialmente na obra Fioretti (Pequenas Flores) de Frei Ugolino Brunforte, que conta sobre milagres e a transição de comando da ordem para Irmão Bernardo.

Irmão Bernardo, fazendo o santo sinal da cruz, em nome da santa obediência, partiu para Bolonha. Mas quando chegou naquela cidade, as crianças viram que estava vestido estranhamente e mal, então riram e zombaram dele, tomando-o por louco. Todas estas provações ele aceitou pelo amor de Cristo, com grande paciência e alegria. Procurando ser ainda mais desprezado, foi ao mercado, onde, tendo se sentado, um grande número de crianças e homens se reuniu. Puxaram-no pelo capuz, jogando pedras e poeira. A tudo isso, Irmão Bernardo suportou em silêncio, com expressão de santa alegria no semblante, e por vários dias retornou ao mesmo lugar para receber os mesmos insultos. A paciência sendo uma obra de perfeição e prova de virtude, um doutor culto da lei, vendo tal virtude e constância nele, disse dentro de si : “Sem dúvida este homem deve ser um grande santo”. Indo até ele, ele perguntou quem ele era, e de onde vinha.” (Fioretti, cap. 5)

Fioretti parece resumir as estórias contadas localmente sobre Francisco de Assis e seu grupo, formando uma lenda onde o ponto central não estava tanto em ajudar os pobres, mas em destituir-se das riquezas como foi pedido ao jovem rico, para que não atrapalhem. Além disso, a imagem de Francisco que se construiu condiz muito com a idéia medieval de atrair a bênção divina suportando um sofrimento pessoal, mesmo causado por si mesmo e sem benefício de qualquer um.

AINDA NÃO É UMA CONCLUSÃO

Embora a ajuda aos órfãos e viúvas seja mandamento bíblico, as ações da Igreja no sentido de prover auxílio para os necessitados começou de forma pontual e pouco eficaz. Ela cresceu muito lentamente ao longo dos séculos, vinculada talvez mais a ações políticas do que religiosas (embora sempre ligada à Igreja), enquanto a estrutura religiosa do Cristianismo tornou-se exuberante.

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* A batalha de Lúcifer contra Deus, curiosamente, é em grande parte uma construção imaginativa. Citada de forma profética e nebulosa em um trecho do Apocalipse, ela ganhou o imaginário ocidental pela obra Paraíso Perdido, de John Milton (1667). O livro, escrito em forma de poema pelas filhas de um autor cego, e depois ilustrado pelo artista Gustave Doré (que ilustrava Bíblias) em 1866, foi tão impactante que mais ou menos se tornou o ensino religioso sobre a Criação.

** Justino defendeu os Cristãos mas acabou, depois de confrontar o filósofo Crescens em Roma, sendo acusado de ser Cristão. Julgado com mais 6 alunos seus perante um tribunal, ele e os demais se recusaram a fazer sacrifício aos deuses romanos e foram decapitados.

¹ Existe até hoje uma expressão européia para os vitrais e pinturas na igrejas: “Bíblia do homem pobre”.

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LEIA QUEM FOR LEITOR

Estamos divulgando aqui as obras contidas no site Apologistas Católicos, onde se pode encontrar diversas obras do início da Igreja Cristã. Vale a pena conhecer. 

Augustino de Hippona, City of God, séc. 5
Byzantine Empire - wikipedia
Cartright M, Society in the Byzantine Empire, Ancient History Encyclopedia, ancient.eu, abr/2018
Crisótomo J, 2º sermão sobre Lázaro e o homem rico
Cristãos do norte, loungecba.blogspot.com, set/2016
Francis of Assisi - wikipedia
Geary P. J., Peasant religion in medieval Europe, Cahiers d'Extrême-Asie, 185-209, 2001
Mark JJ, Silk Road, Ancient History Encyclopedia, ancient.eu, mai/2018
Sweetinburgh S., The hospital experience in medieval England, Historyextra.com/BBC, mar/2016
Ugolino Brunforte, Little flowers of St. Francis of Assisi (Fioretti), séc. 14
Waldensians - wikipedia

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Cristãos contra Cristãos - porque tantas guerras na Idade Média?


A Europa por volta do séc. 10. Em laranja, o território dominado pela Expansão Islâmica; em rosa, o Sacro Império Romano-germânico, com a sede Católico-romana ao sul; em verde, o Império Bizantino. No mapa, são mostradas as rotas das Cruzadas para reconquistar Jerusalém.

Quando a bula Ad Extirpanda foi escrita, impondo um massacre dos hereges e determinando prêmios e punições segundo a contribuição da sociedade nisso, a Igreja Cristã havia mudado muito desde o séc. 1. O movimento que abolia as propriedades individuais e suportava a perseguição dos Judeus se transformara na religião estatal do Império. Haviam altos postos dentro da organização, geralmente ocupados por nobres. Por volta de 500 d.C., a Igreja controlava terras, exércitos e mesmo reis, tinha legisladores e uma espécie de constituição. Esse texto examina como os Cristãos chegaram a tal ponto.

Um ponto interessante é que Jesus não estabeleceu doutrinas. Teologicamente, Sua grande inovação estava no “siga-Me”, “amai ao próximo”, “terão autoridade e poder”, “pregai a toda criatura”, na existência do Pai, Filho e Consolador e na esperança de outra vida. Jesus não se deteve em debates filosóficos, mas demonstrou que conhecia o futuro, que comandava os peixes, que moldava e multiplicava a matéria viva ou não viva. Seus sucessores, por outro lado, quiseram explicar os porquês do querer, da importância de ser Judeu, da legalidade de qualquer alimento, etc. Nessas definições lógicas, cada qual inseriu e propagou sua própria bagagem cultural, de modo que a diversidade entre Pedro e Paulo já provocava discordâncias poucos anos após Jesus. Por volta do ano 300 d.C., quando 10% da grande Roma já era Cristã, havia muitas versões do Cristianismo.

ORTODOXIA

Nesses tempos áureos, Constantino I promulgou a liberdade aos Cristãos e todos os crentes de alguma fé para praticarem seu culto sob a proteção de Roma. Ele também organizou concílios para os bispos Cristãos debaterem as questões da fé, de forma que o Cristianismo de um lugar se aproximasse do Cristianismo de outro, mas pouco interferiu como autoridade nesses concílios. Afinal, ele misturava sem problemas o culto pagão com a nominação Cristã em seus exércitos. Constantino interessava-se mais pelo poder político, que perseguiu até controlar as duas metades de Roma. O Cristianismo, que não cultuava o imperador, também era conhecido pelo pacifismo político; assim, parecia ser uma forma de manter a união e a paz dentro do Império.

Constantino repelia qualquer discordância ou conflito sob sua jurisdição. Curiosamente, ele foi pioneiro na perseguição a um grupo Cristão. Os Donatistas, como eram chamados, eram Cristãos do norte da África (centrados em Cartago, atual Tunis) que se recusavam a seguir aqueles que haviam abdicado da fé durante as perseguições aos Cristãos. Infelizmente, essa era a condição de grande parte dos bispos e demais autoridades religiosas, de forma que Cartago recusou-se a seguir o bispo apontado por Constantino. Em nome da ordem, os Donatistas foram perseguidos e impedidos de estabelecer uma estrutura administrativa, mas na prática sobreviveram em grupos informais até as invasões islâmicas (séc. 6).

Theodosius I, muito mais fervoroso do que Constantino nas crenças religiosas, se declarou tutor do Cristianismo e pessoalmente autorizado a ditar as regras da religião como ditava as da política. Ele também definiu qual seria a doutrina “correta” do Cristianismo:

“É nosso desejo que todas as várias nações que estão sujeitas à nossa clemência e moderação continuem a professar a religião que foi entregue aos romanos pelo divino apóstolo Pedro, tal como preservada pela tradição fiel e que agora é professada pelo pontífice Damasus e por Pedro, bispo de Alexandria, um homem de santidade apostólica. De acordo com o ensinamento apostólico e a doutrina do Evangelho, creiamos na mesma divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em majestade igual e numa Santíssima Trindade. Nós autorizamos os seguidores desta lei a assumir o título de Cristãos Católicos mas, quanto aos outros, já que, em nosso julgamento, eles são loucos e tolos, decretamos que sejam marcados com o nome ignominioso de hereges, e não se deve dar a suas reuniões o nome de igrejas. Eles sofrerão em primeiro lugar o castigo da condenação divina e em segundo o castigo de nossa autoridade que, de acordo com a vontade do Céu, decidiremos infligir.” (Edito de Tessalônica, 380 d.C.)

Embora muitas perseguições a grupos Cristãos tivessem como pretexto a Cristologia (isto é, a natureza de Cristo), algo que realmente não interessou ao próprio Jesus debater, em verdade foram empreendimentos militares. Tais ações estabeleciam a supremacia de algum secto da Igreja sobre os demais, o que significava poder legislativo, terras e impostos. Uma vez atrelada por Teodósio ao governo imperial, a Igreja Cristã tornou-se um poder paralelo ou alinhado com o poder político, que ao invés de cultuar o imperador como deus, dava a ele autoridade sobre a forma como Deus devia ser cultuado.

TEMPOS PÓS-ROMANOS

Quando os territórios de Roma começaram a separar-se irremediavelmente do Império (isso é o que se entende por “Queda de Roma”), a Igreja já estava repartida em 5 dioceses dirigidas por bispos: Roma, Constantinopla, Jerusalém, Antióquia e Alexandria. Cada uma dessas dioceses se apoiava na descendência como grupo Cristão formado por um apóstolo original: Pedro, André, “os apóstolos”, “Pedro e Paulo” e João Marcos, respectivamente. A diocese de Jerusalém era guardadora dos manuscritos mais antigos do Cristianismo. A diocese de Antióquia mediou os conflitos entre Judeus Cristãos e os novos convertidos entre os Gentios (não Judeus). A diocese de Alexandria foi a primeira a fundar movimentos missionários na Europa, seguida pela diocese de Roma, que converteu os reis guerreiros do norte. Enquanto isso, a diocese de Constantinopla se dedicou ao Gregos, Morávios e Russos. Todas as questões do Cristianismo eram, em princípio, debatidas nos encontros de representantes das 5 dioceses. Fugindo dessa eqüidade, a diocese de Roma logo aliou-se politicamente ao Império e o bispo Romano ganhou poderes sobre os demais.

Com as invasões do Góticos na Ibéria (Espanha) e Itália, a sede do governo imperial foi transferida para Constantinopla (486 d.C.). Em Roma, o poder caiu nas mãos de um rei Gótico chamado Odoacer, que havia trilhado sua carreira militar ao lado de figuras como Theoderic I (rei guerreiro dos Ostrogodos, um dos grandes inimigos de Roma) e Átila, o Huno (historicamente o responsável pela derrota final de Roma). Embora Odoacer não fosse romano, era Cristão Ariano e manteve o Senado, mas repartiu as terras imperiais entre seus aliados. Dessa forma, inicialmente a fragmentação de Roma Ocidental não foi um problema para os Cristãos. Os aliados de Odoacer, entretanto, não eram unânimes em gostar deles. Em vários pequenos reinos que se formavam, os religiosos da antiga diocese Romana às vezes vagavam de um canto a outro em busca de reis e príncipes que lhes fossem favoráveis.

Por volta de 600 d.C., na Europa haviam velhos Cristãos, Cristãos perseguidos e novos Cristãos. No leste, onde Roma ainda existia com o nome de Bizantium e sua nova capital Constantinopla, a Igreja seguia o curso normal de organização em sub-dioceses, criação de infra-estrutura e produção literária. No oeste, a expansão islâmica ceifou as terras romanas no norte da África. As dioceses de Alexandria, Antióquia e Jerusalém foram arrasadas. Em pouco tempo, a Ibéria e mesmo parte da Itália haviam sido invadidas por reis islâmicos negros (chamados de Mauros ou Mouros) que se aliaram aos Judeus refugiados nesses territórios e iniciaram um forte movimento anti-Cristão. Ali, os Cristãos perseguidos se agrupavam ao redor de mosteiros e os abades negociavam terras e direitos com reis pagãos ou islâmicos. Algumas vezes formavam exércitos de auto-defesa quando as relações não eram boas; outras vezes, agiam como coletores de impostos para pagar tributos aos reis. No norte, por outro lado, o Cristianismo crescia nas terras dos Pictos e dos Anglo-Saxões. Os novos convertidos, distantes das tensões com Judeus, Islâmicos e Bárbaros, davam novos ares ao que o Cristianismo viria a ser.

A transferência da capital romana para Constantinopla e a invasão das terras do antigo império tiraram da diocese de Roma todo o seu poder original. Esse poder foi transferido para a nova sede, a  diocese de Constantinopla.

UMA ROMA RELIGIOSA RENASCE

Lentamente e através de muitas missões político-religiosas, os reis guerreiros do norte da Europa e das ilhas Britânicas se converteram ao Cristianismo e firmaram alianças com a diocese de Roma. Os mosteiros tornaram-se centros educacionais numa Europa onde as pessoas habitavam e até cultuavam as antigas fortalezas romanas. O latim havia se tornado uma língua mágica, guardada em documentos muito antigos e agora reaparecia como a língua dos textos sagrados. As tentativas da Igreja nessa nova Europa culminariam com a coroação de Carlos Magno como grande imperador Romano-germânico em 800 d.C. Obviamente, Carlos Magno não era descendente dos césares e por isso inaugurou um 2º Reich ou Reino, que aos olhos dos europeus substituía a antiga Roma. Mas era uma Roma que misturava o poderio militar dos nobres com sua filiação à diocese romana, onde não era simples distinguir entre religiosos e nobres.

Os abades, em especial, eram religiosos responsáveis por terras e as populações que viviam ali. Deviam garantir a filiação das pessoas ao Cristianismo (pois as tradições pagãs eram muito comuns em áreas rurais, que dependiam do clima e da fertilidade do solo), mas também coletavam impostos para os nobres. Não raro, os mosteiros dispunham de pequenos exércitos. Muitos abades eram aparentados com os nobres ou até escolhidos por eles e assim postos “a serviço da Igreja”. Logo, o enriquecimento de algumas famílias também se refletia na riqueza de seus mosteiros. Os bispos das dioceses também não escapavam ao parentesco com a nobreza, especialmente no novo Império do Ocidente. Apesar disso, o poder político de Constantinopla se mantinha e crescia em riqueza com as rotas de comércio no Mediterrâneo. Não tardaria para que os dois centros religiosos entrassem em conflito...

A influência islâmica sobre a Igreja Ocidental não passaria despercebida. Por volta de 730-750 d.C., as imagens religiosas (com exceção dos crucifixos vazios) foram consideradas idólatras e hereges, o que resultou na destruição de quase toda imagem e pintura que adornava as igrejas ocidentais. Essa visão era um princípio da lei de Moisés mais ou menos abolido pela repulsão dos Cristãos aos costumes dos Judeus, mas também era um princípio do Al-Quram, que entrou no Cristianismo a partir dos reinos islâmicos da Europa. Pouco tempo depois, a destruição das imagens é que foi considerada heresia. Apesar disso, Jerusalém estava sob controle islâmico e o papa Urbano II convocou os nobres europeus em 1095 d.C. para levarem seus exércitos até lá, restabelecendo a cidade sagrada. Como prêmio, estavam autorizados a ter para si tudo o que conquistassem no caminho de ida e de volta. Todo crime contra os islâmicos também seria perdoado. Estavam iniciadas as Cruzadas.

Na diocese de Constantinopla, Roma era vista como autoritária. Afinal, interpretavam que todos eram descendentes da pregação de Pedro e, como os demais apóstolos, eram iguais perante Cristo. Roma, entretanto, tinha muito a ganhar pela argumentação de sua descendência direta do grupo de Pedro. Roma de fato considerava que o bispo romano era sucessor de Pedro e tinha poderes (no Céu e na Terra) sobre todos os Cristãos, com autoridade mesmo para inserir modificações nos textos bíblicos. Constantinopla se recusava a admitir uma estrutura monárquica dentro da Igreja. Em 858 d.C., o patriarca de Constantinopla Photius I declarou-se contra qualquer intervenção de Roma e começou o processo da separação dos Cristãos em Católico-romanos (no Ocidente) e Ortodoxos (verdadeiros, no Oriente). A separação foi um processo político e deliberativo, acontecendo apenas em 1054, com a excomunhão de cada lado pelo seu opositor. Em 1204, a 4ª Cruzada organizada pela Igreja Ocidental atacaria e saquearia a cidade de Constantinopla, assim como seus templos.

VERSÕES DO CRISTIANISMO

A despeito da crescente miltarização / politização da diocese Católica-romana, diversos sectos surgiram dentro do Cristianismo, à medida que ele era pregado e se modificava nos diferentes reinos e povos. Segue uma breve descrição desses movimentos.

Arianismo: fundado por Arius (250-336 d.C.), presbítero de Alexandria, pregava um Jesus criado por Deus Pai, assim como a Sabedoria (Provérbios 8.22) e portanto posterior/inferior a Deus (1ª Coríntios 8.5,6). Em 4º lugar na “hierarquia celestial” estava o Espírito Santo. Foi considerado heresia em 325 d.C. e perseguido por Constantino I após o Concílio de Nicéia. As disputas entre a doutrina de Nicéia e o Arianismo afastaram muitas autoridades, cada vez que o poder real mudava de mãos, até a doutrina ser banida de Roma por Theodosius I e sua esposa. A partir de Alexandria, entretanto, o Arianismo foi pregado entre os Germânicos (norte da Europa), Lombardos (norte da Itália), Vândalos (norte da África) e Góticos (Espanha), de onde re-assumiu a realeza quando Roma Ocidental se desmantelou. Os Francos (norte da França) e os Anglo-saxões (Inglaterra), entretanto, foram convertidos a partir da diocese Romana e, portanto, eram adeptos do Credo de Nicéia. O Arianismo sobreviveu até o séc. 7, quando a fusão dos reinos europeus sob o franco-germânico Carlos Magno criou o Sacro Império Romano-germânico e instituiu a caça a todos contrários ao credo de Nicéia.

Pelagianismo: fundado por Pelagius Bretto (354-420 d.C.), monge Bretão do território Romano no sul da Inglaterra. Seu nome significa “das ilhas britânicas” e pode ser um pseudônimo. Provavelmente era irlandês, do grande clã dos Scotts. Devido à pregação vigorosa e modo ascético de vida, era considerado “santo” mesmo pelos opositores (como Sto Agostinho). A doutrina pregava que os homens podem servir a Deus ou não, mas são auxiliados pela Graça em toda boa obra, que é fundamentalmente diferente da perfeição moral (João 8.11). As obras más seriam resultado de má conduta exclusivamente humana, dessa forma cabendo ser julgadas pela justiça comum dos homens. De forma análoga, Jesus seria influencial para a humanidade através dos seus bons exemplos de conduta. Foi considerado heresia em 430 d.C. por atribuir aos homens a responsabilidade pela sua salvação. mas há relatos de membros até o séc. 14.

Celtas: o Cristianismo Celta não surgiu como um movimento, mas foi uma combinação da evangelização dos Pictos por missionários da diocese de Alexandria, o esfacelamento de Roma Ocidental e uma geração de missionários nativos das ilhas Britânicas, imersos nos costumes dos chefes de clãs locais. Já no séc. 5, os Pictos adaptaram o Cristianismo a um sistema descentralizado, guerreiro e aliado às lideranças de clãs. Essa nova estrutura formou grupos Cristãos informais, atuantes na educação dos jovens adultos, avessos a hierarquias, que valorizavam costumes Judaicos, transformavam penitentes em missionários e, sobretudo, eram separados da renascente autoridade Romana. Tal sistema foi fortemente atacado pela conversão dos Anglo-saxões (vikings do leste Britânico) ao Cristianismo Católico-romano. Após séculos de disputas territoriais, os Cristãos Celtas acabaram conquistados pelos Anglo-saxões no séc. 8. Apesar disso, as ilhas romperiam sua aliança com Roma no séc. 13.

Nestorianismo: fundado por Nestorius, bispo de Constantinopla (428-431 d.C.), pregava um Jesus formado por duas naturezas imiscíveis, uma humana e outra divina. Assim, Maria seria mãe da parte humana de Jesus, enquanto Deus Pai seria o gerador único da parte divina. O movimento começou em Edessa (Turquia) e foi considerado herege em 431 d.C., abrigando-se sob a proteção e tolerância dos Persas. Durante a expansão islâmica, a Igreja Nestoriana foi propagada para Índia e China. Os movimentos políticos no séc. 13 (em especial as Cruzadas) destruíram as Igrejas Nestorianas no Oriente Médio, isolando esse secto Cristão no Oriente.

Catarismo: movimento Gnóstico que surgiu do Paulicianismo na Armênia (650 d.C.) e se propagou para a diocese de Constantinopla, para o norte da Itália e sul da França (séc. 12). O movimento desviava-se bastante do Cristianismo de Nicéia por separar os homens e as forças do universo em divinas / boas / espirituais e satânicas / más / carnais. Os homens se aproximavam de Deus através de várias reencarnações até adotarem uma vida ascética (que não diferenciava homens e mulheres) e passarem por um ritual chamado Consolamentum. Após isso, eram considerados puros ou perfeitos. Também negavam que qualquer coisa material (como um pão ou vinho) pudesse conter a essência divina. Por volta de 1150 d.C., os Cátaros haviam organizado seu próprio bispado, que não se submetia a Roma / Sacro Império Romano-Germânico. Assim, no começo do séc. 13, o papa excomungou os Cátaros - nobres, religiosos e seguidores - direcionando uma cruzada contra eles para exterminar a todos. Cerca de 20 000 foram mortos nessa expedição e a Inquisição foi iniciada para caçar os restantes, autorizando que oficiais de Roma se apossassem das terras dos nobres Cátaros. O último nobre foi executado em 1321, mas a estrutura da Inquisição foi direcionada a qualquer outra possível traição ao papa, ao Império ou ao Cristianismo de Nicéia.

Fraticelli: no séc. 10, o monge Bernard de Clairvaux teve sucesso ao associar o “modo Cristão de viver” com trabalhos no campo, fundando mosteiros em áreas rurais. Essas comunidades aproximaram a Igreja das populações na Europa, de modo que o número de Cristãos aumentou muito. Semelhantemente, Francisco de Assis no séc. 12 convocou os Cristãos para se desfazerem de suas posses e viver do que pudessem plantar ou ganhar, o que foi visto como libertário dentro de uma tradição de religiosos nobres, poderosos e abastados. Os Fraticelli, Franciscanos Espirituais ou Pequenos Irmãos surgiram como ápice desse movimento, denunciando a riqueza da Igreja como escandalosa, pregando a pobreza absoluta, uma vida asceta e negando os sacramentos de religiosos ricos, incluindo o papa. Por repudiarem as hierarquias da Igreja Católico-romana, foram declarados hereges em 1296, perambulando por diversos reinos até retornarem à Itália como um grupo fundamentalista separado da Ordem dos Franciscanos. No séc. 14, a Inquisição condenou vários dos membros à morte.

Waldensianismo: fundado por Peter Waldo, comerciante alemão que, em 1173, desfez-se de todos os bens e uniu-se à ordem dos Homens Pobres de Lyon, passando a pregar a pobreza como caminho até Deus. Por volta de 1180, Waldo traduziu o Novo Testamento para o Francês. Ele organizou missionários que espalharam o movimento pelo sul de França e Alemanha. Em 1184 foram excomungados como hereges e perseguidos, mas conseguiram apoio de príncipes alemães que repeliram militarmente a cruzada contra eles em 1487. Na França, entretanto, os Waldenses foram massacrados. Por acreditarem no ministério de todos os crentes, na eqüidade perante Deus e no valor das reuniões de fiéis, os Waldenses uniram-se ao movimento Protestante no séc. 16, em especial concentrando-se no secto Metodista.

Beguines ou Mendicantes: movimento que surgiu a partir de mulheres solteiras na Holanda do séc. 13. Conforme o movimento cresceu, pessoas (sobretudo mulheres) aderiam informalmente a comunidades religiosas dedicadas à imitação de Cristo através da pobreza voluntária, cuidado aos doentes e pobres, assim como devoção religiosa. O ingresso e saída da ordem eram livres e informais. Algumas trabalhavam na indústria de tecidos, outras como professoras e assim a ordem estabeleceu-se em residências coletivas. Os grupos eram mais ou menos independentes e alguns chegaram a ter milhares de membros, criando um bispado e diocese próprios. Alguns grupos acabaram fechando-se e tendendo ao misticismo, o que levou a serem declarados hereges no séc. 14. Devido aos relatos de santidade de seus membros, vários grupos foram absorvidos por ordens Católico-romanas e outros desapareceram durante a Reforma Protestante, mas alguns mantém-se até hoje.

POR FIM, AS ARMAS

Em resumo, o militarismo dentro da Igreja Cristã surgiu do atrelamento de lideranças religiosas a poderes políticos. Trata-se de uma situação semelhante à conquista de Canaã no Velho Testamento e aos Fariseus durante o domínio Romano na Judéia, em outras palavras, muito longe do que Jesus representava. Essa infelizmente foi a direção tomada pelos clérigos da diocese Romana quando o poder imperial de Roma se desfez no Ocidente, dando lugar a reinos bárbaros. Os reinos foram re-unificados sob uma tutela religiosa que se importava sobremaneira com privilégios políticos, riquezas e que nomeou como clamor à Ortodoxia (pureza de culto) os seus empreendimentos militares contra reinos e outros grupos Cristãos. No séc. 14, a perseguição de Cristãos e nobres dissidentes havia se tornado uma ferramenta eficiente de enriquecimento da “monarquia” Católico-romana. Os vários movimentos libertários dentro desse sistema, nomeados como “hereges”, eram por outro lado tentativas de estabelecer as diretrizes religiosas de pequenos grupos (que também clamavam à Ortodoxia), às vezes com fundamentação nos ensinos e exemplo (não teológicos) de Jesus, às vezes nem tanto.

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ARQUIVOS PARA SEREM QUEIMADOS EM PRAÇA PÚBLICA

Arianism - wikipedia
Beguines and Beghards - wikipedia
Catharism - wikipedia
Fraticelli - wikipedia
Nestorianism - wikipedia
Waldensians - wikipedia