sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Obscurantismo vs. Cristianismo


Capa do Epistolæ Obscurorum Virorum (Cartas de Homens Obscuros), publicado em 1515-1519 por Johann Reuchlin


A palavra 'obscurantismo' é entendida hoje como a restrição proposital do conhecimento, a si mesmo ou a outros. Esse nome passou a ser largamente usado desde o séc. 18, com uma revolução do método científico que deu aos homens conhecimentos sobre as transformações químicas, gases - e daí os primeiros motores, astronomia e a eletricidade. Muitos, de repente, tiveram a certeza de poderem descobrir por si mesmos qualquer coisa no Universo. 

Não descobrir 'por si mesmo' significava que o conhecimento ou ciência seria herdado ou concedido de alguma fonte divina. No mundo Cristão, seria o insight provido por Deus sobre as questões mundanas, totalmente em acordo com as Escrituras.

Curiosamente, o nome 'obscurantismo' surgiu em uma sátira que diversos intelectuais fizeram sobre o intento de um monge alemão em destruir as cópias do Talmude judaico, no começo do séc. 16. O Talmude era visto como uma deturpação do entendimento de outra escritura judaica, que chamamos Velho Tratamento. Ou, pelo menos, esse era o argumento para encomendar a queima das obras.

Mais ou menos desde então, muitas ações da Igreja foram chamadas de obscurantistas. O propósito deste texto é levantar o que há de verdade e inverdade nisso.

A IGREJA ANTI-OBSCURANTISTA

Enquanto funcionou sob a tutela de Roma Ocidental (sécs. 4 - 6), a Igreja se tornou um pólo educacional. Grandes pensadores como Justinus de Roma (100-165 d.C.), Irenaeus de Lyon (130-202 d.C.), Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), Tertulliano de Cartago (155-240 d.C.) e Santo Agostinho (354-430 d.C.)¹ encontraram no ambiente religioso a estabilidade para produzir suas obras. Também foi através dos mosteiros e abadias que a educação greco-romana chegou à Europa Ocidental.

Quando o Império Ocidental se desintegrou, ocupado por povos menos educados, as províncias Romanas foram deixadas sem a tecnologia Romana (nem meios de reproduzir ela). Os mosteiros Beneditinos passaram a ser a única estrutura educacional existente. Por volta do séc. 8, boa parte das pessoas com recursos suficientes estudava nesses mosteiros. A adesão à vida religiosa era temporária: a partir de doações da família à ordem religiosa, o jovem era admitido como noviço e podia permanecer na vida ascética dos monges até que resolvesse sair. De fato, a maioria retornava às ocupações dos seus clãs para substituir os mais velhos como senhores de terras.

Nesses mosteiros medievais desenvolveram-se tecnologias como rodas-d'água, ferraduras, criação de peixes, rotação de culturas nos campos, óculos, relógios mecânicos e a produção de cervejas a partir de cereais. O aproveitamento frutífero da Natureza era visto como um dom divino de sabedoria, e oferecer esse conhecimento aos outros era uma demonstração de caridade. Não por acaso, foram ordens religiosas que administraram as primeiras universidades do Ocidente e até fundaram as primeiras escolas nas Américas.

A NOMEAÇÃO DOS APÓCRIFOS

Os escritos Cristãos circulam desde o séc. 1. Num primeiro momento, que se estendeu até o séc. 3, não havia o que hoje chamamos de um 'códice sagrado'. Diversos autores escreveram suas próprias versões dos Evangelhos e das cartas teológicas de Paulo. Boa parte desse material nem mantinha a linha teológica seguida pelos supostos autores. Por exemplo, cerca de metade das cartas de Paulo se contrapõe a conceitos da outra metade, tais como a manutenção de classes ou estratos sociais, além do papel das mulheres dentro da Igreja.

Um exemplo disso é a carta a Filemon, onde Paulo apresenta o caso do escravo Onésimo, que estava sob sua proteção. Paulo argumenta que Onésimo se tornara Cristão e o ajudava na prisão, encomendando que Filemon (dono de Onésimo) o tratasse como a ele mesmo. Na carta aos Colossenses, Paulo por outro lado manda que os escravos obedeçam a seus senhores (Colossenses 3.22). Hoje acredita-se que as cartas aos Efésios, Colossenses, 2ª Tessalonicenses, 1ª e 2ª Timóteo, e a Tito muito provavelmente não se originaram de Paulo. Os autores desses textos (assim como Lucas) tentaram romanizar Paulo, fazer de sua mensagem algo em acordo com as autoridades.

A negação de materiais bibliográficos (e sua ocultação do público), nesse início, teve o papel de selecionar obras que formassem um conjunto lógico, e que dessem suporte umas às outras, e também a uma instituição. Foi então que o nome 'apócrifo' ou 'oculto' passou a ser usado. Apócrifo era tudo aquilo que não se encaixava, que deveria ficar de fora, escondido do público.

CATEQUIZAÇÃO DAS MASSAS

Num segundo momento, o Cristianismo já fundido com o Império Romano se dedicou a difundir o credo imperial para os territórios na Europa e nas cercanias do Mar Negro. Um dos motores dessa difusão foi Santo Agostinho, educado na rica Cartago, que tratou de explicar Deus para as audiências Gregas. Agostinho era um pregador e argumentador poderoso. Mas entre os detalhes de sua preparação, segundo ele mesmo, estava a crença de que o conjunto total do Cristianismo seria chocante e ininteligível aos ouvintes. Por isso, ele intencionalmente desviava de certos temas ou conteúdos.

Tal estratégia e justificativa ainda são muito usadas. Faltaria habilidade dos ouvidores para compreender 'corretamente' os detalhes de uma pregação, ou mesmo elementos da fé que apoiam. Afinal, como representado no exemplo dos seguidores de Coré (Números 16), há eleitos de Deus para interpretar Suas palavras e estes não devem ser questionados. Dar elementos para questionar seria como estimular disputas.

A passagem da 'Igreja agência educacional' para a 'Igreja perseguidora de conhecimentos', ambas até convivendo num mesmo local e tempo, como se pode imaginar, ocorreu pela via do poder. Começou na medida em que os mosteiros se converteram em abadias e se vincularam aos poderes imperiais. Do séc. 10 em diante, religiosos voltavam das Cruzadas, para serem autoridades, com habilidades sacerdotais e militares, além de pertencerem a clãs da nobreza. Alguns monastérios evoluíram para fortalezas. Houve não poucos casos de uma abadia financiar ou dirigir ataques armados a outras. Educar nobres era uma tarefa santa, mas os nobres lutam entre si; os santos de uns podiam ser nomeados como os demônios de outros.

Um ponto importante do Obscurantismo é que o exemplo da Igreja de Beréia (Atos 17.10-11) nunca foi útil a um sistema militar ou de dominação. Nos primórdios da Igreja Imperial, os Concílios foram estratégias para definir quais seriam os textos aceitos, como seriam ensinados e para quem. O 'para quem' foi bem marginal quanto ao público comum: no séc. 6 a Europa já era pelo menos 50% cristianizada, mas as primeiras traduções bíblicas para idiomas populares só apareceram nos sécs. 8 e 9. Embora algumas frases e eventos bíblicos fossem populares, apenas depois do séc. 16 houve realmente uma difusão texto. Até então, conhecer os Evangelhos privilégio dos religiosos que, por seu juramento de fidelidade à Igreja, seriam menos tentados a discordar do entendimento institucional.

MUDANÇAS DE RUMO

A Reforma Protestante, no séc. 16, foi inicialmente um poderoso movimento anti-obscurantista. Os defensores da Reforma argumentavam que a Igreja Católica mantinha seus fiéis alheios às Escrituras, substituindo a mensagem de Cristo por interesses mesquinhos. De fato, várias criações Católicas como o Purgatório, a paga de tributos pelas almas dos mortos e a bênção dos doadores de grandes fortunas eram famosas trocas do texto Cristão por criações convenientes.

Qualquer língua além do Latim ou Grego eram consideradas seculares (não religiosas), desde que a Igreja se uniu funcionalmente ao Império Bizantino, no séc. 6. Por isso, a Bíblia só era copiada em Latim ou Grego Koiné (de Alexandria). No séc. 8, apareceram uma tradução de João para o idioma inglês e outra de Mateus para o alemão. No séc. 11, época das Cruzadas, apareceram versões em inglês do Pentateuco e dos 4 Evangelhos. Nos sécs. 13 e 14 surgiram versões bíblicas completas em Francês e Tcheco. Pelo menos 1200 anos depois de Jesus!

A partir de uma tradução do texto completo para o Alemão, feita por Lutero, um dos líderes da Reforma, muitas outras traduções foram produzidas. Até contrariando os esquemas Coloniais do próprio séc. 16, produziu-se versões em línguas africanas e indígenas, nos séculos seguintes.

No séc. 18, durante a Revolução Francesa, os intelectuais acusavam abertamente o rei e a Igreja por ocultarem da população os problemas sociais alarmantes. Isso era verdade, assim como foi verdade na Revolução Russa em 1905. Desde o Sacro Império Romano-Germânico (de quem a Igreja Católica francesa descendia) e Roma Oriental (de quem a Igreja Ortodoxa russa descendia), a Igreja desqualificava problemas mundanos como fome, exploração e doenças em favor da busca da espiritualidade e uma permissão única das autoridades ao conhecimento. Não sem razão, muitos movimentos anti-obscurantistas, como o Iluminismo na França e o Socialismo na Alemanha/Rússia, também se tornaram anti-Cristãos.

O Socialismo alemão, por exemplo, se valeu da educação de trabalhadores sobre direitos e fluxos monetários para produzir uma quebra da aceitação de deveres. O movimento das elites em combater esse tipo de educação como algo maligno incluiu a Igreja demonizando o movimento. Para hilaridade geral, um dos movimentos 'Socialistas' mais antigos foi a comunidade dos Essênios perto do Mar Morto, onde possivelmente João Batista teria se instruído, antes de ‘preparar os caminhos do Senhor’. E outro foi a comunidade Cristã de Jerusalém descrita no livro de Atos dos Apóstolos (Atos 2.44-47).

EVOLUÇÃO

O Cristianismo nasceu dentro do Judaísmo, numa época de conflitos políticos e inicialmente aceitando a cosmogonia judaica. Ou seja, os Cristãos eram párias dos Judeus por sua rejeição aos mestres Saduceus/Fariseus, e não por seu entendimento de mundo. Para os primeiros Cristãos, estava OK a formação do homem a partir do barro (Adama, em Aramaico), um mundo de terra plana sobre o grande mar subterrâneo e embaixo do oceano celestial.

Diversas contendas também surgiram entre a Igreja e a Ciência, como resultado da revolução metodológica. A Torah judaica foi canonizada como livro sagrado, anunciante de Jesus, e então seus conceitos sobre o funcionamento do mundo passaram a duelar com a tradição de cada povo e as descobertas científicas. Que absurdo os Bwiti africanos guardarem os ossos de seus antepassados! Que terrível uma luz produzida por eletricidade! Embora a maior parte dos duelos Igreja-Ciência diga respeito ao Velho Testamento, que é a Torah judaica, foi a Igreja Cristã quem mais se posicionou contra a Ciência.

Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, por exemplo, usaram medições astronômicas para deduzir que a Terra orbitava o Sol, e não o contrário. Nesse mesmo séc. 16, Vasco da Gama faria sua viagem ao redor do mundo, provando que se tratava de uma esfera e não um plano. Esse modelo desafia coisas como o livro de Josué, quando o Sol e a Lua foram ordenados a parar no céu.

Josué, cap. 10
12. Josué falou ao Senhor no dia em que ele entregou os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse em presença dos israelitas: Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu, ó lua, sobre o vale de Ajalon. E o sol parou, e a lua não se moveu até que o povo se vingou de seus inimigos. Isto acha-se escrito no Livro do Justo. O sol parou no meio do céu, e não se apressou a pôr-se pelo espaço de quase um dia inteiro.

Ainda que a tradução do hebraico tomada pudesse ser problemática², ela foi amplamente abraçada como verdadeira. Num mundo que girasse feito peão ao redor do Sol, com a Lua orbitando em volta, parar os astros no céu seria desastroso. Por isso, jamais Copérnico, Galileu ou mesmo Vasco da Gama poderiam estar corretos. Seus dados, raciocínio e mesmo espólios de viagem não poderiam ser obras de Deus, e não deveriam ser acreditados jamais. Eles próprios deveriam morrer, se não negassem suas obras (declarando-as como falsas) em público. Nenhum deles foi morto.

No séc. 19, outro elemento científico a causar ampla controvérsia foi a Teoria da Evolução. A Torah judaica começa justamente com Deus produzindo a Terra e os seres tais como são atualmente. O homem, em especial, foi feito do barro. Como então os cientistas poderiam dizer o absurdo de animais e plantas produzidos a partir de outros seres ancestrais? Mesmo em pleno séc. 21, esse embate quanto à Evolução existe: um verdadeiro 'crente' (em Jesus?) é entendido como alguém que deveria rejeitar por completo as evidências científicas nesse quesito, ainda que possa recorrer às mesmas evidências e metodologias em muitos outros assuntos. Poderia até mesmo consumir levedo transgênico num pão feito com trigo modificado geneticamente, assado num forno de microondas.

ESCONDENDO A BÍBLIA NA IGREJA

Muitos religiosos (e não apenas Cristãos) chamam a atenção para um mal hábito dos processos de conversão. 'Conversão' é o nome Cristão usado para a adesão de uma pessoa a um credo. Nesses processos, é comum que as pessoas realmente não vejam o objetivo, mas algo que os missionários apresentam e lhes parece bom. Nalguns lugares, missionários bem vestidos fazem pensar que o credo proporcionará riqueza. Noutro, autoridade e poder. Noutro ainda, uma boa aparência. Em muitas comunidades assoladas por dependências e problemas de saúde, o credo significa afastamento das drogas e tratamento.

O problema é que o Cristianismo, em especial, não trata disso. Jesus reuniu discípulos extremamente diferentes (e aparentemente eles até brigavam entre si) e tentou inspirar eles a ficarem juntos, apesar disso. Os grupos religiosos não costumam ser assim, e que bom haver muitos deles e bem diferentes! Não raramente, os líderes religiosos se associam a tais imagens problemáticas (desenhadas pelos novos convertidos) e se tornam estereótipos: "o rico", "o poderoso", "o curandeiro", "o juiz". A própria Igreja tem uma tradição de se associar com governos e fazer dos líderes 'novos representantes do Império', o que tem suas retribuições por parte dos governantes. A Igreja ordenou as Cruzadas, apoiou os reis Católicos em sua conquista dos povos nas Américas e na África. Depois também apoiou invasões e massacres nas duas Guerras Mundiais.

Dentro desse panorama, é importante notar que o Obscurantismo tem uma função social significativa: ele promove o poder de uns sobre os outros. Isso também acontece com o dinheiro, política, militarismo, racismo, etc. Dentro do Cristianismo, tal ferramenta de poder foi usada até como meio de manipular os ensinamentos bíblicos.

Primeiramente, houve a determinação de que apenas escritos Cristãos estariam em concordância com Deus, e portanto apenas esses seriam verdadeiros. Não raro, os demais deveriam ser destruídos. Em 325 d.C., o Concílio de Nicéia determinou que todas as obras de Árius³ fossem queimadas. Em 1240, o ex-judeu e monge franciscano Nicholas Donin de La Rochelle traduziu o Talmude para o latim e apresentou uma solicitação ao Papa para que as obras fossem queimadas, o que de fato aconteceu. Esse acontecimento foi quase idêntico ao de 1507, com o monge Johannes Pfefferkorn, a fonte para o livro Epistolæ Obscurorum Virorum. Em 1562, o bispo Diego de Landa ordenou a queima dos livros Maia, no México. No final do séc. 17, os Anglicanos eram famosos por queimar em público os livros Católicos, na Inglaterra. Esses são alguns exemplos de queimas ‘religiosas’, havendo outras famosas, como os Nazistas queimando livros ‘Comunistas’ na Áustria. Tal prática marcou a fase de cristianização da Europa, perdurou na retomada dos territórios Mouros e se estendeu para as batalhas de dominação promovidas por Espanha/Portugal nas Américas e na África durante o séc. 18. Mais recentemente, os sécs. 19 e 20 viram diversos movimentos Protestantes banirem toda literatura 'não Cristã' de comunidades fundamentalistas o suficiente para se apartarem da vida urbana.

Num segundo momento, precisamos entender o que seria uma literatura Cristã. Mesmo os Evangelhos foram produzidos muito depois de Jesus, então ser Cristão na prática era ser aceito pelas lideranças religiosas. Muitos livros foram condenados pelos Papas, Patriarcas e não foi diferente com os líderes Protestantes. Logo, para uma obra ser Cristã ela deve ser validada pela autoridade Cristã local. Por isso, o Obscurantismo foi usado, acima de tudo, para reforçar uma autoridade ou poder já existente. Talvez o exemplo mais pitoresco desse tipo de Obscurantismo seja a Bíblia dos Escravos. Tratou-se de uma re-edição do texto Bíblico feita no começo do séc. 19 para os escravos convertidos nos EUA, mas retiradas todas as partes que falassem sobre liberdade. A pregação aos escravos também era 'editada', para reforçar a importância de obedecer ao senhor. No caso, o Senhor-Deus e o senhor-dono eram figuras intercambiadas. Por definição, o dono era enaltecido como bom e justo (logo, suas maldades eram na verdade retribuições).

Mesmo hoje, ainda que exista uma lista enorme de pensadores Cristãos, a maioria absoluta dos fiéis jamais ouviu falar deles, nem ouvirá. Brennan Manning? Wendell Berry? Karl Barth? Huberto Rohden? Géza Vermés? Thomas de Aquino? Ugolino Brunforte?* São nomes desconhecidos do público religioso, bem mais afeito às 'invocações do poder de Deus'. Embora sejam/tenham sido claramente defensores da fé e exploradores do mundo espiritual dentro de suas teologias, há muito tempo não faz parte do funcionamento Cristão questionar e racionalizar, sobretudo o próprio Cristianismo. Mesmo no Protestantismo, as vezes em que esse questionamento apareceu resultaram em rupturas de grupos.

No mundo Judeu, a prática questionadora surgiu com a destruição de Jerusalém e o desaparecimento dos Saduceus, supostamente descendentes dos Levitas da época de Salomão, e na prática descendentes dos Macabeus. Os apontamentos e discussões produzidos pelos Rabinos deram origem ao Talmude. Já entre os Cristãos, a aliança Igreja-Estado cristalizou uma obediência militar que repudia o questionamento filosófico. Para defender-se desse questionamento, a Igreja desembocou em ações obscurantistas.

PANDEMIA DE 2020

A intrusão de religiosos Cristãos em diversas áreas do conhecimento produziu frutos como as belas músicas de Antônio Vivaldi e também os estudos de Gregor Mendel, pai da Genética. Mas geralmente essa intrusão é perigosa. Seguidos por fiéis como se fossem canais de comunicação com o divino, facilmente os líderes religiosos usam de seu status social para afirmar idéias perante um público pouco instruído - ou que até substitui seus conhecimentos por falas de uma autoridade. No Brasil são conhecidas atuações religiosas para moldar práticas legais, políticas, psicológicas e médicas. Longe do curandeirismo que permeia todas as culturas, os líderes religiosos se valeram atualmente como validadores (ou não) de práticas dos profissionais da Saúde.

Muitas igrejas, desde a disseminação maciça do vírus SARS-COV-2, mais vulgarmente 'novo coronavírus', prestaram grandes des-serviços à Saúde Pública. As más ações foram desde a afirmação de que Deus protegeria todos do grupo religioso (logo não deveriam apostatar da fé usando máscaras e evitando contato social), até a prescrição de orações curativas, exorcismos em pacientes de Covid-19 e venda de amuletos que poderiam curar os doentes, e por fim a insistência na continuidade de cerimônias coletivas. Em diversos países do mundo, houve tanta disseminação de novos casos da doença nas igrejas quanto em eventos esportivos, bares, etc porque, basicamente, o que tornava os ambientes perigosos era a quantidade e proximidade das pessoas. Não houve qualquer tipo de proteção divina dentro dos templos.

Diante da necessidade de encerramento temporário das atividades coletivas, as igrejas Cristãs em geral preferiram arriscar a vida de seus fiéis. Foram mais enfáticas ainda aquelas com acesso a autoridades políticas. Com ambas as lideranças concordando quanto a arriscar as pessoas e não avisar sobre (e nem mesmo reconhecer) os riscos, milhares de casos da doença foram rastreados com sua origem em um único culto religioso. Não foi diferente na época da Gripe Espanhola, apesar dos mais de 100 anos de avanços desde então.

Onde está a restrição ao conhecimento? Poucas religiões no mundo mantém ritos que ainda dependem de um espaço sagrado, que não podem ocorrer fora dali. O Judaísmo tinha essa relação com o Templo de Jerusalém. O Cristianismo, em especial, não mantém tal ligação com um local sagrado. Mas tal detalhe geralmente é omitido das discussões (como fazia Santo Agostinho), das pregações, das conversas até, porque é institucionalmente valioso cultuar os espaços. Os templos são referidos como 'casa do Senhor'. Fora da igreja (espaço físico), aceita-se a perda do contato com Deus, em detrimento de ensinos do próprio Jesus (João 4:20-24).

A QUEBRA

Há uma cisão lógica entre a Religião e a Ciência, bem conhecida. De um lado, o conhecimento é fruto de um entendimento do texto sagrado e jamais poderá discordar de tal texto. De outro lado, o conhecimento nasce da lógica aplicada aos dados experimentais, e questionada tanto quanto for possível. A base para o conhecimento é uma base, e somente isso. Inevitável que o estabelecido e o mutante se contraponham... Mas é necessário, num mundo de fé, viver com ambos. Boa parte das pessoas não faz a menor idéia de como seus próprios telefones funcionam.

O caminho obscurantista sempre foi a supressão da diferença, ou da discussão, declarando outras opiniões como falsas, outros trabalhos como falsos, até a evidência experimental como falsa. Como mostrado acima, mesmo partes do texto ‘sagrado’ precisam ser escondidas para manter privilégios e poderes. Questões como a sabedoria embutidas nos ensinamentos bíblicos, interferência de Deus na história humana e a significação de Jesus no funcionamento das sociedades são altamente discutíveis e de proveitosa discussão, mas quase sem exceção tidas como já resolvidas em contextos obscurantistas. Geralmente essa 'discussão já resolvida' é simplesmente um pacto entre autoridades, um acordo de 'toma lá, dá cá'. Para vergonha do Cristianismo, tanto o nome de Cristo como a Verdade pregada por Ele foram e são comumente usados em favor dos mesmos poderes que determinaram Seu assassinato.

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¹ Justinus de Roma defendeu o Cristianismo perante o Senado Romano, argumentando que as características do Logos ou Mundo Ideal se cumpriam em Deus e Jesus era um transmutador entre esse 'mundo divino' e o 'mundo material'.

Irenaeus de Lyon atuou fortemente contra as seitas Gnósticas. Ele defendia que as experiências visionárias jamais poderiam substituir a tradição dos apóstolos e os Evangelhos. Ele é a referência mais antiga a citar juntos Mateus, Marcos, Lucas e João, bem antes que houvesse um livro emendando todos esses textos.

Clemente de Alexandria se dedicou à conversão dos Gregos para o Cristianismo. Ele descreveu uma antropologia da religião grega, apresentando a crença nas forças da Natureza, depois em seres antropológicos, depois em mitos semi-divinos e finalmente em deuses que apenas serviram para desmembrar os atributos de Deus, juntando -os com todo tipo de falha moral dos homens.

Tertuliano de Cartago elaborou uma das 1as metafísicas do corpo, espírito e Divino. Esse foi um assunto importante na Cristandade, desde então. Segundo ele, havia um 'material' que compunha o Pai, Filho e Espírito Santo. Algo semelhante a isso tinha sido dado a Adão, mas foi poluído pelo pecado e o material 'sujo' espalhou-se para cada homem desde então. Ele via o contato religioso como uma 'purificação', à qual tinham chegado os fundadores da Igreja.

Santo Agostinho compreendia a dualidade corpo-espírito no sentido Plantonista, isto é, uma criação imperfeita e uma perfeita, inimigos entre si. Agostinho elaborou o conceito de Pecado Original e argumentava pelo distanciamento do homem de tudo que fosse carnal.

² Traduções, principalmente a partir de um idioma antigo que não usava vogais nem separações entre palavras, sempre foi problemático. Muitas vezes, palavras diferentes eram escritas igual, e resta comparar trechos para ‘deduzir em aproximação’ o significado das expressões. Uma teoria curiosa sobre esse evento de Josué fala sobre a palavra usada para 'parar', que é só aparece repetida no Salmo 38:

Salmos, cap. 38
7. De fato, o homem passa como uma sombra, é em vão que ele se agita; amontoa, sem saber quem recolherá.

Obviamente, aqui se trata de 'escurecer' e não parar. Escurecer o Sol indicaria um eclipse solar prolongado na região da Judéia. Eclipses são previsíveis, e houve um evento assim em 30/out/1207 a.C.

³ Arius (256-336 d.C.) foi um líder religioso de Alexandria, no Egito. Sua pregação era de que Deus Pai estava acima e comandava tanto o Filho como o Espírito Santo. Essa idéia não era apenas dele, mas corrente de uma grande parte dos Cristãos. Apesar do Edito do Concílio de Nicéia, no séc. 7 ainda havia relatos de obras de Arius na Espanha.

* Brennan Manning (1934-2013) foi um ex-padre que defendia conceitos profundos de fé desvinculados da prática religiosa, traduzidos no relacionamento das pessoas com Deus e com as outras pessoas. Sua obra mais famosa é o Evangelho Maltrapilho.

Wendell Berry é um escritor e fazendeiro que analisa as relações entre os homens e o ambiente com base em princípios Cristãos. Sua obra mais famosa é The Unsettling of America - A inquietação da América.

Karl Barth (1886-1968) foi um ex-pastor argumentando pela desvinculação entre a Graça Divina e fatores culturais ou políticos. Ele foi um grande opositor de Hitler, na Alemanha. Sua obra mais famosa é Epístola aos Romanos, um comentário sobre a carta de Paulo.

Huberto Rohden (1893-1981) foi um ex-padre que se dedicou à transcrição filosófica do Cristianismo, isto é, às conexões entre o Cristianismo e outras religiões, assim como às Ciências em geral. Possui muitas obras famosas, entre elas "De alma para alma".

Géza Vermés (1924-2013) foi um estudioso do Judaísmo e Cristianismo, famoso por suas traduções de obras antigas e as pesquisas sobre a vida dos Cristãos no séc. 1. Ele foi um dos tradutores dos textos da famosa biblioteca Essênia encontrada nas cavernas de Qumram, às margens do Mar Morto. 

Tommaso d'Aquino (1225-1274) foi um teólogo Católico que traduziu as idéias de Aristóteles para o Cristianismo. Segundo ele, os homens só poderiam ser felizes/prósperos na medida em que descobrissem o seu propósito segundo Deus. De estudo obrigatório na formação eclesiástica, sua obra mais famosa é Suma Teologica.

Ugolino Brunforte (1262-1348) foi integrante do grupo de Francesco d'Assisi e um de seus biografistas. Nos contos de Brunforte, Francesco e seus nomes pregavam avidamente a humildade e irmandade entre os homens, revelando Cristo como cerne dessa comunhão. Sua obra mais famosa é Fioretti (Pequenas flores).

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PAPÉIS QUEIMADOS NOUTRO DIA

FOSTER, Frank Hugh. Theological Obscurantism. The American Journal of Theology, v. 15, n. 1, p. 96-106, 1911.


Bible translations - wikipedia


CARTWRIGHT, Mark. Medieval Monastery, ancient.eu, 14/dez/2018.

Irenaeus - wikipedia

Justin Martyr - wikipedia

Obscurantism - wikipedia

QUADRI, Sayed A. COVID-19 and religious congregations: Implications for spread of novel pathogens. International Journal of Infectious Diseases, 2020.

REUCHLIN, Johann. Epistolæ Obscurorum Virorum. Ed. Chato & Windus, 1909.

STETZER, Ed. Beware of Obscurantism, christianitytoday.com, 8/jul/2014.


WIETHOFF, William E. The obscurantist design in Saint Augustine's rhetoric. Communication Studies, v. 31, n. 2, p. 128-136, 1980.

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