sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

SOBRE A BENÇÃO AOS CASAMENTOS HOMOSSEXUAIS

Recentemente, muito falatório circulou sobre a determinação do papa Francisco I sobre a benção aos casais homossexuais. Em geral, trataram-se de teorias sobre a Igreja Católica estar abrindo mão de uma exclusão antiga aos casamentos de pessoas do mesmo sexo - não no sentido de preconceito ou afastamento dos locais sagrados (como ocorre nas igrejas Protestantes / Evangélicas) - mas no sentido de não reconhecer uniões homossexuais.

O LADO DA LEI

No Brasil, a união civil de pessoas do mesmo serviço foi possibilitada pelo Projeto de Lei 580/07, do ex-deputado Clodovil Hernandes, onde a única condição imposta era de que as pessoas fixassem em contrato seus patrimônios. Sem haver ainda a anexação à Constituição, entretanto, a bancada Evangélica / Bolsonarista luta contra tal resolução através de outros projetos de lei, um do ex-deputado Capitão Lucínio Castelo de Assumção (PL) e outro do deputado pastor Francisco Eurico da Silva (também PL / Assembléia de Deus). Entre os argumentos contra a possibilidade de casamento homoafetivo estão que “a relação homossexual não proporciona à sociedade a eficácia especial da procriação" e a alegação de que o banimento da homossexualidade do catálogo de transtornos mentais (lá nos idos de 1973) foi uma intervenção político-ideológica na ciência.

Sinceramente, num planeta com 8 bilhões de pessoas, é difícil sustentar o valor inestimável da reprodução humana. Além disso, nenhum cientista (geralmente depreciados que são pela Igreja) apoia, hoje em dia, o tratamento medicinal da homossexualidade.

O LADO RELIGIOSO

A posição da Igreja como hostil aos homossexuais descende dos escritos moralistas de Paulo, lá nos anos 50 d.C.

Carta aos Romanos 1.19-32
Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou.
Porque as Suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o Seu eterno poder, como a Sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis.

Tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças. Antes, em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. E mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, aves, quadrúpedes e répteis.

Por isso também Deus os entregou às concupiscências de seus corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos entre si.
Mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador, que é bendito eternamente. Amém.

Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. Semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.

Como eles não se importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm. Estando cheios de toda a iniqüidade, prostituição, malícia, avareza, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade; sendo murmuradores, detratores, aborrecedores de Deus, injuriadores, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais e às mães; néscios, infiéis nos contratos, sem afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia.

Conhecendo a justiça de Deus (que são dignos de morte os que tais coisas praticam), não somente as fazem, mas também consentem aos que as fazem.

A rejeição aos homossexuais aparece no antigo sistema dos Fariseus (lá no Antigo Testamento), o que direciona para esse lado de maior rejeição as igrejas Evangélicas, junto com Testemunhas de Jeová e Mórmons. Os Protestantes Tradicionais/Históricos, Católicos, Muçulmanos e Judeus estão no meio do caminho, enquanto os Budistas e religiões Africanas situam-se no extremo de maior aceitação. Muitas vezes, os homossexuais são associados ao comportamento social da antiga cidade de Sodoma,destruída "devido a seus pecados" (Gênesis 19.1-11), sobre a qual o profeta Ezekiel escreveu:

Ezekiel 16.49
Eis que esta foi a iniqüidade de Sodoma, tua irmã [irmã de Gomorra, ambas incendiadas]: Soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do pobre e do necessitado.

No texto de Levítico, parte do longo código ditado a Moisés), os homossexuais estão excluídos daqueles aceitos por Deus (Levítico 18.22 e 20.13). Em sua 1ª Carta aos Coríntios, Paulo também listou os homossexuais entre aqueles que não entrarão no Reino de Deus, junto com idólatras, bêbados, ladrões e avarentos (1ª Coríntios 6.9). No mais atual Catecismo da Igreja Católica (1992, papa João Paulo II), a homossexualidade aparece descrita como "ato intrinsecamente desordenado", "contrário à lei natural porque fecha o ato sexual ao dom da vida", "em caso algum podendo ser aprovado". Ao contrário das igrejas mais Pentecostais, que atribuem a homossexualidade à possessão demoníaca ou afastamento do Espírito Santo, dentro da Igreja Católica apenas o ato sexual e os trejeitos são vistos como pecaminosos. Ao mesmo tempo em que a Igreja Católica afirma ser contra titular os homens por seu comportamento sexual, aos homossexuais ("dentro do armário") é prescrita a castidade eterna como forma de evitar o pecado que lhes tenta.

UM PAPA DESAFIADOR?

Diante desse posicionamento da Igreja Católica como hostil à união homossexual (hostilidade defendida fervorosamente pelos papas João Paulo II e Bento XVI), a declaração de Francisco I com relação à benção de homossexuais causou forte alvoroço. Cinco cardeais direcionaram ao "Dicastério para a Doutrina da Fé" uma carta contendo 5 "dubias", ou questionamentos acerca do posicionamento do papa. Trata-se de um novo nome para a "Suprema e Sacra Congregação do Santo Ofício", também já chamada "Suprema e Sacra Congregação da Inquisição Universal da Idade Moderna". O mesmo orgão que comandava as queimas de hereges e bruxas na Idade Média. Essa perguntas eram: (1) se devemos reinterpretar a Divina Revelação com base nas mudanças culturais e antropológicas; (2) se a prática de bênção das uniões com pessoas do mesmo sexo estaria de acordo com a Revelação; (3) se o Sínodo dos Bispos (assembléia que ajuda o papa nas diretrizes do Concílio Vaticano II, de aproximar a Igreja das comunidades desasistidas) é um órgão constitutivo da Igreja; (4) se a teologia da Igreja mudou e mulheres poderão ser sacerdotes; (5) se o perdão é um direito humano e o arrependimento não seria necessário para receber a benção.

Francisco I não apenas respondeu publicamente as questões no dia seguinte, mas juntou seus pareceres em forma detalhada no documento “Fiducia supplicans” (Confiança do Suplicante) publicado pelo Vaticano. Nas respostas e no texto, o papa abordou com "luvas de pelica" e admirável diplomacia a questão dos homossexuais. No fim, seu pronunciamento foi muito menos chamativo do que as teorias levantadas a respeito:

1) Não há nenhuma intenção da Igreja Católica em consentir ou abençoar uniões homossexuais. O casamento continua entendido como um sacramento da união de homem e mulher para a procriação. Assim, a união homossexual nem mesmo é considerada um "casamento" pela Igreja Católica.

2) A Igreja afirma não ter qualquer poder sobre relações que fogem ao prescrito na Bíblia. Isso se estende a todas as relações sexuais diferentes do casamento.

O ponto de Francisco I foi simplesmente estender o conceito de benção para um propósito da Igreja em aproximar os homens de Deus. A benção, segundo ele, é uma ferramenta para essa aproximação, pois Jesus abençoou as crianças, assim como os apóstolos no momento de sua Ascenção. Sem analisar nenhum dos dois grupos a respeito de sua retidão moral. Criticando uma postura elitista da Igreja ao requerer perfeição moral prévia das pessoas para aplicar aquilo que foi concedido gratuitamente por Jesus, o papa retratou a benção como algo que deve ser concedido a todos aqueles buscando a ajuda de Deus, independente de sua condição.

Mas também os homossexuais? Sim, a todos os homens que aceitam sua condição imperfeita e pedem a ajuda de Deus. As bênçãos têm como destinatários as pessoas, objetos de culto e devoção, imagens sagradas, lugares de
 vida, de trabalho e de sofrimento, os frutos da terra e do trabalho humano. No entanto, Francisco I ressaltou a diferença entre benção e sacramento, ou ato oficioso da entidade Igreja em aprovar e fortalecer algo. A benção gratuita não deve em momento algum se assemelhar a um sacramento: nem nos momentos em que esse é aplicado (como um casamento), nem com as mesmas roupas ou significados. Então os homossexuais podem ser abençoados, mas não se trata de estender o sacramento do matrimônio a uma união entre pessoas do mesmo sexo.

DETALHANDO AS COISAS

É interessante observar que a referência bíblica sobre a condenação dos homossexuais (e isso significa algo vago, que se estende na prática desde a perseguição e imposição de uma "cura gay pela fé", até afastamento dos espaços religiosos ou direcionamento à castidade) parte das cartas de Paulo, enquanto a determinação do que seria uma benção parte dos Evangelhos narrando a vida de Jesus. Até antes de Francisco I, as duas coisas pareciam inconciliáveis. Assim como em muitas outras situações, essa "rachadura interna" advém da origem fragmentada do Cristianismo: Marcos reproduziu o que ouviu de Pedro; Mateus "super-heroidizou" Jesus; Lucas recolheu narrativas das pessoas; João escreveu algo talvez mais idealizado, que construiu das andanças de Jesus por entre os  Samaritanos; Paulo misturou elementos Fariseus e Gregos para satisfazer a um Espírito Santo de perfeição moral.

Jesus não pareceu se importar com perfeição moral em qualquer um dos quatro diferentes Evangelhos. Entre Seus escolhidos, estavam pessoas comuns, cheias de conflitos e defeitos: um acreditava em luta armada, o outro em salvar a própria pele, etc. Justamente daí vinha seu conflito frequente com os Fariseus, que associavam perfeição e privilégio moral / social / político com a proximidade de Deus. No arrebanhamento da Igreja por Roma, as cartas de Paulo (e talvez muitas delas não escritas por ele) tiveram maior peso sobre a teologia Cristã do que o próprio Jesus. Como reflexo disso, hoje vemos pregações nas igrejas Cristãs que ressaltam muito mais a morte de Jesus como Sacrifício Vivo do que elementos da Sua vida; Jesus se  tornou alguém para reverenciar e não para imitar - o que devemos imitar é a perfeição moral que Paulo extraía do Espírito Santo.

Nesse caminho que o Cristianismo tomou, os homossexuais (e mais ainda sua união religiosa) estão bem longe de serem aceitos. Obviamente existem excessões bem mais aparentadas com o Jesus que pregava aos pescadores e Samaritanos do que com o Paulo Fariseu Romano. Dentro dessas esferas mais altas das instituições, a Igreja Católica deu um pequeno passo, entendendo os homossexuais (institucionalmente falando) como dignos de benção.

Certamente nada incomodaria mais ao Criador das galáxias, nebulosas e tudo o que é vivo ou morto do que alguém com preferências pelo mesmo sexo satisfazer suas preferências em uma relação duradoura com quem ama.

---------------------------------

NOS PORÕES QUE NÃO SÃO DO VATICANO

Júnior, J. e Haje, L. Comissão aprova projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Camara.leg.br, 10/10/2023.

Brabo, P. Em 6 passos o que faria Jesus. Ed. Garimpo, 2009. Cap. 1.




Sbardelotto, M. Papa responde às "dubia" de cinco cardeais. Ihu.unisinos.br, 03/10/2023. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/632889-papa-responde-as-dubia-de-cinco-cardeais

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Em que dia Jesus nasceu

Peguei uma imagem do Carlos Ruas. Impossível descrever melhor o drama. Na esquerda Deus/Javé, no meio Zeus/Júpiter, na direita Odin/Anthony Hopkins.

Falar sobre o nascimento de Jesus é algo complicado em muitos aspectos. Cronologicamente, temos 3 fontes sobre Jesus: Paulo (que não conviveu com Ele nem Seu grupo, mas foi o 1º a escrever, por volta de 50 d.C.), Pedro (oral) -> Marcos -> Mateus -> Lucas (produzidos nessa ordem, que criam uma narrativa baseada, cada um, na narrativa anterior e mais algo próprio, feitas entre 70 e 100 d.C.) e João (que traça uma nativa própria, isolada das demais (aprox. 150 d.C.). Dentre esses Evangelistas, apenas Mateus e Lucas se preocuparam com o "Natal". Nos demais, Jesus chega ao texto bíblico já adulto.

UM POUCO DA HISTÓRIA DO NATAL 

As duas narrativas que temos sobre o Natal são semelhantes, mas não iguais. Em Mateus, trata-se de cumprir uma profecia de Miquéias sobre a cidade de Belém/Efrata (Miquéias 5.2). Um anjo aparece no sonho de José dizendo que Maria conceberia do Espírito Santo e seu filho deveria ser chamado Jesus e ser conhecido como Emanuel, além de Nazareno. "Uns magos vindos do Oriente" chegam em Jerusalém guiados por uma estrela, e depois rumam para Belém (ao sul), onde encontram o local do nascimento. Os presentes que trazem são ouro, incenso e mirra (esses eram produtos típicos da antiga rota-da-seda, que unia caravanas no curso litoral da China - Índia - Iêmen - Arábia - Palestina e Egito - Turquia - Grécia; quantos eram os magos, não saberemos jamais.

Em Lucas, o anjo Gabriel aparece ao sacerdote Zacarias para anunciar o nascimento milagroso de seu filho João (o Batista), depois aparece a Maria para anunciar que ela geraria o Filho do Altíssimo. José e Maria seguem de Nazaré para Belém, a fim de participar do Censo de Augusto, imperador Romano. Assim que Jesus nasce, fora da cidade, onde não havia hospedagem, uma multidão de anjos surge aos pastores no campo, convidando-os para ver O Salvador. Não há estrela, nem magos, nem presentes.

Em 1223, na cidade de Greccio/Itália, o monge Francesco (futuramente São Francisco de Assis) resolve encenar o nascimento de Cristo em praça pública, fazendo uma manjedoura de altar, com um boi e um burro amarrados a uma casinha de madeira e pedras, coberta e forrada com palha. Não havia nenhuma imagem de pessoas. A cena externa e sua pregação sobre um Jesus pobre e desamparado surpreenderam a ponto de ser comentada por muitos escritores e copiada até os dias de hoje.

A DATA NATALINA

O historiador judeu Sextus Julius Africanus (160-240 d.C.) datou a concepção de Jesus (como embrião) em 25/3 (início da Primavera e data em que ele afirmava que o mundo foi criado). Após nove meses no ventre de sua mãe, Jesus nasceria em 25/12. A festa nesse dia foi padronizada em 336 d.C., durante o reinado de Constantino I, quem legalizou o Cristianismo em Roma. Constantino colocou o novo feriado Cristão sobre vários feriados Romanos que coincidiam: (1º) a comemoração do solstício de inverno (no hemisfério norte, 21/12 marca a noite mais longa do ano, quando neva; no hemisfério sul, é o dia mais longo); (2º) era também o aniversário da divindade indo-européia Mitra, associada com a movimentação de todo o Zodíaco (o que hoje chamamos de movimento de precessão da Terra), luz e da lealdade militar; (3º) o Solstício marcava o dia do Solis Invictus, basicamente um culto ao Sol, do qual Constantino I era devoto; (4º) ao feriado se seguia a Saturnalia, festa em honra ao deus Saturno, durante a qual as pessoas festejavam com fantasias, bebiam muito e trocavam presentes).

Noutras palavras, a data do Natal não tem bases em Jesus propriamente dito, mas apenas se apoveitou de feriados Romano que foram resignificados. Para azar geral, os Evangelhos de Mateus e Lucas não especificam datas. Mas podemos dar um palpite de que 25/12 é o dia errado: considerando o clima da região de Israel, entre novembro e janeiro ocorre uma época bem fria e chuvosa, na qual ninguém (especialmente um casal com uma mulher grávida) seguiria de Nazaré para Belém através dos campos, muito menos receberia visitas de magos viajantes ou de pastores, porque nenhum animal de criação sequer estaria nos campos.

ESTIMANDO O NASCIMENTO DE CRISTO 

Os dois relatos bíblicos que temos, se pensarmos que eles de fato contém algo verídico sobre o Natal, por outro lado podem sugerir um momento para o nascimento de Jesus. Mateus cita o evento astronômico da estrela que guiou os magos do Oriente para o Ocidente. Lucas cita o Censo de Augusto, registrado sem ano preciso entre as muitas burocracias Romanas. Ora, o Censo (que não foi um processo rápido, mas um deslocamento de muitas pessoas em muitas regiões a fim de contabilizar uma possível força militar) foi decretado por volta de 8 a.C. e, contabilizando as votações do Senado e sua execução em províncias distantes, deve ter ocorrido em Israel entre 6 e 4 a.C., para encontrar em reinado todas os monarcas citados.

A pista seguinte é dada pela estrela. Alguns corpos celestes costumam ser bem significativos quanto ao seu brilho. Um deles é Vênus, nosso planeta mais próximo e "estrela" mais brilhante. Vênus é mais próximo do Sol do que a Terra, de forma que, ao anoitecer, ele sempre se mantém no Oeste. Seria uma bússola confiável nos desertos, porém não muito duradoura: Vênus geralmente é visto só até as 20h00. De manhã, Vênus reaparece no lado leste. Outra possibilidade é Júpiter. Trata-se de um astro muito brilhante que, entre 6 e 4 a.C., estava alinhado com a Terra e o Sol, ou seja, aparecendo fortemente durante as noites. Júpiter também se desloca para o Oeste durante a noite, podendo servir de bússola para alguém que fosse nessa direção. Observadores do céu (como eram as nações Persas de então) poderiam ter usado Vênus ou Júpiter como guia para chegar até Belém, mas talvez fosse pouco provável se referirirem a astros "costureiros" como indicativo de algo único em significado.

Um dos fundadores da astronomia moderna, Johannes Kepler (1571-1630), sugeriu que a Estrela de Belém pudesse ser algo como uma "nova", que é o nome dado a uma estrela explodindo. Nessa situação, pela qual só passam estrelas imensas, uma única delas pode produzir mais luz que toda a galáxia. São eventos raros e muito visíveis: o último foi registrado em 1997. Era uma boa teoria, mas carece de evidências práticas: quando uma estrela explode, ela destrói tudo a seu redor, incluindo outras estrelas, e deixa um imenso anel de poeira, que se expande com o passar dos anos, muitas vezes com um pulsar (o centro da estrela, que permanece emitindo pulsos de rádio). Não há nenhum resquício de nova que pudesse ter ocorrido por volta de 5 a.C. Além disso, os astrônomos Chineses da dinastia Han (206 a.C. - 220 d.C.) eram muito cuidadosos em suas anotações e não deixariam de registrar um novo astro de tal magnitude.

Isso deixa poucas opções para a tal estrela. Excluindo planetas e uma nova, a opção mais plausível (também pela dificuldade de provas em contrário) é o surgimento de um cometa. São astros às vezes bem notórios, brilhantes e grandes, com uma cauda que sempre aponta na direção do Oeste após o pôr do Sol. Alguns cometas são cíclicos, como o Halley, que se aproxima da Terra a cada 76 anos; outros são errantes e passam uma única vez pelo sistema solar.

COMETA DE BELÉM 

Citação de cometas no livro CHINESE MATHEMATICAL ASTROLOGY, de Ho Peng Yoke, 2003, com observações astronômicas antigas. "Po" é um cometa pequeno, pouco visível. "Sui" é um cometa grande.

Os astrônomos Chineses registraram um cometa pequeno em 12 a.C. (que confere com nosso conhecido Halley), um cometa gigantesco em 5 a.C. e outro pequeno em 4 a.C., ano em que Herodes I, rei da Galiléia, morreu. Este último pode ser descartado segundo Mateus, pois Jesus estaria então no Egito. O primeiro também pode ser descartado, pois Jesus não era ainda nascido. Justamente o cometa de 5 a C. corresponde às espectativas, sendo um astro novo e que chamou muito a atenção quando foi visto.

A datação Chinesa é precisa quanto aos dias: o grande cometa foi visto entre 9/março e 4/maio de 5 a.C., coincidente com a época da Páscoa, quando os pastores dormem nos campos mais quentes para proteger os rebanhos de ovelhas contra o ataque de lobos e chacais. O nascimento de Jesus na primavera é consistente com o relato de Lucas sobre uma visita de pastores em Belém, embora Lucas não mencione estrela alguma. Devido ao deslocamento quilométrico entre as terras persas e Jerusalém, isso colocaria o nascimento de Jesus em algum ponto no final de abril.

O cometa de 5 a.C., além de imenso, segundo a descrição Chinesa, também apareceu quando 3 planetas davam seu show no céu noturno: Marte, Júpiter e Saturno. Para astrólogos persas, isso certamente indicaria um evento grandioso no Oeste. Curiosamente, Johannes Kepler analisou os movimentos dos planetas e calculou seu alinhamento a cada 805 anos: segundo ele, em 1604, ano da Reforma Protestante; em 799 quando Carlos Magno foi coroado rei de toda Europa; em 7-6 a.C. quando Jesus nasceu; em 812 a.C. quando Isaías fez suas previsões; e em 1617 a.C. na época de Moisés. Ele não errou muito nas datas.

DEPOIS DO NASCIMENTO

Segundo Mateus, Herodes I inquiriu os magos sobre onde e quando deveria nascer o Messias. Logo após o nascimento de Jesus, um anjo apareceu nos sonhos de José e o alertou para fugir ao Egito, onde ficou até a morte de Herodes (4 a.C.). Nesse meio tempo, o rei mandou exterminar todos os meninos com menos de 2 anos. Já Lucas contra uma história diferente: não ocorre extermínio de crianças e aos 8 dias de vida Jesus chega ao Templo de Jerusalém para ser circuncidado. Ele volta com os pais todos os anos para a festa de Páscoa (o que parece ter feito diligentemente até seus últimos dias), até o episódio em que fica no Templo aos 12 anos, "ouvindo e questionando os doutores da fé". Já em Lucas 3.23 Jesus reaparece junto de João Batista, com 30 anos.

São detalhes bem díspares nos dois Evangelhos, sendo que os demais sequer mencionam uma infância de Jesus. Dada a importância que ambos dedicam para a linhagem de Jesus e o tempo em que compuseram seu trabalho (entre 70 e 100 d.C.), podem ser detalhes inventados ou coletados de forma a simplesmente preencher uma lacuna. Ambos os textos cumprem a função de atribuir ares heróicos ou proféticos para o o jovem Jesus, que caberiam a alguém revelando sua importância após os 30 anos. Mateus inclusive reproduz o extermínio de crianças da época de Moisés, enquanto Lucas associa Jesus com profetas em atividade no Templo, como Simeão e Ana bar Fanuel.

---------------------------------

Manuscritos de escritores vivos

Britannica - History and Society. Why Is Christmas in December?

HUMPHREYS, Colin J. The Star of Bethlehem, A Comet in 5 BC and the Date of Christ’s Birth. Tyndale Bulletin, v. 43, n. 1, p. 31-56, 1992.




RAYMO C. Do you see what I see? Sciencemusings.com, 24/02/2019


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O Fim está próximo

Dilúvio - quadro feito a pena e nanquim pelo ilustrador francês Gustave Doré (1832 - 1883)

Seguem 4 textos sobre o Dilúvio para serem lidos, antes de tudo.

1. DILÚVIO ASSÍRIO (Epopéia de Gilgamesh, Uruk, 2000 a.C.)

...

Gilgamesh então disse a Utnapishtim, o Longínquo: "Olho para ti, Utnapishtim, e vejo que és igual a mim; não há nada estranho em tuas feições. Pensei que fosse encontrar um herói preparado para a batalha, mas aqui estás, confortavelmente refestelado. Conta-me a verdade, como foi que vieste a te juntar aos deuses e ganhaste a vida eterna?" Utnapishtim disse a Gilgamesh: "Eu te revelarei um mistério; eu te contarei um segredo dos deuses."

Naqueles dias, a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus (Anu). Enlil (o guerreiro) ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.' Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana. Foi o que Enlil fez, mas Ea, por causa de sua promessa, me avisou num sonho.

Ele denunciou a intenção dos deuses sussurrando para minha casa de colmo: 'Casa de colmo, casa de colmo! Parede, oh, parede da casa de colmo, escuta e reflete. Oh, homem de Shurrupak, filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas.' 

Quando compreendi, eu disse ao meu Senhor: 'Sereis testemunha de que honrarei e executarei aquilo que me ordenais, mas como explicarei às pessoas, à cidade, aos patriarcas?' Ea então abriu a boca e falou a mim, seu servo: 'Dize-lhes isto: Eu soube que Enlil está furioso comigo e já não ouso mais caminhar por seu território ou viver em sua cidade; partirei em direção ao golfo para morar com o meu Senhor Ea. Mas sobre vós ele fará chover a abundância, a colheita farta, os peixes raros e as ariscas aves selvagens. A noite, o cavaleiro da tempestade vos trará uma torrente de trigo.'

Ao primeiro brilho da alvorada, toda a minha família se reuniu ao meu redor; as crianças trouxeram o piche e os homens todo o resto necessário. No 5º dia eu aprontei a quilha, montei a ossatura da embarcação e então instalei o tabuado. O barco tinha um acre de área e cada lado do convés media 120 côvados, formando um quadrado. Construí abaixo mais 6 conveses, num total de 7, e dividi cada um em 9 compartimentos, colocando tabiques entre eles. Finquei cunhas onde elas eram necessárias, providenciei as zingas e armazenei suprimentos. Os carregadores trouxeram o óleo em cestas. Eu joguei piche, asfalto e óleo na fornalha. Mais óleo foi consumido na calafetagem, e mais ainda foi guardado no depósito pelo capitão da nave. Eu abati novilhos para a minha família e matava diariamente uma ovelha. Dei vinho aos carpinteiros do barco como se fosse água do rio, vinho verde, vinho tinto, vinho branco e óleo. Fez-se então um banquete como os que são preparados à época dos festejos do ano-novo; eu mesmo ungi minha cabeça. No 7º dia, o barco ficou pronto.

Foi com muita dificuldade então que a embarcação foi lançada à água; o lastro do barco foi deslocado para cima e para baixo até a submersão de 2/3 de seu corpo. Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo - os domesticados e os selvagens - e todos os artesãos. Eu os coloquei a bordo, pois o prazo dado por Shamash (o Sol) já havia se esgotado; e ele disse: 'Esta noite, quando o cavaleiro da tempestade enviar a chuva destruidora, entra no barco e te fecha lá dentro.'

Era chegada a hora. Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva. Tudo estava pronto, a vedação e a calafetagem; eu então passei o timão para Puzur-Amurri, o timoneiro, deixando todo o barco e a navegação sob seus cuidados. Ao primeiro brilho da alvorada chegou do horizonte uma nuvem negra, que era conduzida por Adad, o Senhor da tempestade. Os trovões retumbavam de seu interior, e, na frente, por sobre as colinas e planícies, avançavam Shul-lat e Hanish, os arautos da tempestade. Surgiram então os deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os 7 juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um cálice. Por um dia inteiro o temporal grassou devastadoramente, acumulando fúria à medida que avançava e desabando torrencialmente sobre as pessoas como os fluxos e refluxos de uma batalha; um homem não conseguia ver seu irmão, nem podiam os povos serem vistos do céu. Até mesmo os deuses ficaram horrorizados com o dilúvio; eles fugiram para a parte mais alta do céu, o firmamento de Anu, onde se agacharam contra os muros e ficaram encolhidos como covardes.

Foi então que Ishtar, a Rainha do Céu, de voz doce e suave, gritou como se estivesse em trabalho de parto: 'Ai de mim! Os dias de outrora estão virando pó, pois ordenei que se fizesse o mal; por que fui exigir esta maldade no conselho dos deuses? Eu impus as guerras para a destruição dos povos, mas acaso estes povos não pertencem a mim, pois fui eu quem os criou? Agora eles flutuam no oceano como ovas de peixe.' Os grandes deuses do céu e do inferno verteram lágrimas e se calaram.

Por 6 dias e 6 noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra. Na alvorada do 7º dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou. Eu olhei a face do mundo e o silêncio imperava; toda a humanidade havia virado argila. A superfície do mar se estendia plana como um telhado. Eu abri uma janelinha e a luz bateu em meu rosto. Eu então me curvei, sentei e chorei. As lágrimas rolavam pois estávamos cercados por uma imensidade de água. Procurei em vão por um pedaço de terra. A quatorze léguas de distância, porém, surgiu uma montanha, e ali o barco encalhou.

Na montanha de Nisir o barco ficou preso; ficou preso e não mais se moveu. No 1º dia ele ficou preso; no 2º dia ficou preso em Nisir e não mais se moveu. Um 3º e um 4º dia ele ficou preso na montanha e não se moveu. Um 5º e um 6º dia ele ficou preso na montanha. Na alvorada do 7º dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe, mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de um lado para o outro, grasnou e não mais voltou para o barco. Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos.

Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro e murta. Quando os deuses sentiram o doce cheiro que dali emanava, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício. Finalmente, então, Ishtar também apareceu; ela suspendeu seu colar com as jóias do céu, feito por Anu para lhe agradar. 'Oh, vós, deuses aqui presentes, pelo lápis-lazúli que circunda meu pescoço, eu me lembrarei destes dias como me lembro das jóias em minha garganta; não me esquecerei destes últimos dias. Que todos os deuses se reúnam em torno do sacrifício; todos, menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois sem refletir trouxe o dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.'

Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.' Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Somente Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insensatamente provocar este dilúvio?

Inflige ao pecador o seu pecado, 
Inflige ao transgressor a sua transgressão, 
Pune-o levemente quando ele escapar, 
Não exageres no castigo ou ele sucumbirá; 
Antes um leão houvesse devastado a raça humana 
Em vez do dilúvio, 
Antes um lobo houvesse devastado a raça humana 
Em vez do dilúvio, 
Antes a fome houvesse assolado o mundo 
Em vez do dilúvio. 
Antes a peste houvesse assolado o mundo 
Em vez do dilúvio.

Não fui eu quem revelou o segredo dos deuses; o sábio soube dele através de um sonho. Agora reuni-vos em conselho e decidi sobre o que fazer com ele.'

Enlil então subiu no barco, pegou a mim e a minha mulher pela mão e nos fez entrar no barco e ajoelhar, um de cada lado, com ele no meio. E tocou nossas testas para abençoar-nos, dizendo: 'No passado, Utnapishtim era um homem mortal; doravante ele e sua mulher viverão longe, na foz dos rios.' Foi assim que os deuses me pegaram e me colocaram aqui para viver longe, na foz dos rios.

------------

2. DILÚVIO GREGO (Mitos reunidos por Thomas Bulfinch, séc. 6 a.C.)

...
A mais dura e a pior das idades foi a de Ferro. Uma torrente de crimes eclodiu; a modéstia, a verdade e a honra desapareceram. Em seu lugar vieram a fraude, a dissimulação, a violência e a ambição sem limites.

Então os marinheiros ergueram suas velas aos ventos, e as árvores foram tiradas das montanhas para servir de quilhas aos navios, que arranharam a face do oceano. A terra, que até agora tinha sido cultivada coletivamente, começou a ser dividida em propriedades. Os homens, não satisfeitos com aquilo que a superfície produzia, resolveram rasgar as entranhas da terra para tirar de lá os minérios e metais. O ferro nocivo e o ainda mais nocivo ouro foram produzidos.

Estouraram as guerras utilizando-se de ambos como armas; o hóspede já não se sentia seguro na casa de seu amigo; e os genros e sogros, irmãos e irmãs, maridos e esposas não podiam mais confiar uns nos outros. Filhos desejavam que seus pais estivessem mortos, de modo que pudessem receber a herança; o amor familiar caiu prostrado. A terra estava molhada pelo sangue dos massacres, e os deuses a abandonaram, um por um, até restar apenas Astreia (Inocência), que finalmente partiu também.

Ao ver esse estado de coisas, Júpiter ardeu em fúria. Reuniu os deuses em conselho. Atendendo ao chamado, eles tomaram a estrada para o palácio no céu. A estrada, que qualquer um pode enxergar em noite clara, se estende através da face do céu, e é chamada de Via Láctea. Às margens da estrada erguem-se palácios de deuses ilustres; a plebe celestial vive à parte, de ambos os lados da estrada.

Júpiter dirigiu-se à assembleia, relatando as condições assombrosas das coisas na terra, e terminou revelando suas intenções de exterminar todos os seus habitantes e de criar uma nova raça diferente da primeira, uma raça que seria mais digna de viver e mais devota aos deuses. Assim dizendo, tomou um raio nas mãos e já estava prestes a lançá-lo para destruir o mundo pelo fogo, mas, lembrando-se do perigo que tal conflagração poderia representar caso o próprio céu se incendiasse, mudou os seus planos e resolveu inundar o planeta.

O vento norte que espalha as nuvens foi seguro; o vento sul foi enviado, e logo cobriu a superfície do céu com um manto de negra escuridão. As nuvens, carregadas em bloco, ressoaram com grande estrondo; chuvas torrenciais caíram; as plantações foram arrasadas; o trabalho de um ano do agricultor pereceu em uma hora.

Júpiter, não satisfeito com suas próprias águas, chamou o seu irmão Netuno para ajudá-lo. Este deixou que os rios se derramassem sobre a terra. Ao mesmo tempo, a sacudiu com um terremoto, e trouxe para os litorais o refluxo dos oceanos. Rebanhos, homens e casas foram varridos, e os templos com seus objetos sagrados foram profanados. Se algum edifício permaneceu de pé, foi encoberto pelas águas e suas torres se encontram ocultas sob as ondas. Agora tudo se tornou mar, mar sem litoral.

Aqui e ali alguns indivíduos sobreviveram sobre o topo das montanhas, e alguns outros em barcos, puxando remos onde costumavam puxar o arado. Os peixes agora nadavam entre as copas das árvores; as âncora presas em um jardim. No lugar em que os graciosos carneirinhos brincavam, as focas desajeitadas fazem malabarismos. O lobo nadava entre as ovelhas, os leões amarelos e os tigres se debatiam na água. A força do javali não mais lhe servia, nem a ligeireza do cervo. Com as asas exaustas, os pássaros caiam dentro da água, sem encontrar terra em que pudessem descansar. Os seres vivos que a água poupara caíram em decorrência da fome.

De todas as montanhas, apenas o Parnaso ultrapassava a altura das ondas; e ali Deucalião e sua esposa Pirra, da raça de Prometeu, encontraram refúgio - ele, um homem justo, e ela, uma fiel adoradora dos deuses. Júpiter, quando viu que ninguém havia sobrevivido além desse casal e recordando-se da inofensiva vida deles e de sua conduta piedosa, ordenou aos ventos do norte que levassem as nuvens para longe e revelassem os céus para a terra e a terra para os céus. Igualmente Netuno deu ordens a Tritão que soasse a sua concha, provocando o recuo das águas. As águas obedeceram, e o mar voltou aos seus limites, e os rios retornaram aos seus leitos.

Então Deucalião assim dirigiu-se a Pirra: “Ó esposa, única mulher sobrevivente, unida a mim primeiro pelos laços de parentesco e do casamento, e agora pela experiência de um perigo comum, tivéssemos nós o poder de nosso ancestral, Prometeu, e renovaríamos a raça tal como ele fez a princípio! Mas, como não podemos, vamos àquele templo consultar os deuses sobre o que nos resta a fazer”.

Eles entraram no templo, deformado que estava, cheio de lodo, e se aproximaram do altar, no qual não ardia fogo algum. Ali caíram prostrados em terra e rogaram à deusa que lhes informasse o modo de reaver sua miserável vida. O oráculo respondeu: “Deixai o templo com a vossa cabeça coberta por um véu e com as vestes abertas, e lançai para trás de vós os ossos de vossa mãe”. Eles ouviram essas palavras com assombro. Pirra quebrou o silêncio: “Não podemos obedecer; não ousamos profanar os restos de nossos pais”. Eles procuraram um lugar seguro na floresta e ali refletiram sobre o que lhes dissera o oráculo.

Mais tarde, Deucalião disse: “Ou a minha sagacidade me engana, ou devemos obedecer à ordem sem receio. A terra é a grande mãe de todos; as pedras são seus ossos; são essas que devemos lançar para trás; penso que esse é o significado do que nos disse o oráculo. Pelo menos não haverá dano em tentá-lo”. Eles colocaram o véu sobre as faces, abriram as vestes, apanharam pedras e as jogaram atrás de si. As pedras (maravilhosamente) tornaram-se macias e assumiram formas, que, em diferentes graus, se assemelhavam à silhueta humana, como obras inacabadas nas mãos de um escultor. A umidade e o lodo, que estavam próximos, tornaram-se carne; as pedras tornaram-se ossos; os veios tornaram-se veias, mudando o seu uso e mantendo o nome semelhante. As pedras lançadas pelo homem deram origem a homens, e aquelas lançadas pela mulher tornaram-se mulheres. Era uma raça robusta, bem adaptada ao trabalho, tal como somos nós hoje, fato que denuncia claramente a nossa origem.

------------

3. DILÚVIO JUDEU (Bíblia, Gênesis 6.1 a 8.22, séc. 6 a.C.)

E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram.

Então disse o Senhor: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos. Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama.

E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente. Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em seu coração. E disse o Senhor: Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito.

Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor. Estas são as gerações de Noé. Noé era homem justo e perfeito em suas gerações; Noé andava com Deus. E gerou Noé três filhos: Sem, Cam e Jafé.

A terra, porém, estava corrompida diante da face de Deus; e encheu-se a terra de violência. E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra.

Então disse Deus a Noé: O fim de toda a carne é vindo perante a minha face; porque a terra está cheia de violência; e eis que os desfarei com a terra. Faze para ti uma arca da madeira de gofer; farás compartimentos na arca e a betumarás por dentro e por fora com betume. E desta maneira a farás: De trezentos côvados o comprimento da arca, e de cinqüenta côvados a sua largura, e de trinta côvados a sua altura. Farás na arca uma janela, e de um côvado a acabarás em cima; e a porta da arca porás ao seu lado; far-lhe-ás andares, baixo, segundo e terceiro.

Porque eis que eu trago um dilúvio de águas sobre a terra, para desfazer toda a carne em que há espírito de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra expirará.

Mas contigo estabelecerei a minha aliança; e entrarás na arca, tu e os teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos contigo. E de tudo o que vive, de toda a carne, dois de cada espécie, farás entrar na arca, para os conservar vivos contigo; macho e fêmea serão. Das aves conforme a sua espécie, e dos animais conforme a sua espécie, de todo o réptil da terra conforme a sua espécie, dois de cada espécie virão a ti, para os conservar em vida. E leva contigo de toda a comida que se come e ajunta-a para ti; e te será para mantimento, a ti e a eles. Assim fez Noé; conforme a tudo o que Deus lhe mandou, assim o fez.

Depois disse o Senhor a Noé: Entra tu e toda a tua casa na arca, porque tenho visto que és justo diante de mim nesta geração. De todos os animais limpos tomarás para ti 7 e 7, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea. Também das aves dos céus 7 e 7, macho e fêmea, para conservar em vida sua espécie sobre a face de toda a terra.

Porque, passados ainda sete dias, farei chover sobre a terra 40 dias e 40 noites; e desfarei de sobre a face da terra toda a substância que fiz.

E fez Noé conforme a tudo o que o Senhor lhe ordenara. E era Noé da idade de 600 anos, quando o dilúvio das águas veio sobre a terra. Noé entrou na arca, e com ele seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos, por causa das águas do dilúvio.

Dos animais limpos e dos animais que não são limpos, e das aves, e de todo o réptil sobre a terra, entraram de 2 em 2 para junto de Noé na arca, macho e fêmea, como Deus ordenara a Noé. E aconteceu que passados 7 dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio.

No ano 600 da vida de Noé, no mês 2º, aos 17 dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram, e houve chuva sobre a terra 40 dias e 40 noites. E no mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos Sem, Cam e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos. Eles, e todo o animal conforme a sua espécie, e todo o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil que se arrasta sobre a terra conforme a sua espécie, e toda a ave conforme a sua espécie, pássaros de toda qualidade. E de toda a carne, em que havia espírito de vida, entraram de dois em dois para junto de Noé na arca. E os que entraram eram macho e fêmea de toda a carne, como Deus lhe tinha ordenado; e o Senhor o fechou dentro.

E durou o dilúvio 40 dias sobre a terra, e cresceram as águas e levantaram a arca, e ela se elevou sobre a terra. E prevaleceram as águas e cresceram grandemente sobre a terra; e a arca andava sobre as águas. E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos. Quinze côvados acima prevaleceram as águas; e os montes foram cobertos. E expirou toda a carne que se movia sobre a terra, tanto de ave como de gado e de feras, e de todo o réptil que se arrasta sobre a terra, e todo o homem. Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu.

Assim foi destruído todo o ser vivente que havia sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; e foram extintos da terra; e ficou somente Noé, e os que com ele estavam na arca. E prevaleceram as águas sobre a terra 150 dias.

E lembrou-se Deus de Noé, e de todos os seres viventes, e de todo o gado que estavam com ele na arca; e Deus fez passar um vento sobre a terra, e aquietaram-se as águas. Cerraram-se também as fontes do abismo e as janelas dos céus, e a chuva dos céus deteve-se. E as águas iam-se escoando continuamente de sobre a terra, e ao fim de 150 dias minguaram. E a arca repousou no 7º mês, no dia 17 do mês, sobre os montes de Ararate.

E foram as águas indo e minguando até ao 10º mês; no 10º mês, no 1º dia do mês, apareceram os cumes dos montes. E aconteceu que ao cabo de 40 dias, abriu Noé a janela da arca que tinha feito. E soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de sobre a terra. Depois soltou uma pomba, para ver se as águas tinham minguado de sobre a face da terra. A pomba, porém, não achou repouso para a planta do seu pé, e voltou a ele para a arca; porque as águas estavam sobre a face de toda a terra; e ele estendeu a sua mão, e tomou-a, e recolheu-a consigo na arca. E esperou ainda outros 7 dias, e tornou a enviar a pomba fora da arca. E a pomba voltou a ele à tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico; e conheceu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então esperou ainda outros sete dias, e enviou fora a pomba; mas não tornou mais a ele.

E aconteceu que no ano 601, no 1º mês, no 1º dia do mês, as águas se secaram de sobre a terra. Então Noé tirou a cobertura da arca, e olhou, e eis que a face da terra estava enxuta. E no 2º mês, aos 27 dias do mês, a terra estava seca. Então falou Deus a Noé dizendo: Sai da arca, tu com tua mulher, e teus filhos e as mulheres de teus filhos. Todo o animal que está contigo, de toda a carne, de ave, e de gado, e de todo o réptil que se arrasta sobre a terra, traze fora contigo; e povoem abundantemente a terra e frutifiquem, e se multipliquem sobre a terra. Então saiu Noé, e seus filhos, e sua mulher, e as mulheres de seus filhos com ele. Todo o animal, todo o réptil, e toda a ave, e tudo o que se move sobre a terra, conforme as suas famílias, saiu para fora da arca.

E edificou Noé um altar ao Senhor; e tomou de todo o animal limpo e de toda a ave limpa, e ofereceu holocausto sobre o altar. E o Senhor sentiu o suave cheiro, e o Senhor disse em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem; porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice, nem tornarei mais a ferir todo o vivente, como fiz. Enquanto a terra durar, semeadura e sega, e frio e calor, e verão e inverno, e dia e noite, não cessarão.

------------

4. DILÚVIO ISLÂMICO (Alcorão, 11ª Surata 25-49, Hüd, séc. 7 d.C.)

Enviamos Noé ao seu povo: “Eu sou para vocês um admoestador claro. Vocês não adorarão ninguém além de Deus. Senão, temo por vocês a agonia de um dia doloroso.” Os notáveis que descreram entre seu povo disseram: “Não vemos em você nada além de um homem como nós, e vemos que apenas os piores entre nós o seguiram, aqueles de julgamento imaturo. E vemos que você não tem vantagem sobre nós. Na verdade, achamos que você é mentiroso.”

...

Eles disseram: “Ó Noé, você discutiu conosco e discutiu muito. Agora traga sobre nós aquilo com que você nos ameaça, se for sincero". Ele disse: “É Deus quem fará isso sobre vocês, se Ele quiser, e vocês não poderão escapar”.

...

E foi revelado a Noé: “Ninguém do seu povo acreditará, exceto aqueles que já acreditaram, então não se preocupe com o que eles fazem. Construa a Arca, sob Nossos olhos e com Nossa inspiração, e não se dirija a Mim a respeito daqueles que fizeram o mal; eles serão afogados.”

Enquanto Noé construía a arca, sempre que alguns do seu povo passavam por ele, zombavam dele. Ele disse: “Se vocês nos ridicularizarem, nós ridicularizaremos vocês, assim como vocês nos ridicularizam. Vocês certamente saberão sobre quem virá um tormento que o humilhará e sobre quem cairá um tormento duradouro.”

Até que, quando chegou Nossa ordem, e as fontes da Terra jorraram, dissemos: “Embarque um par de cada tipo, e sua família – exceto aqueles contra quem a sentença já foi proferida – e aqueles que acreditaram”. Mas aqueles que acreditaram com Noé foram poucos. Ele disse: “Embarque. Em nome de Deus será a sua navegação e o seu ancoradouro. Seu Senhor é realmente Indulgente e Misericordioso.”

Assim navegou com eles em meio a ondas como colinas. E Noé chamou seu filho, que havia se afastado: “Ó meu filho! Embarque conosco e não fique com os descrentes.” Ele disse: “Vou me refugiar em uma montanha – ela me protegerá das águas”. Noé disse: “Não há proteção contra o decreto de Deus hoje, exceto para aquele de quem Ele tem misericórdia”. E as ondas surgiram entre eles, e ele estava entre os afogados.

E foi dito: “Ó terra, engula suas águas” e “Ó céu, limpe”. E as águas baixaram, e o evento foi concluído, e caiu sobre os Judeus, e foi proclamado: “Fora com as pessoas más”. Noé chamou seu Senhor, dizendo “Ó meu Senhor, meu filho é da minha família, e Tua promessa é verdadeira, e Tu és o mais sábio dos sábios”.

Ele disse: “Ó Noé, ele não é da sua família. É uma ação injusta. Portanto, não Me pergunte sobre algo sobre o qual você nada sabe. Eu o advirto, para que você não seja um dos ignorantes.” Noé disse: “Ó meu Senhor, busco refúgio em Ti, para te perguntar sobre coisas que não tenho conhecimento. A menos que você me perdoe e tenha misericórdia de mim, serei um dos perdedores.”

Foi dito: “Ó Noé, desembarca com a Nossa paz, com bênçãos sobre você e sobre as comunidades daqueles que estão com você. E a outras comunidades concederemos prosperidade, e então um doloroso tormento nosso cairá sobre elas.”* Estas são algumas histórias do passado que lhe revelamos. Nem você nem seu povo os conheciam antes disso. Então seja paciente. O futuro pertence aos piedosos.

-----------

O mistério da própria criação sempre foi tema da mitologia dos povos. Aqui, apresento 4 textos antigos sobre a Gênese do mundo que podemos comparar: um da antiga Assíria (2000 a.C.), um da mitologia Judaica (600 a.C.), outra da Grega (600 a.C.), e um texto Islâmico (700 d.C.). Essas datas, obviamente aproximadas, são referências da última versão oral ou fragmentos que deu origem ao texto escrito que nos chegou. Possivelmente são mais antigas, e talvez descendentes uma da outra. Mas é exatamente sobre isso que desejo falar.

O evento narrado é o mesmo: o Dilúvio, uma inundação universal que destruiu todos os homens e animais, com exceção de um seleto grupo favorito do(s) deus(es), e do qual todos na atualidade do texto seriam então descendentes. Trata-se de algo mitológico - uma estória que fornece explicações - até onde sabemos. A Terra guarda registros de inundações, secas, extinções em massa, habitações humanas. Assim como a Jericó fortificada não existia mais nos tempos em que os Hebreus chegaram na Palestina, também não há evidências de uma grande inundação quando os homens já eram capazes de fazer embarcações. Apesar disso, entre tantos mitos de cada povo e época, o relato do Dilúvio aparece preservado entre culturas muito diferentes, enquanto centenas de outros mitos não foram compartilhados. Mas o que esse relato explica? Porque justamente ele se manteve?

Alguns apontamentos merecem ser feitos. Primeiro, todos os textos falam sobre a divindade extinguir os humanos que Lhe irritavam, por motivos vários. No texto Assírio, o era o barulho que não deixava os deuses dormirem; no Judeu, a terra estava corrompida pela maldade e violência; o mesmo motivo aparece no texto Grego; no texto Islâmico, era a descrença no Deus único. Uma vez que a motivação de divindades só pode ser inferida, e geralmente isso é feito de modo a produzir alguma advertência no presente, vemos que cada povo tinha seus ideais. Os Assírios queriam silêncio, os Judeus e Gregos queriam paz, os Muçulmanos queriam monoteísmo. A ameaça de uma catástrofe costuma ser útil para obter comportamentos. E o conto sobre uma catástrofe punitiva costuma desestimular que as pessoas busquem no seu passado a justificativa para seus atos.

Cada um dos textos também revela detalhes ao leitor sobre a mecânica do mundo, e assim conquista seu interesse. No Assírio, sabemos que os deuses dormem, brigam entre si, podem sentir raiva, medo e tristeza, que alguns controlam grandes reservatórios de água. No texto Judeu, sabemos da ira e do arrependimento de YHWH, assim como seu controle sobre as chuvas e os ventos. Na versão Grega, sabemos da ira e as preocupações de Júpiter, assim como seu parentesco com Netuno e o controle dos raios e águas. No texto Muçulmano, vemos um testemunho do poder de Allah, preocupado com o destino de cada fiel. Esse ensino teológico está contido nas obras maiores onde o conto sobre o Dilúvio foi incrustado para preservar, pela expansão de situações, o pensamento sobre onde perceber a divindade. Nomeando cada personagem e seus poderes, os textos dão ao leitor uma ferramenta para dialogar com quem controla o mundo. Nós não desejaríamos algo assim?

A divindade escolheu o afogamento coletivo como meio para purificar Seu povo. Esse é um ponto comum dos textos - a destruição do mundo pela água. Certamente algo familiar a qualquer povoamento que já tenha passado pela inundação incontrolável das chuvas, dos rios ou do mar. Mas porque não outro meio, como a simples morte de todos, ataque de um povo conquistador, pragas, terremotos ou incêndio? O Antigo Testamento apresenta destruições de nações por todas essas formas. Mas, aqui, era essencial salvar uma testemunha ocular. A água parece mais adequada, então. Essa intenção se torna clara quando vemos que, a despeito do plano de destruir tudo, alguém foi detalhadamente instruído sobre a data do desastre e o modo de escapar (com exceção da versão Grega). No texto Assírio, um dos deuses instrui Utnapishtim (futuro imortal) sobre como fazer um grande barco; esse mesmo meio aparece no texto Judeu, com Noé. Igualmente, a divindade dita medidas e instruções precisas. No texto Muçulmano, o personagem também é Noé, um profeta a quem Allah fala, mas não há esse detalhamento. No texto Grego não há barco, mas simplesmente uma grande montanha, o Parnaso, onde morava Deucalião. Outro detalhe: apenas nos textos Assírio e Judeu (povos mais agro-pastoris) há o comando para salvar animais, indicando uma catástrofe universal.

Foram salvos aqueles mais bem-quistos da divindade. Utnapishtin tinha uma promessa do deus Ea, que o comanda a enganar a população. Não sabemos de onde veio essa promessa. Noé andava com Deus, era justo e perfeito no que fazia (texto Judeu), um "admoestador claro" (texto Muçulmano). Deucalião era da raça de Prometeu, justo e fiel aos deuses do Olimpo (texto Grego). Esses personagens exemplares são o cerne do texto, aqueles em quem o leitor deve se espelhar para não sofrer o castigo divino. E dos quais ele descende - pois todos os outros morreram. Na verdade, o texto Grego aponta que, aqui e ali, alguns outros se salvaram. Assombrosamente, os próprios Gregos seriam filhos das pedras - não deste nobre Deucalião. No texto Muçulmano, mesmo um filho de Noé é tragado pelas ondas, no momento em que creditou a si mesmo a capacidade para escapar.

Após o Dilúvio, é refeito o pacto entre homens e a divindade. Utnapishtin oferece um sacrifício atraente, os deuses Assírios discutem entre si e Enlil se desculpa abençoando os sobreviventes. Noé também oferece um sacrifício e JHWH diz que não tornará a destruir o mundo. Na versão Muçulmana, Allah abençoa Noé e sugere que nem todos morreram (11.48, marcado com *). No texto Grego, o oráculo de um templo enlameado fala a Deucalião, sinal de seu bem-querer no Olimpo. Esse pacto refeito é o sinal de que há esperança para os viventes que ouvem o texto. Eles são filhos de um homem de fé preservado e de um acordo refeito após o fim de todos os desobedientes. Poderia haver situação que melhor combinasse estímulo e ameaça?

É nesse sentido que o mito trabalha - moldando seu leitor. Esse mito, que ultrapassou a fronteira entre as culturas, hoje faz haver pessoas assegurando ter encontrado os restos da Arca, em montanhas diferentes pelo mundo. Ele se mostrou amplamente útil ao ensino. Não podemos dizer que todas as versões sejam exatamente parentes: duas versões são politeístas e duas são monoteístas; enquanto uma versão se preocupa em listar descendentes para assegurar a posse de terras no mundo pós-Dilúvio, outra versão nem mesmo nomeia as pessoas salvas; os nomes dos deuses e personagens nas estórias são radicalmente distintos; muitos outros mitos postos nos mesmos livros não foram copiados. Mas o valor do Dilúvio, talvez transmitido como poema ou canção (essa dissonância do contexto fica clara nos textos Assírio e Grego) o colocou como escolhido para ser lembrado, pois diz ao homem atual que ele descende de um servo amado e que todos os não-servos foram afogados (por motivos variados, é verdade). Portanto, que tome cuidado!

As versões Assíria (onde Utnapishtin de fato se torna imortal) e Judaica vão além, dizendo que todos os animais PERTENCEM ao mesmo povo, pois foram salvos junto com o preferido dos deuses. A versão Grega não é tão exigente; a versão Muçulmana, permeada de outros discursos entre Allah e o Profeta, somente se preocupa com Noé. 

Seria errado dizer que cada povo adaptou o Dilúvio ao seu mundo, com grandes montanhas ou sem elas. Na verdade, parece que cada um fez o seu próprio Dilúvio, com os antecedentes, salvos e pactos que servissem ao propósito educativo do seu próprio mito. Talvez algo tenha vindo de uma versão mais antiga, e muitas partes sejam novas. Mas, uma vez que a estória foi usada, ela moldou pessoas. Os Assírios souberam que um imortal, testemunha dos deuses, habitava a foz dos rios - para o herói Gilgamesh, ele testemunhou que apenas os deuses podiam conceder a imortalidade. Para os Judeus, Noé findou a época dos patriarcas que se dizia viverem milênios ou séculos. Seus filhos também inauguraram 3 raças a colonizar o mundo agora desabitado: Sem deu origem ao povo de Canaã (Semitas), Cam gerou os africanos e Jafé os Persas. Para os Gregos, Deucalião e suas pedras fizeram um povo vigoroso. Para os Muçulmanos, Noé foi um dos muitos que precederam Muhammad em anunciar um Deus único e poderosíssimo. Esse mito também fez alguns mais silenciosos, outros mais tementes aos deuses, ou ao Deus único, e deu a outros uma explicação de porque são fortes. De modos diferentes, o Dilúvio fez a todos que ouviram sobre ele serem mais entrosados com seu mundo espiritual, dentro do medo de que o desastre voltasse a acontecer, cada vez que uma tempestade se formava.

-------------
O QUE LER NUM BARCO CHEIO DE ANIMAIS


A epopéia de Gilgamesh, Ed. Martins Fontes.

Bulfinch, Thomas. O livro da Mitologia: a idade da fábula - São Paulo: Martin Claret, 2020.


sábado, 11 de novembro de 2023

Em tempos de guerra

São Porfírio, 20/10/2023

Chegamos em 31 de outubro de 2023 com várias situações trágicas pelo mundo. Afora desastres naturais como secas ou chuvas, calor ou frio afligindo populações inteiras, duas guerras mostram um velho lado sanguinário dos homens.

Seja em Gaza ou na Ucrânia, não se trata de situações simples com um povo "mau" ameaçando im povo "bom". Nem tampouco de situações perdoáveis com povos simplesmente tentando sobreviver ou políticos atrás de interesses financeiros e usando as populações incautas. São desafetos antigos, vinganças, colonizações e massacres resultados de uma história de inimizades e interesses,  principalmente acreditados como injustiças, com um povo ou governo possuindo aquilo que não merece ter. Na Ucrânia, trata -se das reservas e dutos de escoamento de gás natural, que abastecem a maior parte da Europa; em Gaza, trata-se da terra provedora de plantas e água que Palestinos e Judeus são incapazes de dividir equitativamente. Citando um velho filme sobre guerras, são pessoas que não haviam nascido quando a divisão foi feita, lutando contra alguém que não era nascido quando houve uma injúria.

Tanto numa batalha como outra, além dos exércitos, armas, bombas, aviões, mísseis e tudo mais, estão envolvidas as populações residindo no campo de batalha. São homens, mulheres, crianças, velhos e doentes com suas moradias sendo pisoteadas ou demolidas ou incendiadas ou explodidas em nome de expulsar os não-merecedores.

HISTÓRICO DE AJUDA?

Jesus, em Seu tempo, não conviveu exatamente com isso: embora a Galiléia e a Judéia fossem territórios ocupados por Roma, vigorava a Pax Romana: havia acordos entre o Império e as classes dominantes para evitar lutas armadas. Qualquer ameaça à paz era imediatamente combatida com o deslocamento de legiões. Jesus e Paulo viveram depois das guerras Romans contra os grandes reinos (500-100 a C.), e morreram antes das guerras contra os Judeus (70-140 d.C.). Bem depois de Paulo estar morto, o grande incêndio de Roma em 64 d.C. (os Judeus e Cristãos foram responsabilizados, provavelmente como bode expiatório) foi seguido por rebeliões Judaicas contra o Império entre 66 e 70 d.C. Antes de incendiar Jerusalém e dar fim ao Templo, estima-se que as legiões tenham matado 500 000 Judeus, o que se encaixaria nas previsões apocalípticas dos Evangelhos.

As vidas humanas nos territórios de disputas geralmente são de muito pouco valor. Na invasão da Ucrânia pela Rússia, estima-se que até agora tenham morrido 500 000 pessoas. Em Gaza, são 9300 Palestinos. Seja nos tempos de Roma, na Ucrânia ou Gaza, não estamos falando de baixas militares em batalha - são cidadãos desarmados com suas famílias que simplesmente estavam no caminho dos exércitos e foram exterminados como demoNstração de força para o inimigo.

Jesus e Paulo não deram testemunhos de atuação Cristã em tempos de guerra, porque viveram, apesar de tudo, em uma época e local de paz. Talvez essa falha de aconselhamento se ligue ao fato de que o Cristianismo nunca foi um bom exemplo de pacifismo, sendo marcado por episódios sanguinários. Podemos lamentar as Cruzadas no final da Idade Média, o extermínio de populações indígenas no séc. 16, a aniquilação dos impérios da África Ocidental nos sécs. 18-19 e até a aliança com os nazi-facistas na 2ª Guerra Mundial.

Pelo menos desde Francisco de Assis (1181-1226), que começou a vida como soldado, entretanto, diversos movimentos dentro do Cristianismo desenvolveram um lado pacifista envolvido com acolhimento, solidariedade, partilha e empatia. É curioso que Francisco de Assis tenha, segundo contam (muito de sua vida é descrita em obras muito posteriores a ele), pedido ao papa Inocêncio III para construir uma igreja abrigadora de sua nova ordem, mas o papa tenha recebido a visão de alguém que viria reconstruir a Igreja. Esse movimento amoroso (e de ligação com os pobres, no caso de Francisco), não vem diretamente dos Evangelhos, mas de se apoderar de algumas palavras de Jesus presentes principalmente nos Evangelhos de Mateus (com relação aos pobres) e João (que é provavelmente de origem Samaritana), além das cartas Joaninas, para falar de um Cristianismo devotado ao amor para com todos. Palavras que Jesus destinou, segundo Mateus, para o cuidado com vizinhos briguentos da Galiléia e os arrasados de uma Jerusalém destruída. E segundo João, para a aceitação dos não-Judeus dentro da nascente comunidade Cristã. Atualmente, o papa Francisco I (cujo nome representa justamente ser o primeiro franciscano nessa função), orienta os fiéis a rezarem pelos migrantes em massa que tentam fugir com suas famílias das regiões de conflito.

Conflitos, desastres naturais ou, simplesmente, a impossibilidade de levar uma vida digna e próspera na própria terra natal obrigam milhões de pessoas a partir(papa Francisco I)

Migrantes fogem por causa da pobreza, do medo, do desespero. No início da Colonização, o Brasil recebeu milhares de Judeus vindos de Portugal e Espanha, que haviam se abrigado em Portugal e depois foram perseguidos com a união dos dois reinos (1580 - 1640). No início do séc. 20, recebeu centenas de milhares de europeus, semitas e orientais fugidos da 1a Guerra Mundial e da recessão financeira dos anos 1930. Nos anos 1970 e 2000, muitos Sírios chegaram aqui, fugidos das diversas guerras de poder político no Oriente Médio que passaram por sobre o país. Logo depois, o terremoto no Haiti fez muitos percorrerem caminhos enormes entre seu país arrasado até o Brasil que sempre manteve a tradição de pais acolhedor do refugiados.

Segundo dados divulgados na última edição do relatório “Refúgio em Números” (Acnur ou Agência da ONU para Refugiados), cerca de 108,4 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas. Entre elas estão 35,3 milhões de refugiados. Além de 4,4 milhões de apátridas, pessoas a quem foi negada a nacionalidade e que não têm acesso a direitos básicos como educação, saúde, emprego e liberdade de movimento. Apenas em 2022, no Brasil, foram feitas 50.355 solicitações da condição de refugiado, provenientes de 139 países. As principais nacionalidades solicitantes em 2022 foram venezuelanas (67%), cubanas (10,9%) e angolanas (6,8%).

Essas correntes migratórias acontecem também em outras partes do mundo, mais recentemente com a Itália recebendo gente que foge da pobreza na Namíbia, arriscando suas vidas para atravessar o Mediterrâneo em barcos despreparados e superlotados, além da Polônia e Alemanha recebendo muitos Ucranianos que 

fogem da invasão Russa. Ao mesmo tempo em que ficamos felizes de ver países de onde as pessoas fugiram no passado, como Polônia e Itália, agora abrigando os refugiados de outros cantos, é triste ver países um dia formados por refugiados, como Israel, agora atacando terras muito mais pobres como Gaza.

Cada qual segundo as próprias responsabilidades e empenho, que começa por nos perguntarmos o que podemos fazer, mas também o que devemos deixar de fazer. Devemos prodigalizar-nos para deter a corrida armamentista, o colonialismo econômico, a pilhagem dos recursos alheios e a devastação da nossa casa comum(papa Francisco I)

Esse ponto, como dito anteriormente, é difícil de ser cumprido. Entre tomar posse de campos de petróleo bilionários, comandar o fornecimento de gás e mercadorias marítimas a todo um continente ou controlar fontes de água e terras férteis, é bem simples escolher pela morte ou expulsão dos que habitam lá. O desejo por riquezas ou vantagens facilmente transforma pessoas exatamente iguais a nós em "outros" para com os quais não nos arriscamos a ter empatia. Sequestramos e matamos jovens, adultos, velhos e crianças, ou despejamos mísseis e artilharia aérea sobre bairros residenciais, escolas, hospitais e até campos de refugiados.

Lá no séc. 5 a.C., quando a comunidade Judaica estava se estabelecendo na Palestina, o livro de Levítico trazia instruções como “Se alguém migrar até vocês, e na terra de vocês estiver como estranheiro, não os oprimam. O estrangeiro será para vocês um concidadão. Você o amará como a si mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egito. Eu sou Javé, o Deus de vocês” (Levítico 19.34-35). No séc. 1 d.C.,Paulo, quase sempre um estrangeiro, tentou resgatar essa tradição, ao mesmo tempo testemunhando que o primeiro ensinamento não produziu o fruto pretendido:

"Portanto, vocês dessa forma já não são estrangeiros e forasteiros, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Efésios 2.19).

Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: RACÁ (= sem valor), será réu do Sinédrio; e qualquer que lhe disser: 'Louco', será réu do fogo do inferno. (Mateus 5.22)

Não é simples receber estrangeiros. São pessoas que desistiram de seus lares, de seu povo, para tentar algo melhor bem longe. Mais do que isso, são pessoas que chegam sem laços de apoio, sem parentes ou amigos, sem emprego, sem saber o idioma, sem onde morar, e trazendo consigo uma cultura exótica. Oferecer algo a elas inevitavelmente é perder algo de si. Mas Jesus diz para encontrar o valor dessas pessoas, Paulo lembra que são nossos irmãos e Levítico nos lembra que todos podem ser ou já foram estrangeiros, algum dia.

Ninguém deixa a sua casa, sua história e suas pessoas sem ser por violência, miséria ou desigualdade. Muitos homens, mulheres e crianças acabam morrendo nesse caminho em busca de um sonho, sem chegar ao seu destino final com paz, um lar, um povo. Quão terrível é chegar e ser rechaçado! Quão absurdo é qualquer um temente a Deus expulsar as pessoas de suas casas por etnia, religião ou para tomar seu espaço!

PORQUE AJUDAR?

Nos países em guerra ou assolados por desastres político-financeiros, abundam desabrigados, desaparecidos, feridos e mortos. Nesses lugares, mais do que nunca, a Igreja tem como missão ser o pilar civilizatório. Enquanto Malaquias 3.10 é muito citada nos recolhimentos de dinheiro das igrejas, Deuteronômio 26.12, bem mais antigo, relaciona tais ganhos a haver mantimentos e usar esse dinheiro (ou animais, verduras, etc) para com os estrangeiros, órfãos e viúvas.

Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e depois fazei prova de mim nisto, diz o SENHOR dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu, e não derramar sobre vós uma bênção tal até que não haja lugar suficiente para a recolherdes. (Malaquias 3.10)

Quando acabares de separar todos os dízimos da tua colheita no ano terceiro, que é o ano dos dízimos, então os darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que comam dentro das tuas portas, e se fartem. (Deuteronômio 26.12)

Boa parte das igrejas, infelizmente, aloca seus recursos como empresas, investindo em canais de comunicação de massa, cantores, templos suntuosos, etc, ao invés de se prestar a um papel nem um pouco lucrativo que é o atendimento dos desabrigados.

OPINIÃO PÚBLICA 

Recentemente, algumas alterações sócio -bíblicas têm acontecido. Por um suposto parentesco com os Judeus (sim, muitas igrejas Protestantes são fortemente judaizadas), várias mega-igrejas têm se colocado favoravelmente a Israel nos recentes embates da Faixa de Gaza. Mesmo aqui no Brasil isso é preocupante, pois tais igrejas possuem políticos atuantes e direcionadores de recursos públicos.

Trata-se de uma situação política (não religiosa) em que Israel está agindo contra um ataque terrorista da mesma forma como os EUA agiram contra o Iraque na Guerra do Golfo, ou seja, usando a tragédia de uns como pretexto para massacrar milhares de outros. Foram 150 israelenses sequestrados numa Rave em Gaza, e isso tem sido justificativa para a morte não acidental de quase 10 mil Palestinos. Não é a primeira vez, só é um pretexto novo. Isso não tem qualquer motivação ou justificativa religiosa.

Como mostrado acima, nem a Torá Judaica nem os Evangelhos dão sustento a genocídios. Não estamos nos temos de Moisés ocupando a Palestina com seu povo fugido da escravidão no Egito - isso foi há 3500 anos. Estamos no tempo de Judeus chegados após a 1a Guerra em um território Palestino estarem massacrando os habitantes mais antigos do local. Até hoje, Israel não reconhece a existência de Gaza e a Cisjordânia como territórios Palestinos.

Apesar dos arroubos de saudosismo do Velho Testamento (600-400 a.C), a Igreja Protestante não possui qualquer parentesco histórico com os Judeus. O Cristianismo tem uma falha educativa em que os Cristãos em geral não conhecem a história Cristã de mais de 2000 anos, nem mesmo a produção intelectual ou teológica que houve, e muitas vezes nem mesmo o texto bíblico. O Protestantismo é uma das vertentes Cristãs (pois há muitas outras) que se popularizou a partir da Alemanha do séc. 16, como uma tentativa de resgate do texto bíblico e protestando contra a tradição Católica. Esse texto é realmente herdado dos Judeus (mas o Protestantismo rejeitou vários livros da Torá, que aparecem nas Bíblias Católicas) e sua parte verdadeiramente Cristã foi construída entre 50 e 150 d.C., com Paulo, seu autor mais antigo, evitando tendências judaizantes assumidas, por exemplo, por Pedro, quem parece ser a fonte da biografia de Jesus.

Várias igrejas Pentecostais passaram por uma "judaização", provavelmente no sentido de incorporar as figuras de profetas do Antigo Testamento, com pastores (nome que remete ao Bom Pastor, figura associada a Jesus) usando barbas longas, túnicas, quipás, cajados, menorás e até arcas com querubins esculpidos encima. Daí para chamar Israel de "nação de Deus" (lembrando que os Judeus estão espalhados pelo mundo) falta pouco. Na verdade, vimos Bolsonaro com um movimento nacionalista que hasteava as bandeiras dos EUA e de Israel (e não me seguro o riso, agora). E quem Israel ataca, mesmo por motivo egoísta e genocida, deve ser "inimigo de Deus".

Grande parte das igrejas Protestantes e também comunidades Católicas ligadas à extrema direita no Brasil e nos EUA, longe do conflito, infelizmente mantém o apoio a Israel, povo de Deus que defende seu território passando por um justo Colonialismo e expurgação genocida.

TENSÕES RELIGIOSAS

Na Ucrânia, a Igreja Cristã majoritária é a Igreja Ortodoxa, que funciona mais ou menos como a  Protestante, ou seja, com uma liderança descentralizada. Mas nem tanto: há uma hierarquia dos patriarcas dirigentes, com o principal deles na Grécia (Bartolomeu I, patriarcado de Constantinopla). Na Ucrânia, a Igreja Ortodoxa é dividida em Igreja de Epifânio (Ucraniana), Igreja de Onúfrio (Russa) e Igreja Grega, de acordo com o patriarca que as governa. O Mosteiro de Kiev-Petchersk, ou "mosteiro das cavernas" na capital Kiev, é um complexo de prédios subterrâneos históricos e alinhado com o governo Russo. Com a invasão, houve a suspeita de que o mosteiro deu algum suporte aos invasores e ele foi declarado inimigo do Estado, com ordens de evacuação. De fato, o patriarcado russo na Ucrânia tem sido continuamente atacado pelo governo e existe uma cisão entre as igrejas. Apesar disso, os templos do Patriarcado Russo foram os que mais sofreram com a guerra – pelo menos 143 foram destruídos ou transformados em bases militares russas.

"Mais uma vez, Patriarca Cirilo, você falou da unidade da Santa Rússia. ... O foguete da Federação Russa que você abençoou caiu no altar da catedral na festa dos Santos" (carta aberta do vigário da Catedral da Transfiguração em Odessa)

Os crentes das igrejas evangélicas na Ucrânia (pentecostais, batistas, adventistas, carismáticos, etc) foram particularmente afetados. Soldados russos ameaçaram repetidamente a destruição dos prédios e execução dos evangélicos, chamando-os de "espiões americanos", "sectários" e "inimigos do povo ortodoxo russo.

O QUE ESTÁ SENDO FEITO

Existe uma resposta da Igreja nessas situações de conflito. Em muitos locais, as igrejas próximas dos conflitos recrutam mantimentos e fornecem espaços para os refugiados. Nos desastres naturais, os templos religiosos frequentemente são usados como abrigos e hospitais. Quando um desastre ocorre (e aqui trata-se de um desastre humano), a Igreja consegue chegar mais rápido, antes mesmo de agentes de organizações humanitárias ou governamentais. Durante o furacão Mitch, em 1998, uma comunidade de Honduras junto ao rio Choluteca ficou isolada pelas águas por quase duas semanas. Nesse tempo, a igreja local mobilizou alimentos e trabalhadores para reparar as casas, recolher lenha e comida. Também após o furacão Katrina, em 2005, igrejas e templos em Louisiana forneceram abrigo por meses, com serviços hospitalares instalados ali, e mobilizaram 500 mil trabalhadores para reconstruir ou reparar casas destruídas.

Em Gaza, há apenas 2 igrejas Cristãs: São Porfírio (Ortodoxa, na verdade um grande complexo de prédios onde funcionava o Conselho da Igreja Ortodoxa Árabe) e Sagrada Família (Católica). Existem quase mil pessoas abrigadas nesses templos e, recentemente, São Porfírio foi atingida por um míssil israelense. Parte do prédio desabou, matando várias pessoas, mas outra parte ainda resiste como abrigo. Dentro de ambas as tradições, Católica e Ortodoxa, o batismo das crianças assegura seu acesso ao paraíso, caso morram. Por isso, pais Cristãos vão em número a esses locais para batizar seus filhos, com medo do que pode acontecer.
Construída no meio do séc. 12, São Porfírio recebeu o nome de um bispo de Gaza do sec. 5, quando o Cristianismo Grego chegou à região. Especialmente após a expulsão dos Palestinos do atual território de Israel em 1947, o santuário tem sido abrigo de muitas famílias Muçulmanas em épocas de conflito (essa é a 7ª crise no território). Os ataques israelenses infelizmente não pouparam mesquitas e escolas que abrigavam pessoas cujas casas foram explodidas, e também não pouparam São Porfírio. A Igreja da Sagrada Família, também abrigo de muitos Muçulmanos, recebeu ordens de evacuação imediata, partidas do exército israelense.

Na Polônia, para onde mais de 2 milhões de Ucranianos foram em fuga dos ataques Russos, as igrejas Católicas e missionários Protestantes se juntam em acolhimento a famílias inteiras. Sobretudo no forte inverno da região, a necessidade de espaço, alimentos e calefação é urgente. A maioria dos refugiados é composta de mulheres, idosos e crianças. A principal ajuda vem da organização Cáritas, que já movimentou U$ 20 milhões em ajuda e envolve dioceses, congregações religiosas, paróquias, comunidades e movimentos católicos, assim como muitos voluntários. Os poloneses vinculados estão acolhendo os refugiados da Ucrânia nas suas casas, incluindo os bispos.

"A primeira coisa era uma refeição quente, começava-se por isto. Depois um banho e dormir. Montamos um armazém para ter ao alcance as coisas mais necessárias, e havia muitos benfeitores da Polónia e do exterior. Perguntávamos às pessoas o que lhes era mais necessário para prosseguirem a viagem. Chegavam muito cansados, nos diziam que não se lavavam há dias. Às vezes, chegavam diretamente dos refúgios". (irmã Ewa Mehal, no mosteiro das Servas da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria de Stary Wieś, cidade polonesa de Przemyśl, perto da fronteira)

----------------------

NOS ESCOMBROS DE SÃO JOÃO

Artsyzki V. Odessa: bombas abençoadas na catedral. Ihu.unisinos.br, 26/07/2023

Câmara B. A guerra não conhece religião': a igreja mais antiga de Gaza abriga muçulmanos e cristãos, terra.com.br, 16/10/2023.

Dean J. Igrejas na Polônia se desdobram para servir aos Ucranianos, coalizaopeloevangelho.org, 29/03/2022.

Haidar D. Quem são os cristãos de Gaza, agora abrigados em duas igrejas. BBC.com, 01/11/2023.

Oliveira MJ. O dia em que os judeus foram expulsos de Portugal, observador.pt, 29/12/2016.

Prezzi L. Ucrânia: as igrejas e os venenos da guerra. Ihu.unisinos.br, 16/08/2023.

Rytel-Andrianik P. Como é que a Igreja na Polónia ajuda os ucranianos? Omnesmag.com, 01/94/2022.

Santos C. Igreja e Sociedade, Paulus.com.br, 29/09/2023.

Vatican News. Quase 500 locais de culto destruídos na Ucrânia em um ano de guerra, 25/02/2023.

Veja.abril.com.br. Ucrânia ordena que Igreja ortodoxa alinhada com Moscou deixe Kiev. 10/03/23.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Guarda noturno

Trago aqui uma obra de Mário de Andrade, finalizada em 1914, chamada "Conto de Natal". Vi ela como mais um daqueles cordéis enriquecidos por Ariano Suassuna, que fazem as pessoas verem, naqueles que lhes cercam, justamente as figuras que mais temem.


Clube Automobilístico, São Paulo, início do séc. 20

--------------------------

Seriam porventura dez horas da noite...

Desde muitos dias os jornais vinham polindo a curiosidade pública, estufados de notícias e reclamos de festa. O Clube Automobilístico dava o seu primeiro grande baile. Tinham vindo de Londres as marcas de carros e corria que as prendas seriam de sublimado gosto e valor. Os restaurantes anunciavam orgíacos réveillons de natal. Os grêmios agitavam-se.

Seriam porventura dez horas da noite quando esse homem entrou na praça Antônio Prado. Trazia uma pequena mala de viagem. Chegara sem dúvida de longe e denunciava cansaço e tédio. Sírio ou judeu? Magro, meão na altura, dum moreno doentio abria admirativamente os olhos molhados de tristeza e calmos como um bálsamo. Barba dura sem trato. Os lábios emoldurados no crespo dos cabelos moviam-se como se rezassem. O ombro direito mais baixo que o outro parecia suportar forte peso e quem lhe visse as costas das mãos notara duas cicatrizes como feitas por balas. Fraque escuro, bastante velho. Chapéu gasto dum negro oscilante.

Desanimava. Já se retirara de muitos hotéis sempre batido pela mesma negativa: "Que se há de fazer! Não há mais quarto!"

Alcançada a praça, o judeu estacou. Pôs no chão a maleta e, recostado a um poste, mirou o vaivém. O povo comprimia-se. Passeavam, maltrapilhos, grupos conversando alto. Os ricos passavam esmerados nos seus trajes. No ambiente iluminado dos automóveis, esplendiam os peitilhos, as carnes desnudadas e os cachos as mulheres-da-vida que roçavam pela multidão, bamboleando-se, olhos pintados, lábios  carmim. Boiando no espaço, trilhas de odores sensuais.

O homem olhava e olhava. Parecia admiradíssimo. Por várias vezes fez o gesto de tirar o chapéu mas a timidez dolorosa gelava-lhe o movimento. Continuava a olhar.

"Vais ao baile do Clube?" "Não arranjei convite. Você vai?" "Onde irás hoje?" "Como não! Toda São Paulo estará lá." "Ao réveillon do Hotel Sportsman" "Vamos ao Trianon!" "Por que não vens comigo à casa do Marquês? Há lá um Souper-rose." "Impossível." "Por quê?" "Não Posso. Vou ter com a Amélia." "Ah..."

Tirando respeitoso o chapéu, o oriental dirigiu-se por fim ao homem que dissera “ir ter com a Amélia” e perguntou-lhe com uma voz tão suave como os olhos. Caiam-lhe os cabelos pelas orelhas, pelo colarinho:

— O senhor vai sem dúvida para o seu lar...

Decerto um louco. Não, bêbedo apenas. O outro deu de ombros. Descartou-se:

— Não.

— Mas... e o senhor poderia informar-me... não é hoje noite de Natal?...

— Parece. (E sorria.) Estamos a 24 de dezembro.

— Mas...

O homem da Amélia tocara no chapéu e partira. Desolação, no sacudir lento da cabeça. Agarrando a maleta, o judeu recomeçou a andar. Tomou pela rua de São Bento, venceu o último gomo da rua Direita, atingiu o Viaduto. A vista era maravilhosa. À direita, empinando sobre o parque fundo, o Clube Automobilístico arreado de lâmpadas de cor. A mole do edifício entrajada pelo multicolorido da eletricidade parecia um enorme foco de luz branca. Do outro lado do viaduto, na esplanada debruava a noite o perfil dum teatro.

O judeu perdia-se na visão do espetáculo. Aproximava-se do largo espaço da esplanada onde no asfalto silencioso escorregava outro cortejo de autos. Cada carro guardava outra mulher risonha a suportar toda a riqueza no pescoço. Feixes de operários estacados aqui e além. O rutilar daqueles monumentos, o anormal da comemoração batendo na pele angulosa dos casacos fazia explodir uma faísca de admiração e cobiça. Toda a população dos bairros miseráveis despejara-se no centro. Vieram divertir-se. Sim: divertir-se vendo os ricos e suas festas.

O sírio entrou por uma rua escura que entestava com o teatro. Incomodava-o a maleta. Num momento, unindo-se a uma casa em construção, deixou cair o trambolho entre dois suportes de andaime. Partiu ligeiro, atirando as pernas para frente, como pessoa a quem chamam atrás e não quer ouvir. E na subida vagarosa, lido numa placa de esquina: Rua da Consolação. Aqui o alarido já se espraiava discreto na surdo-mudez das casas adormecidas.

Subiu pela rua. De repente, parou diante da porta. Bateu e esperou. Acolheu-o uma criada de voz áspera:

— Por que não tocou a campainha? Não tem olhos? Que quer?

— Desculpe. Queria falar com o dono da casa...

— Não tem ninguém. Foram na festa.

Partiu de novo. Mais adiante animou-se a bater outra vez. Nem criada. E na aspiração de encontrar uma família em casa, batia agora de porta em porta. Desesperação febril. Persistência de poeta. Uma vez, a família estava. Que divino prazer lhe paga o esforço! Mas o chefe não podia aparecer. Lamentações lá dentro. Alguém estava morrendo. Deus o leve!

Mais ou menos uma hora, depois de ter subido toda a rua, o judeu desembocou na avenida. A faixa tremente da luz talhava-a pelo meio mas dos lados as árvores escureciam o pavimento livre das calçadas. Entre jardins onde a vegetação prolongava sombra e frescor, as vivendas enramadas de trepadeiras, como bacantes, dormindo. Sono mortuário. Apenas ao longe gritava um edifício qualquer num acervo de luzes. O judeu parou. O pó caiara-lhe as botinas e a beirada das calças. O cansaço rasgara-lhe uma ruga funda sob os olhos. Os lábios sempre murmurantes pendiam-lhe da boca secos e abertos. O rosto polira-se de suor. Limpando-se descuidado, recomeçou a andar muito rápido para o lado das luzes.

Atravessados quase em carreiras vários quarteirões, chegou ao trecho iluminado. Era uma praça artificial construída ao lado da avenida. Alguns degraus davam acesso à praia dos ladrilhos, onde passeavam pares muito unidos. Sob carramanchões de cimento armado agrupavam-se homens de olhares já turvos, bocas fartas ao redor da cerveja. Entre o zum-zum da multidão brincavam nas brisas, moderadas pela distância, melodias moles de danças. Por toda a parte a mesma alegria torpe.

Daquele miradouro via-se a cidade estirada sobre colinas e vales. Os prédios parecidos confundiam-se na claridade ambiente e nos longes, recortando um grande halo que mascarava de santa a Pauliceia.

Mas o judeu mal reparou nos enfeites com que o homem recamara aquela página da terra. Olhava apenas a multidão, perscrutava todos os olhares. Procuraria alguém?... Quase que corria no meio dos passeantes ora afastando-se ao contato de uns, ora atirando-se para outros como se reconhecendo alguém. Desiludia-se entretanto e procurava mais, procurava debatendo-se na turbamulta. Enfim, desanimado, partiu de novo. Ao descer os degraus do miradouro, notou duas escadinhas para o subsolo. Espiou. Outro restaurante! Fugiu para a rua.

A fila imóvel dos autos. Corrilhos de motoristas e frases obscenas. Passou. Ia afundar-se de novo no deserto da avenida. Mudou de resolução. Retornou de novo para a luz. Era um espelho de suor. Caíra-lhe o chapéu para o lado e uma longa mecha de cabelos oscilava-lhe na fronte como um pêndulo. Os motoristas repararam nele. Riram-se. Houve mesmo um prelúdio de vaia. Nada ouviu. Entrou de novo no miradouro. Desceu os degraus. Um negrinho todo de vermelho quis recusar-lhe a entrada. O oriental imobilizou-o com o olhar. Entrou. Percorreu os compartimentos. O mesmo desperdício de luz e mais as flores, os tapetes... Bem-estar! Numa antítese à brancura reta das paredes, o sensualismo de couros almofadados. E o salão nobre. A orgia escancarada.

Todo o recinto era branco. Dispostas a poucos metros das paredes as colunas apoiavam o teto baixo no qual os candelabros plagiavam a luz solar. Espelhos no entremeio das portas fenestradas eram como olhos pasmos e imóveis. As flores feminilizavam colunas e alampadários, poluíam seu odor misturando-o à emanação das carnes suarentas e nessa decoração de fantasia apinhavam-se comendo e bebendo, sorrindo e cantando, uma comparsaria heterogênea.

Bem na frente do judeu, sentados em torno duma mesa estavam dois homens e uma mulher. Falavam língua estranha cheia de acentos guturais. Seriam ingleses... Os homens louros e vermelhos denunciavam a proporção considerável da altura pelo esguio dos torsos e dos membros mas a perfeição das casacas dava-lhes à figura um quê de aristocracia.

A mulher era profundamente bela. Trajava preto. Gaze. A fazenda envolvia-lhe a plasticidade das ancas e das pernas, dando a impressão de que o busto saísse do escuro. O vestido como que terminava na cintura. Um tufo de tules brancos subia sem propriamente encobrir até parte dos seios, prendendo-se ao ombro esquerdo por um rubi. Sobre a perfeição daquele corpo a cabeça era outra perfeição. Na brancura multicor da pele queimava uma boca louca rindo alto. As narículas quase vítreas palpitavam voluptuárias como asas de pombas. Os olhos eram da maior fascinação no arqueado das sobrancelhas, na ondulação das pálpebras, no verde das pupilas más. E colmava o esplendor uma cabeleira de pesadas ondas castanhas. Já tonta, meneando o corpo, estendendo os braços com joias sobre a toalha, oferecia-se à contemplação abusiva da luz. Era nela que os dois ingleses apascentavam os olhares.

Em torno de todas as mesas, como refrão do prazer rico repetia-se a mesma tela: homens rudes acossados pelo desejo, mulheres incastas, perfeitas e maravilhosas.

Do outro lado do salão a orquestra vibrou. Ritmo de dança, lento. Balançaram dois ou três pares num círculo subitamente vazio. Um dos ingleses e a mulher de preto puseram-se a dançar. Inteiramente abraçada pelo homem ela jungia-se a ele, agarrava-se-lhe de tal jeito que formavam um corpo só. Ondulavam na cadência da música: ora partiam céleres como numa fuga, parando longamente depois como num espasmo. Ora se afastavam um do outro num requebro, ora mais se uniam e o braço esquerdo dela rastejava no dorso negro da casaca dele. Dançavam com os sentidos e a mulher na ascensão do calor e da volúpia, mostrava na juntura esquerda dos lábios um começo de língua.

O judeu continuava a olhar. Seguia os pares no baloiço do tango, esforçando-se por disfarçar com a imobilidade a excitação interior. Mas seus olhos chispavam. Mas juntas nas costas tremiam-lhe as mãos mordidas pelos dedos.

Enfim vibrados os últimos acordes, os dançarinos pararam. A inglesa seguida pelo parceiro, arrebentando os olhares que lhe impediam a passagem, viera sentar-se. Incrível! O judeu bufando enterrara o chapéu na cabeça, abrira o fraque com tal veemência que os botões saltaram e tirando dum bolso interno uma correia de couro, fustigara a espádua da mulher. Tal fora a energia da relhada que o sangue imediatamente brotava no vergão enquanto a infeliz uivava ajoelhando. O golpe arrebentara a gaze junto ao ombro.

Mas o judeu malhava indiferente todas as formosuras.

Um primeiro imenso espanto paralisou a reação daqueles bêbedos. O fustigador derribando cadeiras e mesas atravessava os renques de pusilânimes, cortava caras e braços nus. Tumulto. Balbúrdia dissonante. O mulherio berrava. Os homens, temendo serem atingidos pela correia do louco, fugiam dele na impiedosa comicidade das casacas. Arremessavam-lhe de longe copos e garrafas. Mas ele percorria em alargados passos o salão, castigando todos com furor. Onde a correia assentava, negrejava um sulco, chispava um uivo.

Nos primeiros segundos... Depois, em número, os homens já se expunham mais aos golpes na esperança de bater e derrubar. O círculo apertava-se. O oriental teve de defender-se. Vendo junto à parede um amontoado de mesas saltou sobre ele. Abandonara o chicote, empunhara uma cadeira, esbordoava com ela os que procuravam aproximar-se. Impossível atingi-lo. Seus braços moviam-se agílimos tonteando cabeças, derreando mãos.

As mulheres agrupadas à distância reagiam também. As taças pratos copos atirados por elas sem nenhuma direção, acertavam nos alampadários cujos focos arrebentavam. As luzes apagadas esmoreciam a nitidez do salão e as sombras enlutavam o espaço, diluindo todos numa semiobscuridade pavorosa.

Mais gente que acorria. Os passeantes do miradouro atulhando as portadas saboreavam em meio susto a luta. Os motoristas procuravam roubar bebidas. A polícia telefonava pedindo reforços.

Mas o oriental já começava a arquejar. Seus lábios grunhiam. Uma garrafa acertara-lhe na fronte. O chapéu, saltando da cabeça, descobriu na empastada desordem das madeixas a rachadura sangrando. O sangue carminava-lhe o rosto, cegara-lhe o olho esquerdo, entrava-lhe na boca e escorrendo pelo hissope da barba. Afinal alguém consegue agarrar-lhe a perna. Puxa-o com força. Ele tomba batendo-se. Todos tombam sobre ele. Ninguém lhe perdoa a desforra. Os que estão atrás levantam os punhos inofensivos para o alto esperando a vez. Desapareceu num molho de homens.

Chega a polícia. A autoridade só com muita luta e usando força, livra o mísero. No charco de champanhe, sangue e vidros estilhaçados, ele jaz expirante. Pernas unidas, braços estendidos para os lados, olhos fixos no alto, como querendo perfurar as traves do teto e espraiar-se na claridade fosca da antemanhã. Levaram-no entre insultos.

Todo jornal comentava o caso no dia seguinte. O público lia o inédito do escândalo, as invenções idiotas, as mentiras sensacionais dos noticiaristas. Nas múltiplas edições dos diários, relegado às derradeiras páginas, repetia-se o estribilho perdido que ninguém leu. Um guarda-noturno achara rente a uma casa em construção, uma pequena mala de viagem. Aberta na mais próxima delegacia, encontraram nela entre roupas usadas e de preço pobre, uma tabuinha com dizeres apagados, quatro grandes cravos carcomidos pela ferrugem e uma coroa feita com um trançado de ramos em que havia nódoas de sangue velho e restavam alguns espinhos.

-------------------------------------

ALGO PARA DIZER A RESPEITO..

1. Essa não é uma obra tão famosa de Mário de Andrade, tocando em alguns pontos de tabus sociais assim como Macunaíma, por exemplo. Um dos grandes da Academia Brasileira de Letras, ele era um homem profundamente nacionalista e Católico. As concepções de moral e santidade do Catolicismo na virada dos sécs. 19/20 certamente influenciaram essa e muitas obras dele.

2. No texto, existem algumas referências aos Evangelhos. Algumas óbvias, como os cravos nas malas e o aspecto "sírio" ou "judeu" do homem; outras mais sutis como ele se importar com o Natal (supostamente Seu aniversário), a barba e o cabelo longos, não-feitos como de alguém humilde (aspecto pobremente descrito de Jesus), o rompante de açoitar as pessoas em uma espécie de restaurante ou casa de baile. Finalmente, a posição de braços estendidos, após ser "apedrejado" e espancado pela multidão.

3. Nos Evangelhos, Jesus açoitou os vendedores de oferendas dentro do Templo. Aparentemente, o motivo era terem transformado a Casa de Deus em um mercado. No texto, Jesus açoita as moças "pouco vestidas" que flertavam com os homens numa casa de bailes. A descrição das moças é bem detalhada e envolvente. Aparentemente, o novo mercado dentro da casa de Deus era a sensualidade em pleno Natal. Mas Jesus jamais se expressou contra a sensualidade nos Evangelhos. Nem tampouco contra mulheres. Muito menos uma casa de bailes poderia ser considerada lugar sagrado.

4. Mário de Andrade conhecia os Evangelhos e associava Jesus fortemente a uma imagem de grupo familiar. Outro conto dele, Peru de Natal, traz um pouco desse contexto. Outras formas de comemoração - sem a família - seriam para ele profanas, equiparando-as com a venda de oferendas no templo. Há o "profano de Jesus" e o "profano do Jesus de Mário". Relembrando uma fala genial de Ed René Kiwiz, Deus não cabe no nosso entendimento e portanto não nos cabe tentar explicar Ele, retratar ou prever como Ele agiria.