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domingo, 9 de junho de 2024

Sebastião e Oxóssi no nordeste



Sincretismos. Essa palavra tão acadêmica é usada para indicar que um conhecimento ou uma cultura foi traduzido (erroneamente) dentro de outra, literalmente dando aos elementos de um lado a funcionalidade dos elementos do outro lado. Mais ou menos como substituir o açúcar por sal, porque são bem parecidos.

Um exemplo atual e prático de sincretismo é o Dia-das-bruxas. A data de 31/10 é uma data religiosa do antigo calendário Celta (Gália/Espanha, séc. 3 a.C.), chamada Samhain, que coincide com o Dia-de-los-muertos no México (01/11) e o Dia-de-finados no Brasil (02/11), ou seja, uma data quando os vivos e seus antepassados mortos se encontram. Na época dos Celtas, isso significava os vivos levarem presentes ou comidas para ter uma 'reunião' com seus mortos. Mas na Europa cristianizada, se tornou levar flores para os cemitérios (que os Celtas não tinham). A data relacionada aos mortos foi seguida no Brasil, mas não a tradição de fazer festas para os mortos, como no México. Nos EUA, ficou sendo uma peregrinação das crianças (vestidos de mortos) até a porta das casas para exigir seus presentes. Alguma coisa restou de reconhecível.

Aqui, eu gostaria de falar de um duplo sincretismo. Quem sabe triplo. Um deles, relacionado ao santo Católico denominado Sebastião, que foi sincretizado dentro do Cristianismo mesmo. Depois, sobre o orixá Oxóssi, oriundo das tradições Yorubás na região do Congo/Nigéria, que foi miscigenado, no Brasil, ao personagem Católico. O resultado foi uma curiosa quimera, que vale ser desmontada pelo que suas partes dizem das nossas várias vertentes culturais.

OXÓSSI

Oxóssi (escrita brasileira de Òsoòsi) é um Orixá. Na Nigéria, durante o festival de Obatalá (Orixá criador), uma cabeça de pedra é regada a bebidas alcoólicas em homenagem a ele. Diz-se que é a cabeça do próprio Oxóssi, deixada para fora quando ele se fundiu à terra. A palavra já foi usada para designar grandes reis da cultura Yorubá, aqueles que unificaram um grande número de aldeias ou cidades. Mais tarde, foi usada para designar divindades do panteão religioso, normalmente envolvidas com rios, árvores, o céu, etc. Embora hoje existam em forma escrita os textos referentes aos orixás, são na verdade poemas originalmente transmitidos em forma oral, como as lendas gregas. Isso significa que há vários Oxóssi, mais ou menos como os vários Aquiles que Homero reuniu quando escreveu A Odisséia: cada ilha grega tinha o seu herói um pouco diferente.

Os poemas que mencionam essa divindade o nomeiam também como Ocantoxoxô, Erinlè ou Inlè, dando a entender que Oxóssi é um título de grande honra (ex. César = imperador ou Cleópatra = rainha) e não um nome próprio.

Os poemas sobre Oxóssi identificam-no como um homem das matas, conhecedor de trilhas e plantas medicinais. Por outro lado, também é referido como Odé, ou caçador. Sua figura se ajusta bem ao povo Pigmeu que ainda vive na região do Congo, Camarões, etc, mas, dadas as similaridades de ambiente, é difícil o imaginário brasileiro não identificar Oxóssi com um indígena da Mata Atlântica ou Amazônia. Um antigo Itan (poema histórico) diz que Oxóssi atendeu ao convite de Oxalá/Obatalá e veio do Orum (céu) para habitar o Aiê (terra) junto com todo seu povo, antes mesmo que Ele criasse os homens. Não há referências sobre quem seria tal povo, mas a mitologia brasileira faz referência a "espíritos das matas" como Pai-do-mato, Caipora, Boitatá, Cuca, etc. Mesmo a temida Matinta-perera, bruxa das matas (regiões norte e nordeste) que se disfarça como pássaro, vai em algumas linhas fazer tal semelhança parecer assombrosa.

Os Orixás têm pai e mãe. Oxóssi é filho de um curioso Orixá chamado Okò (= fazenda ou fazendeiro), que parece ter sido um jovem irresponsável, briguento e bebedor, que foi expulso da cidade de Irawo e passou tempos andando pelos campos. Em algum texto ele é referido como Olasi ou Olagbirin. Em sua vida campestre, Okò progrediu como plantador (ele é associado ao surgimento da agricultura), voltando à cidade para prover alimentos numa época de fome, e por isso foi chamado Orixá da Agricultura. Okò é venerado com objetos e comidas brancas (símbolo dos Orixás fun-fun ou criadores, como Oxalá) depositadas na base de grandes árvores de mogno [africano], mas também com tigelas de água onde esse conhecedor das plantas medicinais seria capaz de depositar remédios. Muitas dessas características foram passadas a Oxóssi.

A mãe de Oxóssi é Ìyá Apáòka / Iya Nbanba / Iya Mó, outro personagem curioso. Ela é uma das Iyá Mi Oxorongá, ou Mães-feiticeiras, junto com Ìyá Mepere e Ìyá Bokolo. As três (ou centenas delas) vieram do Orum e tinham afeição pelas árvores, mas usavam seus poderes contra os homens¹. Do alto de cada árvore, as feiticeiras, que se transformavam em pássaros, proferiam encantamentos para perturbar tanto homens como Orixás. Qualquer semelhança com a Matinta-perera é digna de ser pensada. Apaziguada ou enfeitiçada por uma preparação de Okò, Ìyá Apáòka teria traído suas companheiras apaixonando-se por Okò, de quem gerou um filho (de ovo?) chamado Erinlè ou somente Inlè. Ao contrário dos outros Orixás, diz-se que Erinlé não aceita sacrifícios de aves (!).

Contam os Itans que Erinlé ( = caçador de elefantes) cresceu como Odé e recebeu seu título de Oxóssi após matar com única flechada um pássaro enorme, enviado das Oxorongá para atormentar uma aldeia. Invulnerável pela magia que o cercava, o pássaro teria sido momentaneamente distraído por uma oferenda de sua mãe às Oxorongá (!). Por isso o símbolo de Oxóssi é um arco-e-flecha. Mais tarde, raptado por Ossain, Orixá das matas mais profundas, ele teria aprendido de seu raptor os segredos de todas as plantas.

O artefato que Oxóssi carrega nas suas representações é um arco-e-flecha de metal; de metal tanto o arco como a corda e a flecha. Logo, não se trata de algo funcional. Outros Orixás também levam ornamentos de metal: Okò (que leva um cajado e uma adaga), Ogum (Senhor-do-ferro, que leva uma espada) e Xangô (Senhor-da-justiça, que leva um machado). Esse simbolismo denota um tempo em que a metalurgia desenvolveu-se na planície do rio Níger, mais ou menos no séc. 9 d.C., até onde se sabe por volta do reinado de Oduduwa². Sendo Xangô frequentemente descrito como um rei, é provável que ele e vários outros Orixás, colocados como divindades, já tenham sido reis Yorubá.

Erinlé também é o nome de um rio Nigeriano que comunica um lago de planície com o caudaloso e longo rio Oxum. Não sem motivo, os Itans dão conta de que Oxóssi/Erinlé apaixonou-se por Oxum, a Dama-das-águas-doces, filha da própria rainha Iemanjá (Dama-das-águas-salgadas). Oxum foi o primeiro ser a enganá-lo, lambuzando-se de mel e rolando sobre as folhas da floresta. Apesar do enorme apetite sexual de Oxóssi (semelhante a Okò, que geralmente é representado com um grande pênis ereto), os dois não se suportavam e se separaram após produziram um filho de estória ainda mais curiosa que o pai, com natureza dual (masculino/feminino, terrestre/aquático).

A semelhança dos Orixás com elementos da paisagem Yorubá não é casual: todo o entorno das aldeias, florestas, árvores, rios, etc são entendidos como entidades, seres vivos aos quais os homens devem respeito e com os quais podem conversar ou mesmo duelar.

SÃO SEBASTIÃO

Trata-se de um santo Católico do período tardio de Roma, entre o auge militar do Império (séc. 1 a.C.) e sua fragmentação no séc. 5 d.C. São Sebastião viveu entre 255 e 288 d.C. Nessa época, o Cristianismo ainda estava em formação, com muitas doutrinas circulantes e considerável integração com outras religiões do Império.

A veneração a São Sebastião foi descrita em textos já de 354 d.C., pouco depois da permissão do Cristianismo em Roma (313 d.C.) e menos de 70 anos após seu assassinato. Ele foi fortemente cultuado na Europa durante a Alta Idade Média, entre a fragmentação de Roma Ocidental e as Cruzadas. Num escrito do séc. 14, especifica-se que São Sebastião veio da Gallia Narbonensis (sul da França) e foi treinado como soldado Romano em 283 d.C. em Milão/Itália. Teria chegado ao posto de capitão da Guarda Pretoriana (soldados que protegiam o imperador, como o Serviço Secreto dos EUA), sem revelar que era Cristão. Nesse tempo, os Cristãos se reuniam silenciosamente nas casas de membros do grupo, sendo seu culto proibido e passível de morte.

Como encarregado dos prisioneiros, ele interagia com esses e as autoridades, tendo inclusive convertido ao Cristianismo pelo menos 16 pessoas que acabaram sendo todas executadas como mártires. De fato, o livro Legenda Áurea, sobre a vida dos santos, descreve que, quando as pessoas eram tentadas a renegar Cristo em troca de salvar as próprias vidas no cárcere, Sebastião as convencia do contrário: "... os contratempos são efême­ros, e essa perseguição que agora sofremos, se é violenta hoje, amanhã terá desaparecido: uma hora a trouxe, uma hora vai levá-la. Mas as penas eternas renovam-se sem cessar, a vivacidade de suas chamas nunca diminui, para sempre punir. Estimulemos nosso amor ao martírio". Nesse meio tempo, uma mulher muda passou a falar. O pai de dois condenados, adoentado, ficou curado após destruir os ídolos que guardava. Centenas de pessoas teriam sido batizadas em plena época de perseguição, ao ouvirem seus testemunhos.

Descoberto como Cristão, um dia ele também foi condenado à morte. A execução [militar] se deu com Sebastião amarrado a uma árvore e "os arqueiros atiraram nele até que ficou tão cheio de flechas quanto um ouriço, e assim o deixaram lá, como morto". Mas as flechas não mataram Sebastião, que foi resgatado pela viúva (também canonizada) de um dos outros mártires. Ela o levou para sua casa e cuidou de seus ferimentos, até que ficasse bom.

Já recuperado, ao invés de fugir, Sebastião se posicionou em um lugar onde o imperador Diocleciano (quem o mandara executar antes) deveria passar e bradou publicamente contra o rei - bem aos modos de João Batista acusando Herodes I - por suas crueldades com os Cristãos. Outra vez foi preso. Agora, num segundo martírio, ele foi espancado até a morte e seu corpo foi atirado na fossa Romana de esgotos. Mais uma vez uma mulher o resgatou, enterrando-o no local onde hoje está a Basílica de São Sebastião ("próxima aos apóstolos"), após uma recomendação post mortem vinda do próprio Sebastião.

O Catolicismo tem como poderosos ou místicos os restos mortais, que sempre atraem peregrinos aos túmulos dos santos. Por isso, o Papa Eugênio II presenteou os ossos "curativos" de São Sebastião à abadia de Saint Denys, na França, "exportando" para lá o seu culto em 826 d.C. O crânio de Sebastião teria sido separado e levado para Ebersberg/sul da Alemanha em 934 d.C, onde também surgiu um centro de peregrinação. Lá está preservado, ainda hoje, um pedaço de osso revestido com ouro e prata.

A recuperação "da morte" foi atribuída a algum poder milagroso de cura, ao que o santo foi associado. De fato, a maioria dos milagres de São Sebastião sempre ocorreram em situações de cura, especialmente nas épocas de peste/epidemia. Por causa disso, São Sebastião ocupou um lugar importante na mídia medieval, constando como um dos santos mais retratados no período após a Peste Negra (aprox. 1348, quando cerca de metade da Europa foi dizimada).

Desde a Renascença (sécs. 14 a 16), quando os ideais de beleza Grega foram resgatados, São Sebastião passou a ser representado como um jovem torneado, amarrado, contorcido e seminu, com as tradicionais flechas cravadas no corpo. Embora essa não tenha sido sua causa mortis, pouco se fala do martírio posterior. Aqui no Brasil, no dia 20 de janeiro (de 1567), aniversário de sua morte, os portugueses expulsaram os franceses do Rio de Janeiro (então Guanabara), ao que a cidade adotou São Sebastião como padroeiro.

Curiosamente, a exposição sacra do corpo masculino fez circularem associações dele com o ideal de atleta ou soldado, além de manifestações eróticas.

VÁRIOS PORQUÊS

É bem conhecido que os cultos Afro no Brasil utilizaram pedras (Otás) e imagens Católicas como refúgio contra a perseguição, decorando os templos de Candomblé(s) com imagens de santo e nomeando seus Orixás como personagens Cristãos. Com o processo de "cristianização" da África em andamento, a Igreja Católica passou a ver os negros como "um povo a se converter" e não mais como "mercadoria sem alma". Assim, desde o séc. 17 surgiram confrarias ou irmandades destinadas a catequizar e proteger os negros catequizados, geralmente tornados devotos de algum santo negro como São Benedito ou Santo Elesbão. Por volta de 1830, as confrarias haviam se agigantado, reunindo tanto negros "misturados", isto é, que praticavam uma mistura de Catolicismo e Candomblé (o que viria a ser a Umbanda, no séc. 19), quanto aqueles que praticavam publicamente o Catolicismo e, no interior da confraria, o Candomblé. Essa foi a origem dos mais antigos terreiros de Candomblé no Brasil (Ilê Axé Iyá Nassô Oká - antiga Sociedade São Jorge do Engenho Velho; Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê - antiga Sociedade São Jorge do Gantois; Ilê Axé Opó Afonjá.- antigo Centro Cruz Santa do Axé Opó Afonjá; Terreiro Bate Folha - antiga Sociedade Beneficente Santa Bárbara do Bate Folha; Ilê Axé Oxumaré ou Casa de Oxumarê - antiga Sociedade Cultural Religiosa e Beneficente São Salvador). Nessa época, entre aqueles que misturavam elementos dos dois credos, Oxóssi foi 'disfarçado como' ou 'misturado a' São Sebastião.

A tradução do Orixá em Santo reúne elementos da diáspora africana (povos Yorubá trazidos para o Brasil), do Cristianismo Europeu (com figuras heróicas e santos Católicos), dos indígenas habitando o nordeste brasileiro e do imaginário caboclo, como se fosse um grande "cozido" de ideias. Sem a imposição do Catolicismo aos Yorubá escravizados, é muito improvável que tal associação acontecesse, e justamente essa escolha entre Orixás e santos merece ser entendida.

Contra a escolha de um representante Cristão para a fé nos Orixás, claramente estava a disparidade de contexto das divindades. No contexto Yorubá lá na África, havia Orixás deixando o mundo espiritual para habitar elementos naturais do Aiê, dos quais se tornam protetores e onde podem ser invocados. Seus lugares não são apenas sagrados, mas que também falam a respeito deles. Lembremos que Enrilé é um caçador de elefantes e também um rio. No contexto Cristão, os santos são pessoas realizando maravilhas só explicadas sobrenaturalmente, muitas vezes tais que só começam a ocorrer após a morte do santo, geralmente nas proximidades de sua tumba ou restos mortais, como se ele emanasse nesse mundo algum poder oriundo de Deus.

Não há elementos para pensar que Oxóssi seria melhor traduzido em São Sebastião do que em outros santos Católicos, como São Huberto de Liège, o caçador (656 - 727 d.C.), ou São João Gualberto (985 -1083 d.C), que viveu em uma mata no pé dos montes Apeninos. A escolha de São Sebastião pela presença de flechas nas imagens parece muito boba. Afinal, se Oxóssi é um Odé, São Sebastião conforme retratado popularmente está mais semelhante à caça do que ao caçador.

Pensando que provavelmente o leitor brasileiro nunca ouviu falar dos santos mencionados acima, a escolha de São Sebastião pode estar ligada ao imaginário local único do Brasil e mais único ainda na região no nordeste, onde o país foi colonizado primeiro. O aspecto nu pelo qual São Sebastião é conhecido lembra um indígena brasileiro, os mesmos Cariris, Caetés, Tupinambás e Tupiniquins com quem os caboclos e portugueses disputavam terras. Sobre ele pesa o imaginário de guerreiro geralmente associada a alguma peça de armadura (também compatível com São Jorge, São Miguel Arcanjo ou até mesmo alguns apóstolos de Jesus como Simão o zelote). Além disso, a eleição de São Sebastião em particular pode ter alguma ligação com a grande popularidade nordestina de Dom Sebastião I (1554 - 1578), um lendário rei de Portugal³. Nessa terra de engenhos de açúcar para onde desembarcaram muitos Yorubás, o rei português morto no norte da África pode ter tido sua imagem (mítica) misturada com a do santo Pretoriano de quem veio seu nome, favorecendo que ganhasse ares de cavaleiro ou guerreiro salvador.

Dom Sebastião foi associado à cavalaria medieval e muito propagandeado como esperança de libertador pelo célebre escritor luso-brasileiro Padre Antônio Vieira⁴. Ecos desse culto a Dom Sebastião foram vistos até mesmo no final do séc. 19 em episódios como a Pedra Bonita⁵. Nessa junção do Orixá africano com o indígena brasileiro e o cavaleiro mítico português, o santo Romano levou vantagem. Os dias votivos de São Sebastião e Oxóssi são ambos em 20 de janeiro, aniversário de morte do santo*.

Uma semelhança sensível entre os dois mundos, que também deve ter contribuído para que os brasileiros caboclos unissem um Orixá a um santo é que os Orixás são materialmente associados a seus elementos. Na África, Enrilé era associado com as matas ao redor do rio de mesmo nome mas, no Brasil, o conceito se diluiu e Oxóssi se tornou um indígena da Mata Geral. Qualquer mata, e mais particularmente a Mata Atlântica no litoral do nordeste. Os santos Católicos são geralmente associados a basílicas e templos contendo algum resto mortal do santo, peça de roupa, etc. Na Europa, São Sebastião ficou "repartido" entre o local em que foi enterrado originalmente e mais dois onde guardam pedaços seus (Itália, França e Alemanha). No Brasil, sem as basílicas, toda igreja ou casa com uma imagem do santo pode ser local de culto.

Se há o fácil acesso a pontos de culto encontrado no Candomblé, que permitiu a devoção a Orixás africanos acontecer no Brasil e Caribe, a devoção aos santos Católicos também pode ser muito significativa em locais pouco oficiais como capelas erigidas numa fazenda, numa casa, etc. Imagine-se o que pode ter ocorrido com uma imagem de São Sebastião, tradicionalmente seminu e portando alguma parte de armadura, se esta fosse instalada por portugueses em uma capela junto à mata, num local de adoração frequentado por caboclos brasileiros, muitos descendentes de Yorubás ou convivendo com descendentes deles, que tinham contato com indígenas e que ouviam, na cidade, sobre as façanhas de Dom Sebastião. Esse caldeirão onde todas as ideias se misturam pode ter "cozinhado" um Oxóssi - São Sebastião que ganharia seu nome dependendo de onde estivesse, se numa reunião de Candomblé ou numa procissão.

Com o tempo, os ambientes de Candomblé e Catolicismo brasileiros se distanciaram. A urbanização das populações contribuiu muito para isso. Os filhos de Oxóssi, hoje, tentam aproximar seus comportamentos da vida indígena, ideais de coragem, manipulação de ervas medicinais e provimento de alimentos. Em muitos casos, são filhos-de-santo (iniciados) que incorporam o Orixá nas cerimônias religiosas e estão condicionados a abster-se de algumas coisas chamadas "quizilas". No mundo Cristão, as experiências mais intensas estão associadas às igrejas evangélicas pentecostais, onde se fala da possessão pelo Espírito Santo, mas onde nenhum santo é cultuado. Dentro do universo Católico em específico, onde estão os devotos de São Sebastião, há quem participe do auxílio e pregação aos presos ou doentes (como Sebastião em seus tempos de Guarda Pretoriana), mais raramente desafiando governantes injustos (geralmente ditadores ou presidentes militares).

Entre os filhos de Oxóssi (ou qualquer outro Orixá), não há apelos à prática de nudez, mesmo em situações rituais. Tampouco há qualquer elemento gay nas incorporações desse Orixá. Também não há nudez ou elementos gays (seja lá o que isso for) nas manifestações de fé Católicas. Dessa forma, o apreço dos gays (masculinos) com São Sebastião não tem qualquer associação com a vida do santo, nem com suas formas de culto e provavelmente ocorre apenas via uma reação mais imatura à exposição do corpo masculino.

O milagre de cura de São Sebastião não se repetiu com ele mesmo, que morreu espancado. Sua popularidade na Europa foi construída através de contos sobre a influência benigna dele na cura de vários doentes ou até cidades inteiras. Por exemplo, o rei Gumbert da Lombardia (665 - 700 d.C.) supostamente conseguiu que a peste parasse de atacar suas terras após mandar erguer no ano de 680 um altar para São Sebastião na capital Ticinum, hoje Pávia / Itália. Há Orixás com poder de cura e Oxóssi é um deles, mas não existe uma "oração para Oxóssi" ou mesmo um ebó (oferenda) que possa ser feito para conseguir magicamente uma cura. Há, porém, preparações medicinais feitas pelo babalaô/ialorixá que devem, a fim de produzirem seu efeito, serem consagradas por exemplo a Oxóssi. Participar de um desses rituais de cura não é tão diferente de levantar um altar para o santo sobre seriam preparados os medicamentos.

Podemos finalizar afirmando que o equivalente de Oxóssi dentro do Cristianismo é São Sebastião por motivos bem particulares do nordeste do Brasil na época da colonização. O "Sebastoxóssi" produzido  daí não é cultuado nas igrejas Católicas nem nos terreiros de Candomblé, por serem religiões mais atreladas a sua fundação histórica. Mas trata-se de uma divindade presente na religiosidade mais popular e alheia às autoridades e bibliografias. E ele também é uma divindade reverenciada em muitos templos de Umbanda, de Jurema ou simplesmente um elemento de compreensão ou aceitação das divindades Afro dentro do universo Católico.

Nesse espaço, "Sebastoxóssi" funciona semelhantemente a um signo do zodíaco, um arquétipo de personalidade significando ser "confiante, expansivo, e também raivoso quando ameaçado ou traído". No Candomblé, além do arquétipo de personalidade existe a necessidade do "filho de Oxóssi" agradar seu Orixá patrono para ter sucesso, assim como ter "de nascença" certas fragilidades em relação às quizilas que o enfraquecem. Oxóssi é fragilizado por mel (vide Oxum), bebidas alcoólicas (vide Ossaim) e aves mortas (vide mamãe Apaoká). Dentro da Umbanda, vemos algo da devoção Católica de oferendar algo para obter certo resultado, ou mais especificamente realizar alguma "simpatia" ou "despacho" para se obter o favor do santo, além da tradicional devoção imposta por um dos pais que dedicou a criança ao santo, em geral em troca da cura de uma doença grave.

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notas de rodapé:

¹ Dentro do entendimento Yorubá da Natureza, as árvores possuem temperamentos específicos, podendo ser benéficas ou terríveis. Daí a necessidade de interagirem com as árvores e conseguir sua amizade. A árvore Orobó (Garcinia kola heckel) produz felicidade, justiça e vida longa; a araticuna da areia (Annona senegalensis) produz destruição de tudo que alguém gosta; o baobá (Adansonia sp.) propicia a realização dos desejos; o iroko ou gameleira branca é a árvore mais poderosa de todas (Milicia excelsa ou Ficus insipida) e pode fazer as pessoas sofrerem acidentes; o apaoká ou mogno (Khaya senegalensis) é capaz de matar.

² Oduduwa é referido também como um Orixá. Ele rivaliza com Oxalá nas tradições sobre a criação do mundo material. Em alguns Itans, Oxalá se embriaga com vinho de palmeira, dorme e Oduduwa vem em seu ligar para o Aiê e cria o mundo. A Oxalá resta a fabricação dos homens a partir do barro. Verger chegou a registrar um Itan onde Odudua é a esposa de Oxalá. Nos Itans particularmente transplantados para o Brasil com líderes religiosos escravizados, toda a Criação ocorre por obra de Oxalá e Oduduwa nem é mencionado.

³ Dom Sebastião I nasceu em 20 de janeiro e foi nomeado em homenagem ao santo executado naquele dia. Ele foi coroado rei de Portugal em 1574 e desapareceu no Marrocos, durante uma batalha do processo de conquista do norte da África por Portugal. Muito jovem para ter herdeiros, ele foi sucedido no trono por seu parente Felipe II, rei da Espanha, que unificou os dois países. Em Portugal e no Brasil, nutriu-se por muito tempo a crença de que Dom Sebastião retornaria um dia da África para resgatar seu reino. No Brasil, Dom Sebastião tornou-se protagonista de lendas sobre um "cavaleiro salvador" que duraram até o séc. 19.

⁴ Padre Antônio Vieira (1608-1697) foi um jesuíta português que fez muitas viagens entre o Brasil e Portugal, terminando por ser enterrado na Bahia. Tratava-se de um intelectual com alta produção de textos, sermões e livros que eram muito influentes não apenas na política, mas também entre a sociedade não religiosa. Ele fez parte do movimento Sebastianista nos dois países, defendendo os direitos indígenas entre a nobreza. Mais ao fim de sua vida, Vieira chegou a escrever profecias que descreviam Portugal como o Reino de que a Bíblia fala, situando essa 'terra abençoada por Deus' bem aqui no Brasil. Por se tratar de um escritor e orador muito influente, suas ideias acaloraram as disputas por poder entre a Coroa Portuguesa a Igreja no Brasil.

⁵ Pedra Bonita, na Serra do Catolé / Pernambuco, foi palco de um evento messiânico retratado por Ariano Suassuna em seu livro "A Pedra do Reino". Nesse local de muitas mortes, onde existem duas torres de rocha de 30 m de altura no meio do sertão, entre 1836 e1838 um grupo de adoradores de Dom Sebastião I elegeu para si um rei-sacerdote que anunciava que, havendo suficientes sacrifícios humanos, Dom Sebastião (aquele, da reconquista da África) voltaria à vida ali mesmo, como um cavaleiro medieval vestindo sua armadura, tornaria as pedras em torres do seu castelo e implantaria um reino de justiça na Terra.

* Uma curiosidade: na Bahia, Oxóssi é sincretizado com São Jorge, o cavaleiro turco. Seu dia votivo então é 23 de abril, início da primavera.
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Nem leia mesmo..
 
Ajisafe,  Oluwo Ifagboun. Òrìsà Oko, Templo Iledi Ifagboun Ajisafe, 16/06/2021.

Barcelos, Renata (Yemojagbemi Omitanmole Arike). 10 coisas para saber sobre orisa Oko na Africa yoruba. 2023.
 
de Varazze, Jacopo (arcebispo de Gênova, 1229-1298). Legenda áurea : vidas de santos. Ed. Companhia das Letras, 2003.
 
Hansley, Keith. The Great Pestilence of Ticinum in the 7th century. Thehistorianshut.com, 16//06/2021.
 
Ifágbòàlà, Oluwo. O conceito do culto à Òsóòsi em relação à Òrúnmìlà. Instituto de Pesquisa Yorùbá – egbé Ifá gidi gidi, 07/06/2017.
 
Marins, Luiz de Lourdes. Òrìsà dídá ayé: òbátálá e a criação do mundo iorubá. África, v. 31-32, p. 105-134, 2011/2012.
 
Ogumefu, Margaret Irene. Yoruba Legends. Ed. The Sheldon Press, 1929.
 
Òrisà Oko. Candomblé - O Mundo dos Orixás, 02/10/2014.
 
Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Ed. Companhia das Letras, 2001.
 
Tabu no Candombé - continuação. Candomblé casa das águas, 04/10/2016.
 
Verger, Pierre Fatumbi. Orixás – Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Ed. Corrupio, 1981.
 
Verger, Pierre Fatumbi. Lendas Africanas dos Orixás. Ed. Carybé, 1997.
 
Yá Apaoká. Oloje Ikú Iké Obárainan, 04/10/2013.

domingo, 1 de março de 2020

A Igreja e seus apetrechos

Quadro de Bosch Jeroen van Aken, mais conhecido como Hieronymus Bosch (1450 - 1516), o Jardim das Delícias Terrenas - Céu, Terra e Inferno (pintado por volta de 1500). Os dois painéis laterais se dobram, fechando a pintura como uma janela. Do lado esquerdo, Deus anda entre Adão e Eva. No centro, as pessoas estão nuas, em ações muito curiosas como deitar dentro de uma ostra, viver numa redoma ou dentro de um fruto gigante, etc. No lado direito há a escuridão e muitos demônios ou animais bizarros, geralmente comendo as pessoas.

Existem múltiplos níveis em que a religião influencia o comportamento das pessoas, por isso se trata de um assunto importante. Há o nível moral, a organização social, etc. Mas não é isso que pretendo discutir aqui, ainda. Antes, acredito ser necessário pensar no funcionamento da religião, em especial, do Cristianismo. Sobre isso, há muito tempo, não me lembro onde, li que "a morte de Cristo foi teologicamente muito mais importante que Sua vida". Não deixa de ser assombroso pensar que o Cristianismo pode depender muito pouco de Jesus.

Basicamente, as pessoas clamam a Jesus por auxílio em suas questões humanas: saúde, vida ou morte, trabalho, dinheiro, conflitos. Paulo descreveu Jesus como um "novo Adão" (1ª Coríntios 15), resgatando o bem-querer de Deus pela Humanidade. Mas esse bem-querer resgatado não incluiu o fornecimento abundante de alimentos sem trabalho, a imunidade a doenças, nem a vida eterna. Por isso mesmo, por ainda termos de carpir o sustento, tratar e resistir a enfermidades, envelhecer e morrer, os Cristãos clamam a Jesus por Seu auxílio.

Jesus viveu, morreu, ressuscitou e ascendeu aos Céus fazem uns 2 mil anos. Como então chegar até Jesus? Como atrair Sua atenção e favor? A Bíblia nos ensina que podemos falar ao Divino sem restrições de formato ou lugar, apenas conhecendo-o "em espírito e verdade" (João 4.23,24). Mas alguns elementos sempre foram preferidos para essa comunicação. O batismo, o sacerdote e o espaço sagrado sempre foram necessidades humanas para chegar ao Divino.

BATISMO

O Judaísmo e o Islã praticam a circuncisão dos homens como ritual de iniciação. No Judaísmo, existe também um banho ritual em fonte ou piscina cheia com água das chuvas. O Catolicismo usa este banho ritual, apenas, em crianças, como ritual de consagração. No Protestantismo, assim como no Judaísmo, é requerido que o iniciado seja capaz de compreender os juramentos que profere.

No Catolicismo, o Batismo é irreversível e uma consagração da criança a Deus, pelo resto da vida e após ela. O batismo garante um lugar nos Céus após a morte, com penitência pelos pecados ou não. Mas esse ritual também significou a aliança de monarcas com a Igreja, no passado. Por aliança, entendamos o rei se tornar administrador de terras ou países pertencentes, desde então e por direito, ao Papa¹.

No Protestantismo, trata-se de uma cerimônia onde é firmado um pacto com Jesus. Implicitamente, também costuma significar aceitar a Igreja como reguladora das suas ações, pois muitas igrejas rejeitam o batismo feito pelas demais. Afastar-se do comando da Igreja, a partir de então, torna o fiel um "desviado", uma ovelha perdida a cujo resgate vale todo esforço. No séc. 20, o Batismo assumiu, dentro do Pentecostalismo, uma 2ª versão, o chamado “batismo pelo Espírito Santo”. Esta tem a função de uma aceitação do fiel por Deus, demonstrada por meio do êxtase religioso, choro, murmuração de palavras incompreensíveis e exaltação de Jesus em alta voz (às vezes com auxílio de megafone e caixa de som em volume máximo)².

Em alguns sistemas, o Batismo pode significar a aceitação do fiel em uma comunidade ou no interior dos espaços religiosos sagrados. No Judaísmo, o Mikveh ou banho ritual também tem uma função de purificação, sendo repetido diversas vezes, após a menstruação, após o sexo, após tocar em objetos ou frequentar lugares considerados impuros. Os impuros ou não batizados devem permanecer fora dos círculos de leitura e discussão, que podem ocorrer também fora das sinagogas. No Islã, a permissão de entrar na mesquita para participar das orações é vedada aos Muçulmanos, ou seja, aqueles que já passaram por circuncisão e declaração pública de sua fé em Allah. No Cristianismo, o acesso e participação dos cultos é livre, mas não há permissão de participar da Santa Ceia, cerimônia que Jesus instruiu os apóstolos a fazerem para lembrar seu comprometimento com Ele, em especial com Seu sacrifício.

Existem muitas divergências sobre quem pode batizar. João Batista praticava seu banho ritual de limpeza nas margens do rio Jordão, mas com uma função muito mais poderosa e permanente do que as limpezas usuais. Foi uma cerimônia pela qual Jesus passou. O livro de Atos fala de um dos seguidores de Paulo batizando um eunuco (Atos 8.27-39), o que significava sua designação como Cristão, mas o próprio Paulo afirma ter batizado muito poucos (Crispo, Gaio e a família de Estéfanas, segundo 1ª Coríntios 1.14-16). Livros dos sécs. 1 e 2, como a Didache, parecem instruir sobre juramentos para as solenidades de Batismo. Não há a citação explícita de que um sacerdote precise fazer a cerimônia mas, sendo João a referência mais antiga e havendo o comprometimento com a Igreja, chegamos a esse entendimento. Tradicionalmente, nobres e homens ricos foram batizados por patentes igualmente altas de dentro da Igreja.

SACERDOTE

O sacerdote representa, desde muito tempo atrás, a "voz de Deus". Nas religiões antigas, o sacerdote incorporava o deus, era empoderado por ele e recebia informações privilegiadas sobre o Universo e o futuro. Era o sacerdote quem coroava os reis, e às vezes os derrubava também (vide Samuel e Saul).

Desde a invasão de Israel por Nabucodonosor II (597 a.C.), essa função foi diminuída, pois o grande rei se tornara, no fim, servo de outro rei, com outra religião. Coisa bem paralela ocorreu com os sacerdotes Judeus, quando se estruturou o Sinédrio: os sacerdotes de outras cidades eram subordinados aos sacerdotes de Israel, e todos eles ao sumo-sacerdote. Na época do 2º Templo não pareciam haver templos concorrentes ao templo de Israel, como Shiló havia sido, por exemplo.

Entre estruturas de poder, costumam acontecer disputas. Durante o governo grego na Judéia, os embates entre sacerdotes Judeus e os representantes da família de Seleuco chegaram mesmo a esvaziar por décadas o Templo Reconstruído. O governo Romano, por outro lado, criou laços entre o clero e os reis a partir da ampliação e reforma do Templo por Herodes o Grande. A família de Anás, sumo sacerdote, ficou a partir de então, atada com a representação do Império. Apesar de todo o conflito que havia entre os Judeus e a lei de divindade dos imperadores Romanos, não foi, como sabemos, o corpo de Fariseus e Saduceus ligados ao Sinédrio que movimentou as revoltas contra Roma na metade do séc. 1.

De acordo com sua herança greco-romano-judaica, a igreja Cristã se consolidou numa única estrutura, em escala imperial, com a aliança aos nobres de Roma e ao imperador Constantino, no séc. 4. O sacerdote passou a ser, antes de tudo, a voz da igreja, que era a voz de Deus. Investido de santidade e até poderes sobrenaturais, segundo a crença medieval, os sacerdotes se curvavam a santidades e poderes ainda maiores, ditados pela hierarquia religiosa. Diversos papas e reis chegaram a ser consagrados seres divinos, como os anjos³.

Embora vinculado duplamente a Deus e a Igreja, o sacerdote geralmente tem como crivo de sua ordenação justamente que seja capaz de combinar as duas direções. Quando não o pode fazer, é afastado das funções pela Igreja, a quem jamais cabe questionar; assim como, por tabela, aos poderes políticos.

Podemos ficar felizes com essa posição unificadora da Igreja enquanto lidamos com Estados zelosos da sua população e cultura. No mundo regido pelo capital e mão de obra, entretanto, não faltam exemplos de governos totalitários e defensores de uma minoria aproveitadora, aos quais, infelizmente, a Igreja tem o mal hábito de se associar. Isso se deu largamente no massacre dos povos indígenas pelos Espanhóis em busca de ouro e prata, na exploração dos povos e terras do Oeste Africano, nos governos Fascistas da Europa e, mais recentemente, nas ditaduras militares da América Latina*.

Algumas ordens religiosas não se opõem a atribuição de poderes sobrenaturais ao sacerdote. Como tal aproximação de Deus pode, de fato, tirar o controle da Igreja sobre ele, quase sem exceção essa atribuição sobrenatural recai sobre sacerdotes já mortos ou sobre os líderes máximos de suas ordens religiosas. O sacerdote morto que produz milagres, além de validar a preferência de Deus por seu grupo (coisa que o vivo também faz), ainda permite que outros sacerdotes interpretem suas palavras, necessidades, oferendas, etc. Nesse ponto chegamos em que Jesus, morto, é muito mais útil a uma igreja com múltiplos líderes do que um Jesus vivo capaz de questioná-los (e sabemos que Jesus era bom nisso)**.

A tradição Greco-romana sobrepujou o Judaísmo nos entendimentos sobre a morte: embora venerassem os túmulos de sacerdotes e profetas, os Judeus tinham repulsa às tumbas como locais sagrados. Os necromantes eram proscritos desde os idos do Velho Testamento (até o séc. 3 a.C.). Já os Gregos e Romanos viam nas tumbas os poderes protetores de antepassados cujos ossos estavam ali. Logo no séc. 4 já haviam tumbas sagradas no Cristianismo, algumas delas sendo de Jesus, Paulo e Pedro, sem falar dos mártires.

ESPAÇO SAGRADO

No Judaísmo, o espaço sagrado de oração é entendido como a reunião de pelo menos 10 Judeus, não necessariamente dentro de uma Sinagoga (e não há espaço substituto do Templo de Jerusalém, há muito perdido). Na época do 2º Templo, os Judeus tinham o espaço do Templo como mais próximo de Deus. Isso não fazia com que apenas orassem nas cercanias do prédio, mas aquele era um lugar mais provável de ser ouvido por Deus. Também era o lugar de fazer agradecimentos pelos pedidos e proteção. No Islã, isso é colocado de forma objetivamente matemática: uma oração na mesquita Al-Aqsa (junto ao espaço onde ficava o Templo, em Jerusalém) equivale a 250 orações em qualquer outro lugar; na mesquita an-Nabawi (Medina), construída por Maomé, uma oração equivale a 1.000 orações. Na mesquita sagrada de Meca, uma oração contém a recompensa de 100.000 orações.

No Velho Testamento, são várias as alusões a espaços puros ou profanos usados para os cultos. Havia os altos dos montes, usados para o culto de Baal, deus dos relâmpagos; os bosques e outeiros usados para o culto de Asherah, a deusa das colheitas; e havia a tenda nômade usada para o culto de JHWH, deus único e supremo, inimigo de toda crendice nos demais***. A tenda era o logradouro da Arca, que depois foi transferida ao Templo de Salomão. Com a destruição do Templo, a Arca foi perdida, mas a construção já havia absorvido o sentido sagrado do objeto original. Em parte, a localização era especial: o local onde Abraão fizera seu pacto com Deus. Reconstruído, o Templo passou a ser sagrado. Seu local é sagrado para Judeus e Muçulmanos até hoje, quase 2000 anos após ser demolido pelas catapultas romanas.

No Cristianismo, os espaços sagrados não são vedados aos não-Cristãos, mas isso ocorre em diversas religiões. Esse acesso livre faz parte da aceitação Cristã a "todo aquele que vier", segundo vemos no livro de Atos. Mas ela encontra barreiras, como veremos a seguir, nos preceitos Neo-judaicos de pureza.

Hoje, a maior parte do mundo Ocidental se declara Cristã. Isso liberou muitas das barreiras de acesso ao espaço Cristão. Não há mais Hunos, Vikings ou Celtas para conquistar os espaços Cristãos. Mas se examinarmos a crença medieval sobre tais espaços, eles eram considerados mortais a duendes, espíritos, bruxas e até vampiros, pelo simples fato de que estes não eram Cristãos. Nas invasões da Normandia pelos Vikings, a catedral de Notre Dame foi o abrigo Cristão predileto. Na derrota de Constantinopla pelos Turcos, em 1483, os Romanos refugiaram-se na catedral de Santa Sophia, e não no palácio imperial, pela crença de que aquele espaço seria nocivo aos Islâmicos. Mais recentemente, não são poucos os contos de pessoas expulsas de igrejas não pelos anjos ou uma força invisível, mas pelo sacerdote e os fiéis, na medida em que foram considerados impuros para aquele espaço. Por outro lado, nobres e ricos beneficiadores da Igreja não raro tiveram suas tumbas bem sob o altar, em sinal de sua santidade eterna, ainda que em vida fossem guerreiros, caçadores, mercadores de escravos, etc.

No Cristianismo, o que torna o espaço sagrado especial é a realização dos cultos ali. Mas é possível que o lugar sagrado seja também depósito de algum ícone, como a tenda onde ficava a Arca. Diversas igrejas Cristãs são guardadoras de fragmentos da Coroa de Espinhos, da Cruz, de ossos dos personagens dos Evangelhos, de corpos de pessoas abençoadas. Os mártires Cristãos, religiosos evangelizadores e nobres que lutaram pela Igreja na época das Cruzadas sempre produziram os ícones mais famosos. Os mártires sem nome, cumpridores do preceito de morrer pela fé, enterrados em locais comunitários, foram uma obsessão Cristã nos sécs. 4 a 10, mais ou menos como o profeta desconhecido que é citado no Velho Testamento. Tumbas coletivas facilmente se transformavam em templos de ossadas. No séc. 16, com a destruição de ícones Católicos que Reforma Protestante provocou, algumas dessas tumbas na Europa até ganharam o adorno precioso dos esqueletos com jóias e roupas finas. Alguns desses esqueletos adornados foram postos em tronos ou amarrados em posições de bênção ou oração, curiosamente dando a origem a proto-divindades que jamais existiram, e para as quais foi necessário inventar uma história terrena &.

No lado Protestante, a repulsa aos sinais mundanos do sagrado sofreu um forte revés com os movimentos de Avivamento na Inglaterra, nos EUA e mais recentemente no Brasil. Os templos Protestantes, embora também sagrados, são muito mais "oficiosos" que os Católicos: não há movimentação ali fora dos cultos, nem há pinturas ou esculturas que lembram o sagrado. Às vezes, a arquitetura do prédio é menos única do que a de uma loja de eletrodomésticos. Isso, claro, devota todos os atributos sobrenaturais ao momento de celebração, presidido pelo pastor.

Sem muito raciocinar, podemos supor que tal pessoa desfruta de uma santidade, ou proximidade de Deus, excepcionais, que precisa compensar a quase ausência de outras conexões com o sagrado. Tal condição lhes é exigida da Igreja enquanto instituição, e também praticada pelos fiéis ao pedirem para o pastor (assim como também ao padre) bênçãos especiais, orações de intercessão, etc. Em casos mais extravagantes, dentro do Protestantismo Neopentecostal, temos líderes religiosos sagrados per se, operadores de milagres em sucessão no centro de imensos auditórios, sendo transmitidos todo dia a todo o globo pela televisão%.

REMEXENDO A CAIXA

As figuras do Batismo, Sacerdote e Espaço Sagrado são orientadores poderosos de como a sociedade se atrela ao sagrado. O primeiro como reconhecimento social e via de acesso aos espaços e rituais, o segundo como mediador entre Deus e os homens, o terceiro como demonstrador social do poder religioso.

No Cristianismo, o Batismo nos revela divisões internas e baixa aceitação de uma comunidade pela outra, apesar do grande fluxo de pessoas entre elas. Jesus, embora tenha sido batizado por João antes de iniciar seu ministério, não dedicou (segundo os Evangelhos) nenhuma linha de seu tempo a esse sacramento. Paulo, segundo ele mesmo, pouco fez também. Ao que parece, Ele não favoreceu uma quebra quanto ao Judaísmo, mas insistiu na ideia de uma reforma ou transição gradual, que só ocorreu pelo arrebatamento de muitos Judeus durante a expansão Cristã.

Os sacerdotes revelam uma estruturação vertical da Igreja, coisa que Jesus, como discidente do Sistema, jamais teria. Segundo João Evangelista, em sua última reunião com os discípulos, Jesus teria dado uma lição sobre humildade ao lavar os pés de Pedro.

Embora o sacerdote tenha mantido, e talvez muito mais em alguns grupos do que em outros, a função de intercessor e voz de Deus, hoje ele se enquadra como "funcionário" de uma organização sagrada, que por sua vez se vincula ao poder político. Essa estrutura torna muito difícil que um sacerdote atual desafie governos, mesmo por comando divino ou em defesa das igualdades e pelo amor que Jesus pregava (ver Cristianismo da pobreza). Na verdade, um critério dentro das igrejas para avaliar sua importância sempre foi a medição mais monetária possível de quanto cada comunidade arrecada.

Os espaços religiosos, por fim, descaradamente refletem o poderio econômico da Igreja, além de serem territórios de exclusão e afirmação de poder. Não há como equiparar isso com a preferência de Jesus pelas pessoas com quem mantinha intimidade: nem mesmo os Fariseus questionadores ou Romanos mal vistos eram excluídos dos círculos onde Ele expunha seus ensinos. Ao se juntar a "publicamos e pecadores", Jesus acabava por ceifar o orgulho separatista daqueles que eram Seus. Mais na Igreja Protestante do que noutras vertentes (hoje), os grupos religiosos invertem o mandamento de cada superior servir ao seu inferior, o que afasta a religião da vida cotidiana, colocando o sagrado sob comando desse ou daquele grupo.

Quase 2000 anos de história fizeram a Igreja assumir uma postura pouco ou nada compatível com os ensinamentos de Jesus, ao ponto de vermos intervenções em políticas (e não em favor dos pobres que herdarão o Reino dos Céus), manipulações financeiras em larga escala e até exaltação de governos temíveis. Seria difícil pensar em como a Igreja moderna poderia retornar aos ideais sobre os quais foi construída (pensando que essa fosse uma decisão institucional), sem que isso a fizesse, novamente, uma instituição proscrita. Ouso suspeitar que os fiéis a quem Jesus pregava o amor ao próximo, e que por fim bradaram "Crucifica-o!", também não acolheriam essa mudança.

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² Atos 2 se refere a um evento miraculoso de falar e ser compreendido em várias línguas, assim como realizar profecias. Neste evento, os apóstolos falaram em diversas línguas porque tinham a seu redor uma platéia que falava grego, latim, aramaico, árabe, etc. Recentemente, pronunciar palavras incompreensíveis tem sido entendido como uma réplica desse evento.

³ O gráfico abaixo mostra o nº de papas que morreram em cada século e quantos deles foram aclamados santos, ou divinos, iniciando-se por Simão Pedro, que andou com Jesus.


A imensa maioria dos papas canonizados teve reinados extremamente curtos, de 1 ou 2 anos apenas. Do gráfico, fica claro que a “romanização” da Igreja pelo imperador Constantino I foi importante nesse processo de produzir papas sagrados e, até a queda de Roma Ocidental (aprox. ano 500 d.C.), quase todos os papas mortos foram aclamados como seres celestiais. Após isso, essa ascensão de autoridades religiosas aos Céus entrou em lento declínio, até a época das Cruzadas. Destacam-se o surgimento do Islã, a 4ª Cruzada e a Contra-reforma. O Islã, como sistema de governo baseado no Islamismo, iniciou-se em Meca/Arábia Saudita com Maomé (571-632 d.C.) e logo expandiu-se com grandes conquistas militares a partir do Oriente Médio. A 4ª Cruzada foi caracterizada como um retorno dos exércitos Cristãos que foram dos impérios Europeus para o Oriente Médio e, na volta, saquearam Constantinopla, centro medieval do Cristianismo. A Contra-reforma foi um movimento lançado pela Igreja Católica logo após a descoberta das Américas e a Reforma Protestante. Nesse movimento, a Igreja empenhou a conquista de territórios na América e os tesouros assim conseguidos para fortalecer os reinos Europeus que mantivessem sua lealdade ao papa.


* Sobre o extermínio indígena na América Latina, a Igreja teve o papel horrível de estimular e abençoar os conquistadores Espanhóis, pelo simples motivo que a Espanha era fiel a Roma mesmo durante os movimentos da Reforma Protestante. Em troca dessa fidelidade, a Igreja santificava as conquistas Espanholas e Portuguesas na América e África, sem se importar com os habitantes desses locais. Na verdade, pela lógica vigente no séc. 16, o indígena precisava ser catequizado, conhecer a Cristo. Convertido, ele deveria servir como escravo dos conquistadores, que arrendaram a terra indígena da Igreja, que a recebeu como direito a partir de Pedro, quando Jesus o apontou como cabeça da Igreja. O indígena não convertido era um pagão e, portanto, inimigo de Cristo, que deveria ser morto.

Quando os Espanhóis chegaram no Peru, encontraram uma civilização Inca dividida em impérios rivais. Eles se aproveitaram dessa divisão intervindo nas guerras entre os Incas: ajudava-se um rei a derrotar o outro, depois matava-se o primeiro. Esse foi o caso histórico do rei Atahualpa (1502-1533), governante de Quito que lutou contra seu próprio irmão, rei de Cuzco. Atahualpa derrotou o irmão em batalha e seguiu para Cusco com 80 mil soldados. No caminho, passariam por Cajamarca, onde estavam sediados os Espanhóis. Francisco Pizarro, líder dos conquistadores, negociou um tratado de paz com Atahualpa, que deveria ser celebrado naquela cidade.

Atahualpa levou poucos homens para dentro da cidade, sendo recebido pelo padre Vicente Valverde, que lhe ofereceu um livro de orações em latim e exigiu sua conversão ao Cristianismo, bem como de todo o exército. Atahualpa era analfabeto, quanto mais em latim, e talvez nem soubesse o que era um livro. Ao recusar-se, o rei inca ainda atirou o livro ao chão, o que constituiu motivo para ser declarado maldito e seus homens imediatamente alvejados pelos espanhóis. O rei foi aprisionado e, ao longo de 1 ano, foram exigidos de seus homens diversos resgates em ouro por ele. Parte desse ouro era devido, inclusive, à Igreja.

Atahualpa foi condenado à morte e acabou aceitando ser batizado. Porém, após o batismo, ele foi sumariamente enforcado por Pizarro. O batismo também significava, para os Espanhóis e religiosos, que Atahualpa dava seu reino à Igreja. Seu irmão Túpac Hualpa foi chamado a substituí-lo no trono de Cusco, mas foi envenenado logo depois. Em 1535, Valverde foi nomeado Bispo e Inquisidor de Cuzco. Acabou expulso em 1541 quando as tropas de Pizarro foram dizimadas por outro líder conquistador e, refugiando-se na ilha Puná, foi morto pelos nativos.

** Até onde os Evangelhos permitem inferir sobre Jesus, ele não desafiava abertamente o Judaísmo. Suas pregações acontecerem, várias vezes, em sinagogas e no Templo. O mesmo se deu com algumas das primeiras reuniões Cristãs. Por outro lado, era nítido que Jesus desafiava os mais nobres dos Fariseus (como seu primo João Batista fizera ao rei Herodes Antipas) e quebrava normativas sagradas dos Judeus. O complô do Sinédrio para prender e condenar Jesus - um julgamento no meio da noite, com testemunhas falsas, sem uma acusação sólida - desviando das regras Judaicas, também mostra que Ele não estava separado dos direitos atribuídos aos Judeus.

*** No texto Crônica de uma morte anunciada, o autor Paulo Brabo lança uma interessante pergunta. Deus estabeleceu, no Velho Testamento, uma tenda onde seria adorado no local que Ele desejasse. Os homens queriam um Templo, local fixo e solene. Mas Jesus, muito tempo depois, também não se deteve para ensinar ou orar em um único local, nem mesmo no Templo. Será que o objetivo de Deus é mesmo uma igreja fixa, alta e monumental?

& Um dos mais trágicos e bizarros exemplos desses santos fabricados talvez seja D. Sebastião I, rei de Portugal entre 1554 e 1578. Tratava-se, obviamente, de um rei verdadeiro, mas ele desapareceu durante uma batalha no Marrocos, contra o sultão Abd Al-Malik I. Nos anos seguintes, cresceu em Portugal a lenda de que o rei havia tornado-se um espírito celestial ou algo semelhante, com toda uma estrutura de culto ao redor dele. Em especial, os escravos marroquinos levados para o Brasil nessa época implantaram aqui o culto a D. Sebastião. Em 1816, houve a descrição de cultos a D. Sebastião no sudeste do país. Em Pernambuco, Silvestre José dos Santos, conhecido como “Mestre Quiou”, liderou um movimento sebastianista na Serra do rodeador, que terminou com um massacre por tropas do governo imperial. Em 1836, João Antônio dos Santos e seu irmão João Ferreira dos Santos lideraram outro grupo sebastianista, em Pedra Bonita, que tentou ressuscitar D. Sebastião com o sacrifício de dezenas de crianças. O ataque das forças imperiais também massacrou os adultos que pertenciam ao culto. Entre 1893 e 1897, o Arraial de Canudos também manteve o culto de D. Sebastião, liderado por Antônio Conselheiro. Tanto a formação quanto a destruição de Canudos são detalhadas no romance “Os Sertões”, de Euclides da cunha.

% Alguns nomes famosos (pelo aparecimento espetacular na mídia e pelas fortunas também) são Benny Hinn, Kerney Thomas, Robert Tilton, Temitope Balogun (T.B.) Joshua, Peter Popoff, Todd Bentley, Joel Osteen, Josh Duggar, etc.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Santo Espírito

Quadro de 1450 em Budapest (Hungria) denotando a Divina Trindade

Um filósofo tinha um filho que muito amava e ao qual ensinara por muito tempo a filosofia. Quando seu filho se tornou um bom sábio na ciência, seu pai lhe mostrou um livro que havia escrito e perguntou-lhe se sabia que ele era homem por ter escrito o livro ou por ser seu pai. O filho respondeu que pelo livro sabia que ele era homem, porque ao homem pertence o ato de escrever, mas sobretudo sabia que seu pai era homem por ter engendrado um outro homem.

Depois desse exemplo, o Eremita disse a Félix que Deus é aquele ao qual pertence fazer uma obra que nenhum outro pode fazer, e tal obra é aquela que Deus faz nas criaturas. Mas aquilo pelo qual se tem maior conhecimento do que Deus é em si mesmo é saber como Deus mesmo engendra Deus, isto é, que o Pai engendra o Filho, e do Pai e do Filho procede o Espírito Santo, e todos os três são um único Deus.

(Ramon Lull, Félix o El Libre de meravelles, 1288)

O Espírito Santo é anunciado pela 1ª vez pelo anjo Gabriel, quando faz sua famosa exposição a Maria em Nazaré: "O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra. Assim, aquele que há de nascer será chamado santo, Filho de Deus.” (Lucas 1.35). 

Depois de vários anos não detalhados, João Batista anuncia a seu povo que Jesus traria a eles o Espírito Santo: "Eu os batizo com água. Mas virá alguém mais poderoso do que eu, tanto que não sou digno nem de curvar-me e desamarrar as correias das suas sandálias. Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo. Ele traz a pá em sua mão, a fim de limpar sua eira e juntar o trigo em seu celeiro; mas queimará a palha com fogo que nunca se apaga" (Lucas 3:16-17). Quase simultaneamente, Jesus quem anunciava a vinda do Espírito Santo após Ele: "Quando vier o Conselheiro, que eu enviarei a vocês da parte do Pai, o Espírito da verdade que provém do Pai, ele testemunhará a meu respeito. E vocês também testemunharão, pois estão comigo desde o princípio" (João 15.26-27).

Em suas cartas, Lucas (ator de Atos dos Apóstolos) e Paulo confirmam essa presença metafísica que clamam ser a “alma” do Cristianismo recém iniciado:

"Vocês receberam o Espírito Santo quando creram?" Eles responderam: "Não, nem sequer ouvimos que existe o Espírito Santo". … Quando Paulo lhes impôs as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e começaram a falar em línguas e a profetizar. Eram ao todo uns doze homens. (Atos 19.2-7).

Depois, Paulo discorre muito mais sobre essa entidade que ele mesmo tinha dificuldade em definir: “Pelo Espírito, a um é dada a palavra de sabedoria; a outro, a palavra de conhecimento, pelo mesmo Espírito; a outro, fé, pelo mesmo Espírito; a outro, dons de cura, pelo único Espírito; a outro, poder para operar milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a outro, variedade de línguas; e ainda a outro, interpretação de línguas. Todas essas coisas, porém, são realizadas pelo mesmo e único Espírito, e ele as distribui individualmente, a cada um, conforme quer. (1 Coríntios 12.8-11). “Ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’, a não ser pelo Espírito Santo” (1 Coríntios 12:3). “Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos?” (1 Coríntios 6.19). E o Espírito era concedido por crer em Jesus!

João Batista, último dos profetas e pregador do arrependimento como sinal público de vinculação a Deus, atribui ao Espírito Santo o reconhecimento da figura de Jesus conforme avisado pelo próprio Pai:

Eu não o teria reconhecido, se Aquele que me enviou para batizar com água não me tivesse dito: ‘Aquele sobre quem você vir o Espírito descer [do céu como pomba] e permanecer, esse é o que batiza com o Espírito Santo’. Eu vi e testifico que este é o Filho de Deus. (João 1.33-34)

É interessante notar que Jesus anuncia o Espírito Santo como vindo após Ele para dar testemunho Dele mesmo, e Paulo inclui nesse testemunho (que ele reafirma) a atribuição de dons assombrosos aos homens. Embora sejamos tentados a desvincular a figura de Jesus Salvador do Jesus Milagreiro, é inegável que Jesus Homem atraía atenções pela volta do lago de Genesaré tanto pelos milagres quanto pelos discursos que fazia. E Ele não chegou a ser afastado das sinagogas por causa disso, tão aceitáveis eram ao espírito judeu-grego-romano uma coisa e outra. A re-interpretação da lei mosaica que Jesus fazia com seus tantos “Eu entretanto lhes digo ...” não era estranha ao ensino grego, e provavelmente maravilhava muitos judeus, samaritanos, etc. E dado o descaso romano com os pedidos do Sinédrio, aparentemente era apenas o clero Fariseu e Saduceu quem se incomodava demais com Jesus.

Lembremos que Jesus foi concebido pela manifestação do Espírito Santo a Maria, e foi apontado pelo Próprio no batismo de água que João fazia. Nas falas de Jesus, o que o Espírito Santo vem fazer é sobretudo anunciar Ele aos homens após Sua partida. Em algumas exposições que somente o Discípulo Amado chegou a registrar, diversas vezes Jesus também une Seu propósito ao do Deus Pai e ao Espírito Santo, costurando os 3 em uma só figura:

Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. Se vocês realmente me conhecessem, conheceriam também o meu Pai. Já agora vocês O conhecem e O têm visto. … Aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas, porque eu estou indo para o Pai. (João 14.6-12)

Quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso vos disse que há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar. (João 16.13-15)

Embora a metafísica grega (e portanto a Medieval, considerando Aristóteles como sua grande referência - e Lull não estava isento dela) trate insistentemente de definir uma hierarquia celestial, onde Deus Pai, Jesus e o Espírito Santo não deixam de ser sondados, a Bíblia não faz qualquer esforço nesse sentido, nem Jesus parece preocupado com tal assunto. Lull (ou Lúlio, na tradução portuguesa) e Paulo parecem duelar com esse conceito, que entretanto Paulo esforçou-se por apresentar aos gregos e Lull aos sarracenos. Considerando uma interpretação livre das falas de Jesus, talvez Lull poderia se referir assim aos seus ouvidores:

É graças ao Espírito Santo que se crê em Jesus e se pode obedecer aos seus ensinamentos, sendo essa a única via até o Pai, que somente Jesus conhece e pode mostrar.

Para Lull, somente Deus podia gerar a Deus, e assim a natureza de Deus se mostrava em Jesus e no Espírito Santo.

Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém sabe quem é o Filho, a não ser o Pai; e ninguém sabe quem é o Pai, a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar. (Lucas 10.22)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O amanhecer dos mortos vivos - ESTUDO BÍBLICO

quadro de Juan de Flandes (1460-1519)

O título se parece muito com alguns filmes de terror trash dos anos 80, mas é bem real.

E Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito. E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras; e abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados; e, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos.

E o centurião e os que com ele guardavam a Jesus, vendo o terremoto, e as coisas que haviam sucedido, tiveram grande temor, e disseram: Verdadeiramente este era Filho de Deus.
” (Mt 27.50-54)

O evento foi registrado apenas por Mateus Levi, antigo cobrador de impostos. Mas o que isso significava? Quem foram os ressuscitados? O que se deu deles?

O QUE ELES ERAM

No tempo de Jesus, a liderança dos judeus estava dividida entre os Fariseus e os Saduceus. Os Fariseus acreditavam no merecimento da Glória por suas práticas de purificação, enquanto os Saduceus simplesmente não acreditavam na ressurreição dos que haviam morrido. Segundo a crença judaica, a morte significava a imersão permanente das almas num “hades” (mundo sem sensações, penumbroso, etc) chamado Sh’eol. Mas Daniel já havia escrito que, no final dos tempos, “muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno” (Dn 12.2). Finalmente, 600 anos depois dele, Paulo descreveu o fim dos tempos dizendo que “num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados” (1Co 15.52). Incorruptíveis significa semelhantes ao corpo que Cristo assumiu ao elevar-se ao céu, com um corpo compatível com a glória de Deus. Isso poderia se aplicar aos mortos que levantaram quando Jesus expirou, não fosse um detalhe: não era o final dos tempos.

Paulo prosseguiu sua descrição ainda referindo uma ordem para as ressurreições: “Cada um, porém, por sua própria ordem: Cristo, as primícias; depois, os que são de Cristo, na sua vinda” (1Co 15.23). Ou seja, Cristo ressuscitaria primeiro em forma incorruptível. Quando os mortos voltaram à vida, segundo Mateus, Ele acabara de morrer. Não poderiam estar em formas celestiais... o que se soma ao fato de que não foram ao céu após sua ressurreição, mas vaguearam pela terra até Jerusalém.

Alguns mortos, como o filho da sunamita (2Rs 4.18-37), a filha de Jairo (Mt 9.23-26), o filho da viúva de Naim (Lc 7.11-17) e Lázaro (Jo 11.14-44), já haviam sido ressuscitados antes da morte e ressurreição de Jesus. Estes, porém, não foram glorificados e nem receberam o dom da imortalidade ao serem ressuscitados. Dessa forma, esperamos que a ressurreição dos santos a que Mateus se refere seja semelhante à de Lázaro, a filha do centurião, etc, uma ressurreição para o corpo carnal e humano, não ainda aquela prometida para o Apocalipse.

Os líderes judeus haviam subornado os guardas para negarem a ressurreição de Jesus (Mt 28.11-15), mas esses santos ressuscitados finalmente “entraram” em Jerusalém “e apareceram a muitos” (Mt 27.53) como testemunhas autênticas da ressurreição de Cristo e do Seu poder sobre a morte (Ap 1.18).

PRÁTICAS FUNERAIS NA ÉPOCA DO 2º TEMPLO

Um judeu que morresse em Jerusalém durante o período do Segundo Templo era geralmente enterrado antes do anoitecer, ou pelo menos dentro de 24 horas após a morte. O corpo era levado para o túmulo da família cortado na rocha, onde era lavado e embrulhado em mortalhas e colocado em uma cavidade chamada kok (plural kokim) dentro do túmulo, ou em um banco no túmulo chamado arcosolia. O corpo era deixado para se decompor.

A família retornava para casa e passava um período de sete dias de luto intenso, chamado shiva. Eles iriam virar a cama da pessoa morta, esmagar quaisquer vasos de cerâmica na casa (porque eles haviam sido ritualmente profanados pelo morto), e os homens não se barbeariam nessa semana. A família e os amigos visitatiam a família em luto. Após essa semana, a família passava por um período menos intenso de luto de 30 dias, chamado sholshim. No aniversário de um ano da morte do indivíduo, a família voltava para a sepultura e reuniu os ossos, ungiao-os com azeite e vinho, e então os colocava em uma caixa de ossos ou ossuário, que ficava em um canto do túmulo.

Mateus usa uma combinação curiosa de palavras: “... abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados … saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa”. Quando se levantaram? Quando apareceram em Jerusalém? Ao que parece, a ressurreição dos justos deu-se junto com o expirar de Jesus, mas seu aparecimento só após a ressurreição Dele, no 3º dia. Isso deve indicar que as tumbas ficavam longe dos muros da cidade.

De fato, as tumbas da época do 2º Templo ficavam fora dos muros de Jerusalém. Mais de 1000 tumbas do período do Segundo Templo já foram (atualmente) encontradas na área, distribuídas em 3 anéis, ou círculos, em torno da cidade. O círculo interior consistia de túmulos no Vale do Hinom (a oeste e sul da cidade) e do Vale do Cedron e Monte das Oliveiras (a leste da cidade). O anel do meio incluído o Vale de Refaim e do lado de trás do Monte das Oliveiras. O anel externo consistia de túmulos que eram 4 ou 5 milhas de distância de Jerusalém, e possivelmente foi a partir dessas tumbas que os santos ressuscitados saíram.

UMA MANHÃ POSSIVELMENTE INESQUECÍVEL

Quando Cristo ressuscitou dos mortos ele tornou-se as primícias dos que dormem (1Co 15.20-23). Vamos usar um pouco a imaginação: Jesus foi crucificado na sexta-feira, sábado foi o Shabat, dia de descanso. A maioria das pessoas em Jerusalém provavelmente ficou em casa naquele dia. No primeiro dia da semana, domingo de manhã, um grupo de mulheres saiu do Portão Gennath (Porta dos Jardins) para o túmulo de José de Arimatéia, a fim de ungir o corpo de Jesus. Outras pessoas deixaram a cidade de manhã cedo também: elas seguiam a tradição dos saduceus sobre o corte da oferta de cevada para o Templo. Iam em direção aos campos de cevada no Vale de Refaim, a oeste de Jerusalém (cf. Is 17.5). Você pode imaginá-los deixando as portas da cidade com foice na mão e cestas em seus ombros, em atitude festiva... Enquanto caminhavam para os campos de cevada, viram algumas pessoas se aproximando deles, indo em direção à cidade. Vários devem ter encontrado os próprios parentes sepultados havia alguns dias, e provavelmente usando como roupas as mortalhas!

PORQUE MATEUS LEVI SE DEU A ESSE TRABALHO

Agora, estas pessoas saíram de seus túmulos e andaram atá a cidade. Talvez alguns tivessem sido enterrados havia pouco tempo, como as demais ressurreições que Eliseu e Jesus realizaram. Ao entrarem na cidade, certamente encontraram seus familiares que devem ter se assombrado muito com o ocorrido, mas não o suficiente para serem ouvidos pelas autoridades … ou para que os Saduceus e Fariseus se preocupassem em pagar pessoas para testemunhar de forma contrária. Por mais surpreendente que o reaparecimento dos familiares mortos possa ter sido, o caso parece ter sido “abafado” o bastante para que apenas Mateus Levi tenha falado sobre isso.

Ainda assim, apenas Mateus registrou esse fato, e em poucas linhas. Mateus é o evangelho escrito para os judeus. O tema de Mateus é que Jesus é o verdadeiro Senhor de Israel. Ele faz o que Israel deixou de fazer. Sua ressurreição é o que faz a ressurreição final previsto no Antigo Testamento possível (a ressurreição é prevista em Dn 12.2 e Ez 37.13). Mateus mencionar estes santos sendo levantados confirma seu principal ponto que Jesus realizou o que Israel não poderia. A ressurreição é garantida de que a barreira entre Deus e o homem foi demolida, quando o véu do templo foi rasgado. Então, Mateus fez questão de menncionar isso por causa de seu significado teológico para sua audiência judaica, em especial os Saduceus.

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