terça-feira, 24 de junho de 2014

Santo Espírito

Quadro de 1450 em Budapest (Hungria) denotando a Divina Trindade

Um filósofo tinha um filho que muito amava e ao qual ensinara por muito tempo a filosofia. Quando seu filho se tornou um bom sábio na ciência, seu pai lhe mostrou um livro que havia escrito e perguntou-lhe se sabia que ele era homem por ter escrito o livro ou por ser seu pai. O filho respondeu que pelo livro sabia que ele era homem, porque ao homem pertence o ato de escrever, mas sobretudo sabia que seu pai era homem por ter engendrado um outro homem.

Depois desse exemplo, o Eremita disse a Félix que Deus é aquele ao qual pertence fazer uma obra que nenhum outro pode fazer, e tal obra é aquela que Deus faz nas criaturas. Mas aquilo pelo qual se tem maior conhecimento do que Deus é em si mesmo é saber como Deus mesmo engendra Deus, isto é, que o Pai engendra o Filho, e do Pai e do Filho procede o Espírito Santo, e todos os três são um único Deus.

(Ramon Lull, Félix o El Libre de meravelles, 1288)

O Espírito Santo é anunciado pela 1ª vez pelo anjo Gabriel, quando faz sua famosa exposição a Maria em Nazaré: "O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra. Assim, aquele que há de nascer será chamado santo, Filho de Deus.” (Lucas 1.35). 

Depois de vários anos não detalhados, João Batista anuncia a seu povo que Jesus traria a eles o Espírito Santo: "Eu os batizo com água. Mas virá alguém mais poderoso do que eu, tanto que não sou digno nem de curvar-me e desamarrar as correias das suas sandálias. Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo. Ele traz a pá em sua mão, a fim de limpar sua eira e juntar o trigo em seu celeiro; mas queimará a palha com fogo que nunca se apaga" (Lucas 3:16-17). Quase simultaneamente, Jesus quem anunciava a vinda do Espírito Santo após Ele: "Quando vier o Conselheiro, que eu enviarei a vocês da parte do Pai, o Espírito da verdade que provém do Pai, ele testemunhará a meu respeito. E vocês também testemunharão, pois estão comigo desde o princípio" (João 15.26-27).

Em suas cartas, Lucas (ator de Atos dos Apóstolos) e Paulo confirmam essa presença metafísica que clamam ser a “alma” do Cristianismo recém iniciado:

"Vocês receberam o Espírito Santo quando creram?" Eles responderam: "Não, nem sequer ouvimos que existe o Espírito Santo". … Quando Paulo lhes impôs as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e começaram a falar em línguas e a profetizar. Eram ao todo uns doze homens. (Atos 19.2-7).

Depois, Paulo discorre muito mais sobre essa entidade que ele mesmo tinha dificuldade em definir: “Pelo Espírito, a um é dada a palavra de sabedoria; a outro, a palavra de conhecimento, pelo mesmo Espírito; a outro, fé, pelo mesmo Espírito; a outro, dons de cura, pelo único Espírito; a outro, poder para operar milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a outro, variedade de línguas; e ainda a outro, interpretação de línguas. Todas essas coisas, porém, são realizadas pelo mesmo e único Espírito, e ele as distribui individualmente, a cada um, conforme quer. (1 Coríntios 12.8-11). “Ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’, a não ser pelo Espírito Santo” (1 Coríntios 12:3). “Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos?” (1 Coríntios 6.19). E o Espírito era concedido por crer em Jesus!

João Batista, último dos profetas e pregador do arrependimento como sinal público de vinculação a Deus, atribui ao Espírito Santo o reconhecimento da figura de Jesus conforme avisado pelo próprio Pai:

Eu não o teria reconhecido, se Aquele que me enviou para batizar com água não me tivesse dito: ‘Aquele sobre quem você vir o Espírito descer [do céu como pomba] e permanecer, esse é o que batiza com o Espírito Santo’. Eu vi e testifico que este é o Filho de Deus. (João 1.33-34)

É interessante notar que Jesus anuncia o Espírito Santo como vindo após Ele para dar testemunho Dele mesmo, e Paulo inclui nesse testemunho (que ele reafirma) a atribuição de dons assombrosos aos homens. Embora sejamos tentados a desvincular a figura de Jesus Salvador do Jesus Milagreiro, é inegável que Jesus Homem atraía atenções pela volta do lago de Genesaré tanto pelos milagres quanto pelos discursos que fazia. E Ele não chegou a ser afastado das sinagogas por causa disso, tão aceitáveis eram ao espírito judeu-grego-romano uma coisa e outra. A re-interpretação da lei mosaica que Jesus fazia com seus tantos “Eu entretanto lhes digo ...” não era estranha ao ensino grego, e provavelmente maravilhava muitos judeus, samaritanos, etc. E dado o descaso romano com os pedidos do Sinédrio, aparentemente era apenas o clero Fariseu e Saduceu quem se incomodava demais com Jesus.

Lembremos que Jesus foi concebido pela manifestação do Espírito Santo a Maria, e foi apontado pelo Próprio no batismo de água que João fazia. Nas falas de Jesus, o que o Espírito Santo vem fazer é sobretudo anunciar Ele aos homens após Sua partida. Em algumas exposições que somente o Discípulo Amado chegou a registrar, diversas vezes Jesus também une Seu propósito ao do Deus Pai e ao Espírito Santo, costurando os 3 em uma só figura:

Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. Se vocês realmente me conhecessem, conheceriam também o meu Pai. Já agora vocês O conhecem e O têm visto. … Aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas, porque eu estou indo para o Pai. (João 14.6-12)

Quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso vos disse que há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar. (João 16.13-15)

Embora a metafísica grega (e portanto a Medieval, considerando Aristóteles como sua grande referência - e Lull não estava isento dela) trate insistentemente de definir uma hierarquia celestial, onde Deus Pai, Jesus e o Espírito Santo não deixam de ser sondados, a Bíblia não faz qualquer esforço nesse sentido, nem Jesus parece preocupado com tal assunto. Lull (ou Lúlio, na tradução portuguesa) e Paulo parecem duelar com esse conceito, que entretanto Paulo esforçou-se por apresentar aos gregos e Lull aos sarracenos. Considerando uma interpretação livre das falas de Jesus, talvez Lull poderia se referir assim aos seus ouvidores:

É graças ao Espírito Santo que se crê em Jesus e se pode obedecer aos seus ensinamentos, sendo essa a única via até o Pai, que somente Jesus conhece e pode mostrar.

Para Lull, somente Deus podia gerar a Deus, e assim a natureza de Deus se mostrava em Jesus e no Espírito Santo.

Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém sabe quem é o Filho, a não ser o Pai; e ninguém sabe quem é o Pai, a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar. (Lucas 10.22)

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