quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A Cronologia dos Evangelhos

“Poor man’s bible”, ou “Bíblia do homem pobre”. Esse era o nome dado genericamente a trabalhos artísticos retratando as cenas dos Evangelhos. Tais ilustrações nas igrejas foram, por muito tempo, a principal referência sobre a vida de Jesus. Esse é um vitral do séc. 13, da catedral de Canterbury, na Inglaterra, retratando o famoso casamento em Caná da Galiléia. Estão representados, com auréolas, José, Maria e Jesus, enquanto um serviçal coloca água nos potes.



Escrever sobre a cronologia dos Evangelhos é uma daquelas coisas que se tem de tornar muito cuidado para não fazer um assunto chatíssimo. Afinal, nem estamos contando uma estória. É a estória de como a estória foi contada.


O LUGAR DE JESUS


O primeiro ponto é entender o lugar onde Jesus vivia. Quase tudo ali se relacionava com o rio Jordão (que era sagrado). Esse rio nasce bem para o norte de Israel, nas montanhas de Golan, no Líbano. Ele então entra por uma grande fratura tectônica no solo, profunda e literalmente em linha reta, descendo até o grande lago de Genesaré. Essa porção de água doce também foi chamada lago ou mar de Tiberíades, ou da Galiléia. Muitas cidades se desenvolveram ao redor do lago, vivendo da pesca ou como entrepostos de caravanas do Egito, Líbano e Pérsia. O Jordão continua na margem sul do lago, descendo em linha reta por muitos quilômetros ainda, até Jerusalém. Mais abaixo da capital ainda ficam as terras férteis perto do Mar Morto e, finalmente, o grande mar salgado. Essas foram, no passado distante, as terras de Sodoma.


A Galiléia, pátria de Jesus, ficava ao poente do lago de Genesaré. Era uma terra de colinas arredondadas onde perambulavam pastores e mercadores. Mais ao sul, na margem do Jordão, ficava Samaria, uma região de florestas e montanhas altas. Mais ainda ao sul ficava Judá, outra terra de colinas, porém mais árida. Judá é ainda famosa por suas uvas e azeitonas. Os Judeus não gostavam dos Galileus e não recebiam bem os Samaritanos.


Do outro lado do Jordão as terras são mais áridas, desembocando em Damasco, fronteira do deserto da Síria. Ali ficavam cidades afeitas aos Romanos, politeístas como eles: Gadara, Gerasa, Pela, Philadelphia, etc. Perto do lago, ao nascente, ficava a planície de Bashan, rica em incenso, tâmaras e por onde chegavam as caravanas de camelos da Síria e Pérsia. Ao sul, erguiam-se as montanhas de Gileade, com seus pastores de cabras. Os povos dos dois lados do Jordão também não se gostavam.


Pelo que sabemos, Jesus nunca saiu dessa região.


AS FONTES


O segundo ponto é que os Evangelhos são 4 livros diferentes, escritos por pessoas, comunidades, locais e épocas diferentes. Eles não nasceram juntos! O indício mais antigo de encontro dessas obras uma com a outra foi a composição do Diatessaron, por volta de 170 d.C., na Síria. Esse livro era uma fusão dos 4 originais, já tentando "aparar as arestas" ou divergências entre eles. Não pretendo aqui comparar, nem reuni-los, a não ser no sentido temporal.


Ao fazer isso, já levamos em conta que cada um dos quatro narra parte da vida (e morte) de Jesus, de forma linear, como seriam biografias. Mas os Evangelhos não são biografias! Jesus já era morto havia muito tempo quando foram escritos. Mal sabemos dos seus autores que, nenhum deles, foi testemunha do que escreveu. Além disso, todos foram produzidos em comunidades religiosas, juntando dados biográficos de Jesus com ensinamentos morais, sabedorias e até política, tudo sob o mesmo nome de "tradição".


Não apenas quatro foram produzidos, mas o Diatessaron já nos alertava serem os primeiros. Marcos, o mais antigo e base para os outros, foi redigido 30-40 anos após Jesus, por um bispo de Alexandria, possivelmente ex-companheiro de Pedro. Como diria Leonardo Boff, é impossível separar Jesus (o homem) do Cristo (figura lendária).


Para mostrar como isso funciona, vou buscar justamente o concorrente Americano¹ de Jesus, chamado Papai Noel. Se você fosse fazer uma "biografia" do Noel, o que escreveria? Relatos sobre ele estão na campanha publicitária da Coca Cola, nos anos 1930, ilustrada por Haddon Sundblom. Também temos o conto/poema de Natal escrito por Clement Clark Moore em 1822 ("A Visit From St. Nicholas", ou "Uma Visita de São Nicolau"), em que Sundblom se baseou. Mas alguém falaria sobre o ícone da igreja Bizantina São Nicolau no séc. 15? Ou o santo padroeiro dos marinheiros em Myra/Grécia no final do séc. 11? Ou a mistura de Odin/Santa Claus que voava sobre os telhados da Germânia (poderes de Odin) e ajudava os mais pobres (poderes de Nikolaos) nos sécs. 7-9? Lembrariam do bispo Nikolaos Patareus, famoso na Grécia dos séc. 3-4? Como Jesus, ele foi irremediavelmente fundido com sua lenda; só não contou com a Igreja para carimbar essa documentação.


Na prática, tratar com quatro bio-lendas significa que muitas coisas constando de um texto não aparecem nos outros, ou a sequência deles é totalmente distinta. Isso é exatamente o que acontece com os Evangelhos.


INVENTANDO UM MÉTODO


Primeiro separei as obras em sequências de ações de Jesus, que pudessem encontrar paralelo de uma na outra. Para isso, usei um roteiro já pronto baseado em Edward Robinson e Cox & Easley, nas referências. Tentei ser mais específico quanto a nomes e na parte da Ressurreição.


Depois, descobri que não há um modo linear de colocar os eventos descritos nos Evangelhos. Isto é, a sequência dos eventos em comum varia de um livro para outro, de modo que aceitar um inválida outros. Esse tipo de efeito ocorre, geralmente, quando um grande manuscrito é reescrito de memória ou tem páginas reordenadas, por falta da indicação de sequência (abençoado seja quem começou a numerar os cantos das páginas). No tempo em que reproduzir um texto significava copiar ele palavra por palavra, entre a redação dos textos (séc. 1) e sua versão mais antiga ainda existente (séc. 10), passaram-se 1000 anos e talvez uma centena de laboriosas recompilações. Sem considerar que talvez Mateus e Lucas já fossem originalmente recompilações de Marcos..


Como a sequência de um ou mais textos seria inevitavelmente prejudicada, optei por priorizar a antiguidade dos mesmos. Em outras palavras, se Marcos e Mateus discordam de uma sequência, Marcos é o correto, por ser mais antigo. Na ordem de prioridade ficaram Marcos, Mateus, Lucas e João. Os eventos que aparecem em todos os 4 Evangelhos ou em todos os Sinóticos foram tomados como marcadores principais para o alinhamento.


Finalmente, fiz a anotação dos locais descritos. Em muitos, não havia indicação alguma (estão marcados com …). Quando houve discordância, foram anotados ambos. Apesar das discordâncias temporais, as de lugar foram raras.


Terminado, mais ou menos metade dos eventos aparecia em um único Evangelho, enquanto a outra metade concordava entre 3 ou 4 deles.


NASCIMENTO DE JESUS


A concordância quanto ao nascimento de Jesus é muito baixa. Marcos e João nada apresentam; Mateus e Lucas se alternam com estórias distintas, concordando somente quanto a Belém. Inevitavelmente, isso sugere uma inserção feita após o texto de Marcos. Havia uma profecia para o Messias cumprir, então não surpreende os evangelistas “criarem” um contexto para isso. Quanto a serem fatos conhecidos para eles, é bem pouco provável, pois não há relatos sobre Jesus entre esse nascimento “profético” e o começo de Sua pregação.


Mateus coloca Jesus homenageado por magos do Oriente seguindo uma estrela, sendo levado ao Egito para refugiar-se de Herodes I, com até um massacre dos inocentes recriando a narrativa de Moisés (deve-se ver que Herodes I era famoso, justamente por assassinar toda a família, da mãe a esposa, filhos e cunhados). Já Lucas coloca um anjo anunciando o milagre a Maria, assim como a pastores de ovelhas. Uma terceira tradição natalina aparece ainda na Sura 19 do Alcorão.


Gal = Galiléia; Jud = Judéia


BATISMO


Não há narrativas canônicas da vida de Jesus antes da Sua consagração por João Batista. Isso nos diz que Ele era desconhecido e - pelo menos nas narrativas - “herdou” a carreira de um profeta anterior. As cenas do Ministério de João Batista, Batismo de Jesus no rio Jordão e Tentação no deserto são altamente repetidas em todos os textos. Temos, então, um material muito sólido para iniciar.


João Batista foi uma figura profética importante na Judéia do séc. 1. Sabemos, inclusive, que Jesus ficou com alguns discípulos de João, sobre o qual se diz que deveria "abrir os caminhos do Senhor". Pregando sobre arrependimento dos pecados, contra a corrupção dos governantes de uma terra invadida, João foi um legítimo profeta. Ele reuniu os pobres numa organização mais horizontal, distinta da benção dos Saduceus e das práticas de purificação dos Fariseus. A Salvação estava ao alcance das pessoas comuns.


Foi a partir desse contato, e até um possível parentesco (não sabemos se verdadeiro) que Jesus se inicia como andarilho e disseminador de idéias sobre um Reino Celestial, que contrastava amargamente com a Judéia dos Romanos.



PRODÍGIOS NA GALILÉIA


Enquanto se tornava conhecido, antes de designar seus 12 escolhidos, Jesus teria feito ensinamentos e sobretudo milagres nas terras pastoris perto de Nazaré. Entre eles estão o casamento onde transformou água em vinho, um exorcismo na Sinagoga, a instrutiva conversa com Nicodemus sobre "nascer de novo" (alguém educado, talvez um juiz ou membro do Sinédrio), a pesca milagrosa no lago de Genesaré, a estória sobre o rico que não tinha a quem deixar sua fortuna, as curas no Sábado (também na Sinagoga).


O cenário mais geral aqui é o convívio comum dos Judeus, as Sinagogas. O que acontecia na Sinagoga era público, tinha várias testemunhas. São estórias que aparecem em Lucas e mais algum livro, ou somente em João. Dessa forma, podemos pensar que fizeram parte da "pesquisa" que Lucas empreendeu para "compor uma história dos acontecimentos que se realizaram entre nós" (Lucas 1.1). As expressões mais comuns associadas aos discursos e prodígios de Jesus são termos vagos como "um lugar", "uma montanha", "uma planície" e "a multidão". Quase vejo o velho Lucas, antigo escrivão de Paulo, visitando as Sinagogas com rolos de pergaminhos sob os braços e perguntando a respeito de Jesus! 


Certamente as diversas comunidades pobres da Galiléia tinham estórias variadas sobre Ele, que foi seu conterrâneo e profeta. Nessas estórias, Mateus e Lucas fazem parecer que Jesus era um novo sujeito de cajado na mão e reunindo seus fiéis para ouvi-Lo falar. Ele chegou mesmo a elaborar Seu próprio código de leis!


Os eventos em azul estão mais adiante, no Evangelho em questão. Os em vermelho estão um pouco atrás, no evangelho a que pertencem.


OS ESCOLHIDOS


Pouco antes de Jesus nomear seus Doze, uma pequena série de acontecimentos foi relatada por Marcos e replicada por Mateus e Lucas. Ao que parece, Jesus havia se estabelecido junto a Pedro, André, Tiago e João em Cafarnaum, cidadezinha na margem noroeste do lago. As referências de local são vagas, mas aparecem "perto do lago", "perto da casa de Simão" e "na Galiléia".


Nessa vila de pescadores, onde fica a "casa de Pedro", hoje um ícone Cristão, Jesus era descrito como curandeiro. Por sua benção foram sarados endemoniados, leprosos, paralíticos, cegos, mudos, doentes em geral. Lá ele também escolheu Seu grupo de confiança: André e Simão Pedro (os filhos de Jonas), João e Tiago Boanerges (os filhos de Zebedeu), Filipe, Judas Iscariotes, Judas Tadeu, Mateus Levi, Natanael, Tiago (o menor), Tomé e Simão o Zelote.


Os eventos em azul estão mais adiante, no Evangelho em questão. Os em vermelho ou laranja estão um pouco atrás, no evangelho a que pertencem.


AS PARÁBOLAS DO REINO


Nas margens do lago, Jesus teria contado parábolas sobre o homem forte que defende sua casa, o semeador espalhando a mensagem de Deus, a lâmpada que deve brilhar como exemplo, a semente de mostarda que se torna uma grande árvore para abrigar a todos. Nesse meio tempo Jesus fez exorcismos, acalmou uma tempestade e ressuscitou a filha do chefe da Sinagoga. Tratam-se de eventos contados por Marcos, que foram replicados nos outros Evangelhos Sinóticos. João, como condiz com sua origem nas montanhas de Samaria, nada tem sobre isso.


O tema aqui é o Reino dos Céus, com Jesus anunciando seu crescimento, que seria um tempo de euforia pela pregação, algo a ser largamente compartilhado. As diversas descrições do Reino são, na verdade, descrições de como o Reino cresce. A isso se somam os prodígios de Jesus, indicando Seu enorme poder.


Pensando que Marcos obteve suas informações da oralidade de Pedro, um morador daquela comunidade de pescadores, podemos pensar que tais falas fossem justamente uma propaganda Cristã usada por Pedro. Trata-se de uma forma de ensino tipicamente semita e mostrada, sem tanto apelo, através dos Provérbios de Salomão. Jesus certamente se tornou muito popular por ali.


Mateus estica a coleção de estórias um pouco além de Marcos, ajuntando outras similares também sobre o Reino dos Céus: o joio do Diabo e o trigo de Deus, o fermento que faz a massa crescer e crescer, a rede de peixes onde Deus escolherá os Seus, o tesouro do escriba com velhos e novos ensinamentos.



DECÁPOLIS


Logo depois que ficou sabendo da morte de João Batista, Jesus realizou o milagre da multiplicação dos pães e peixes para alimentar 5000 homens. O evento é registrado por todos os evangelistas. Lucas refere o lugar como perto de Betsaida, na margem nordeste do lago.


Seguem-se algumas estadias de Jesus na margem oriental do Jordão, na região conhecida como Decápolis. Tratavam-se de cidades "premiadas" com menores impostos, devido a aliança com assuntos do Império. Ali, Jesus refez o milagre da multiplicação dos pães, agora para 4000 homens. Nos interessa que os eventos registrados nessa parte são referidos por Marcos e replicados por Mateus. Lucas, no entanto, é omisso nessa parte.


Segundo Marcos e Mateus, Jesus perambulava pela margem oriental do lago, entre gente pouco afeita aos Judeus, na função de curandeiro. Ele foi a Genesaré, no extremo norte do lago, depois ao Líbano, voltou a Betsaida, então seguiu para Cesária de Filipe (bem mais ao norte, perto da nascente do Jordão). Em cada lugar Jesus curou cegos, surdos, possuídos. Voltando dessa região montanhosa a Betsaida, ocorreu a transfiguração de Jesus, em que ele se tornou luminoso e falou diretamente com os antigos profetas, ante os olhos de Pedro, Tiago e João.


Marcos parece colocar Jesus perambulando por todo o mundo dos Judeus, incluindo seus amigos e inimigos. Não é estranho que João (o Evangelho) nada fale sobre isso, mas é curioso que Lucas não fale. Especialmente porque são relatos presentes em Marcos, aos quais ele teve acesso. Podemos pensar que Lucas perdeu o rastro do Messias, nunca foi ao norte perguntar sobre Ele, ou - como Pedro - resistia a incluir no Cristianismo aqueles que não fossem Judeus.



O PREGADOR DE CAFARNAUM


Após essas andanças no norte, Jesus parece ter voltado à vila de pescadores onde reuniu Os Doze. Lucas emenda uma cadeia de estórias e parábolas supostamente ensinadas por Jesus. Essas parábolas não estão registradas em Marcos, por isso, novamente, é possível que se trate de uma coletânea semita de sabedorias sobre o Maná, o maior no Reino dos Céus, a valorização de um convidado, a confiança em bens materiais, a falta de gratidão, etc. O tom de Jesus aqui é diferente das parábolas contadas por Mateus. Lucas tinha um objetivo religioso bem definido, e recolheu ensinamentos não sobre a vida mundana, mas sobre a atitude dos homens (de confiança ou não) para com Deus.


Além do ensino, Jesus começou a assumir claramente a função de líder religioso. Ele conclamou os seguidores a abandonar tudo, a "partilhar" Sua carne e Seu sangue.


Depois de Cafarnaum, Jesus foi para a Judéia. Lucas não referência bem as histórias que coletou; raramente há indicação de local, só quando a mesma passagem é repetida por Mateus ou João. Muitos ensinamentos ficaram espalhados no caminho entre Cafarnaum e Jerusalém. As referências de João, em especial, sugerem que Jesus fez essa trajetória passando pelas montanhas de Samaria, onde teria curado leprosos e tido um curioso diálogo com uma mulher à beira dum poço.



O ADVERSÁRIO DOS FARISEUS


Vindo de Samaria, Jesus transitou pelas cidades da Judéia (ex. Betânia, Jericó, etc) antes de se estabelecer em Jerusalém. Esse caminho foi marcado por milagres e ensinamentos sobre o divórcio, as riquezas, etc vistos sob a perspectiva do Reino dos Céus.


Jesus adentrou a capital sob homenagens (domingo de Ramos), e então sabemos que Ele já era uma figura bem conhecida da região. Em Jerusalém, seus ensinos nas Sinagogas e no Templo fizeram Ele se tornar um mestre altamente questionado pelos Fariseus. Estes eram uma casta de estudiosos que se dedicavam a debater nas Sinagogas e discursar, no Templo, sobre a Lei. Jesus abertamente os chamava de “víboras” e devia, no mínimo, ser chamado de “blasfemo” por eles.


As parábolas e ensinamentos de Jesus passaram a se dar como respostas a desafios orais dos Fariseus, para Jesus explicar Seus ensinos em confronto com a Lei. Aqui apareceram máximas como o bom pastor, o brotamento e maldição da figueira, "dai a César..", a oferta da viúva, etc. Em meio às pregações, Jesus ressuscitou Seu amigo Lázaro de Betânia e predisse a própria morte, assim como Sua ressurreição ao 3º dia.


Ao invés de um vai e volta a Jerusalém, o alinhamento temporal dos Evangelhos sugere uma única e decisiva incursão do Messias na cidade sagrada. Junto Dele seguiram os Doze e também as mulheres que, não nominalmente, atendiam às necessidades do grupo. Algumas forneciam dinheiro, outras haviam sido curadas, outras prestavam pequenos serviços. Nenhum dos evangelistas se dedica a descrever funções dentro da comunidade. A única descrição feita é quanto a Judas Iscariotes, que cuidava do dinheiro.


Essa parte da narrativa é muito mais densa de concordâncias entre os Evangelhos do que as anteriores, o que faz pensar que se trate da principal lembrança deixada por Jesus para as reconstruções feitas no futuro.



AS CEIAS E A TRAIÇÃO


Chegamos na parte principal das estórias sobre Jesus, pensando que elas talvez até tenham sido compostas de trás para frente, isto é, partindo do Martírio do Senhor e se perguntando o que teria acontecido antes disso. Os relatos sobre Jesus, aqui, são cronologicamente muito próximos, quase passo após passo, dia após dia e minuto após minuto.


Dias antes da Páscoa, Jesus foi convidado para ceiar em Betânia, cidade vizinha de Jerusalém. A ocasião foi importante, relatada por todos os evangelistas. Há controvérsia sobre se a casa pertenceria a Lázaro, amigo íntimo, Simão o leproso ou um Fariseu ilustre. Mas foi lá que certa Maria, provavelmente irmã do dono da casa, ungiu Jesus com bálsamo de nardo, ao que Ele anunciou ser um preparativo para Seu enterro. Um papa, no futuro, diria se tratar da Maria Magdalena, uma prostituta. Mas nenhuma menção disso houve com respeito a ela.


Duas coisas tornam esse encontro muito curioso. Lázaro já era um ressuscitado e, segundo João, o motivador de muita movimentação popular ao redor de Jesus. Ainda, a Maria que ungiu Jesus não foi a de Magdala, mas outra que, segundo a narrativa da Ressurreição, seria anunciada por Jesus como também uma das primeiras testemunhas.


Infelizmente, não há descrição dos discursos nessa refeição mas, ao reunir num só lugar todos os seus mais importantes divulgadores, Jesus poderia bem estar organizando uma movimentação teológica futura. Ou tentando Se proteger dos Fariseus.


Na véspera da Páscoa, Jesus se preparou para fazer com os Seus a tradicional ceia ritual dos Judeus. Essa refeição deveria ocorrer após o pôr do sol, conter um cordeiro assado, ervas amargas e coisas calóricas, recriando os preparativos para cruzar o Mar Vermelho. A ceia descrita por Paulo, repetida por Marcos e os outros evangelistas, entretanto, cita somente pão e vinho. João até desvia-se por completo do feriado e rituais Judeus. Em todas as narrativas, Jesus identifica seu traidor.


Sabemos que a narrativa vem de Paulo pelo completo desconhecimento do local da ceia, por parte dos Evangelistas. O Monte das Oliveiras, vizinho em cujo cume fica o jardim chamado Getsêmani, nos deixa em clara dúvida entre Jerusalém - para onde iam os Judeus na Páscoa - e Betânia, a cidade mais próxima, a exatos "um monte" dali.


Depois da ceia, Jesus e os seguidores foram noite adentro para uma oração no Getsêmani, onde havia um altar milenar ou templo a céu aberto no cume do Monte das Oliveiras. João descreve um longo discurso sobre a perseguição futura e a vinda do Consolador, no caminho até lá.


Todos os evangelistas entram em sincronia desse ponto em diante. Em sua oração, Jesus pediu pela preservação dos Seus (João) ou pela própria (Sinóticos). Estando Ele a orar, apareceram Judas e a guarda do Templo. Os discípulos lutaram, mas foram debelados e fugiram por entre as árvores. Jesus foi levado à casa de Caifás. 



CULPADO?


O julgamento de Jesus é uma incógnita histórica. Apesar da sustentação em todos os Evangelhos, tal julgamento parece extraído das falas de Paulo e não se adapta às leis dos Judeus nem dos Romanos. Para os Judeus, era um feriado sagrado quando deveriam cuidar das famílias e não se envolver em disputas. Divergências doutrinárias e profetas milagreiros eram comuns em Jerusalém, podendo no máximo terminar em expulsão da cidade, prisão ou açoites. O maior suplício da Lei era o apedrejamento.


Mas Jesus foi buscado pela guarda do Templo, julgado numa noite sagrada e executado como rebelde traidor de Roma. Várias décadas mais tarde, os evangelistas descreveram tudo tão rápido que até encavalaram a celebração da Páscoa por Jesus e a celebração do Templo.


Lucas, em sua pesquisa histórica, cria um cenário digno de filme. Herodes Antipas, rei da Galiléia, vai a Jerusalém para a Páscoa, faz as pazes com Pilatos (que ocupava o posto de sua família) e procede um julgamento independente de Jesus, no Sábado Sagrado. Pilatos termina condenando Jesus puramente por uma misteriosa pressão popular, ele que era um burocrata e não tinha popularidade sequer entre os Romanos. Pilatos ainda liberta, também por pressão popular, um líder revolucionário, Barrabás, cujo nome significa "filho do meu pai". É mais ou menos como se ninguém soubesse explicar a participação de Roma, nem de qualquer autoridade. "Só sei que foi assim".


Lembremos que Lucas, se esteve em Jerusalém, precisaria ter chegado antes do início da Guerra, que terminou por aniquilar a cidade entre 66 e 70 d.C. Como ele dispunha já do manuscrito de Marcos como guia, e o manuscrito foi composto na mesma época lá em Alexandria, no Egito, isso se torna bem improvável. Ele pode ter andado pela Galiléia, mas deve ter feito isso quando Herodes Antipas, Pilatos e mesmo Jerusalém já eram lendas e escombros de um outro tempo.


Marcos, o primeiro a escrever, juntou as palavras de Pedro e Paulo, de memória, enquanto estava bem longe dali, literalmente refugiado no Egito. Paulo, testemunha mais antiga e que escrevia, deixou um relato muito sucinto sobre Jesus. Tão sucinto que a única fala do Messias deixada por Paulo, em todas as suas cartas, foi o ritual da Ceia.



A CRUZ


Como parte do julgamento de Pilatos, Jesus foi açoitado e logo conduzido ao Gólgota para ser crucificado junto com outros dois, dos quais não houve notícia antes. Segundo os evangelistas, parece que aqui há um retorno do tempo, a menos que a descrição da Ceia não fosse uma comemoração de Páscoa, apesar do que eles mesmo sugerem (segundo Marcos e Lucas, a Ceia foi no começo do Sábado, Mateus a coloca na véspera e, João, num momento incerto antes da Páscoa).


Marcos menciona 3 personagens curiosos: Simão Cireneu e seus filhos, Alexandre e Rufus. Todos parecem personagens do mundo greco-judaico, onde também Paulo andava. Segundo a tradição Ortodoxa Bizantina, eles estariam entre os 70 enviados por Jesus para divulgar Sua mensagem.


Em poucas horas, diferente do que os Romanos costumavam fazer, por ocasião da Páscoa os guardas são instruídos a quebrar as pernas dos condenados. Mas Jesus já estava morto. José de Arimatéia, ilustre Sinedrista, pede o corpo a Pilatos, que consente, e daí somos levados a pensar em favorecimentos mútuos entre o mal afamado governador Romano e os líderes Judeus. Normalmente, os executados eram jogados em valas.



RESSURREIÇÃO


No domingo ao amanhecer, entre 1 e 2 dias após o sepultamento do Messias, um grupo de mulheres seguiu à cova de José de Arimatéia para concluir o embalsamamento funerário tradicional. Após 3 dias, o cadáver não poderia mais ser tocado. O único nome certo entre elas é Maria de Magdala. Elas encontraram a tumba aberta.


Os relatos variam a partir do avistamento de anjo(s) na tumba, mostrando que uma tradição sobre a Ressurreição não se concretizara, até o final do séc. 1. Paulo não descreveu Jesus ressuscitado, embora enfatizasse a Ressurreição como um pilar do Cristianismo.


1ª carta aos Coríntios, cap. 15

15. Além disso, seríamos convencidos de ser falsas testemunhas de Deus, por termos dado testemunho contra Deus, afirmando que ele ressuscitou a Cristo, ao qual não ressuscitou (se os mortos não ressuscitam). Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, é inútil a vossa fé, e ainda estais em vossos pecados. Também estão perdidos os que morreram em Cristo.


Os Evangelhos tratam de 5 aparições de Jesus. As mais repetidas, em pelo menos 3 dos 4 Evangelhos, foram a Maria de Magdala (não é citada por Lucas), na estrada de Emaús (ausente em Mateus e João) e aos Onze (que Mateus situa na Galiléia, mas João sustenta ser perto do Sepulcro). Judas Iscariotes estava morto. Outras aparições foram na presença de Tomé e questionando Pedro (ambas em João). Nalgumas narrativas, Jesus fez questão de comer com os discípulos para demonstrar sua carnalidade.


Em todas as aparições, Ele surgiu "disfarçado" ou "não reconhecível", mesmo a Seus íntimos, e depois Se revelou. Ficamos com a impressão de um Jesus usando turbante, óculos escuros e barba falsa. Além disso, tratou-se de uma Ressurreição simbólica: Jesus não voltou a andar entre os homens, nem a pregar ou curar nas aldeias. Também não se sabe dele conclamando o povo a uma Nova Lei. Isto é, não foi exatamente uma reversão da morte. Em pouco, Ele nem estaria mais visível.



PALAVRAS PÓSTUMAS


Os Evangelhos são encerrados de formas diferentes. Marcos coloca Jesus dizendo aos discípulos para espalharem Sua mensagem, depois subindo aos Céus. Mateus encerra com o "Ide". Lucas e João têm um anúncio do Espírito Santo, mas em pontos distintos da narrativa. Segundo Mateus e João, os discípulos vão para a Galiléia; segundo Lucas, eles ficam em Jerusalém. Na prática, todos os evangelistas sabiam (de seu próprio passado) sobre o destino terrível da cidade sagrada. Marcos e Lucas, em especial, conheceram as primeiras comunidades Cristãs.


Pedro e Paulo se encontraram em Jerusalém, no ano 49-50 d.C. Houve conflitos entre eles e depois se separaram. Quem narrou isso, expondo as falhas de Pedro, foi um seguidor de Paulo. Pedro, mais tarde, foi relatado em Roma - lá está sua tumba. Incrivelmente, 20 a 50 anos de pregação e expansão Cristã ocorreriam antes que os fiéis tivessem acesso a detalhes escritos sobre a vida de Jesus.



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¹ Na América, Papai Noel se tornou um personagem importante do Natal. Na Europa e Leste Europeu, contudo, as tradições e dias festivos diferenciam o dia de São Nicolau (6/dez, aniversário de morte do bispo Nikolaos) e o Natal (25/dez, supostamente aniversário de nascimento de Jesus).


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FÁBULAS DE QUE ME LEMBRO


Clement Clarke Moore, A Visit from St. Nicholas, poetryfoundation.org


Five things you never knew about Santa Claus and Coca-Cola. coca-colacompany.com


Lista completa da Cronologia


Steven L. Cox; Kendell H. Easley, "Analytical Outline of the Harmony", HCSB Harmony of the Gospels, B&H Publishing, 2006.


William Newcome, Edward Robinson (ed.), A harmony of the Gospels in Greek, in the general order of Le Clere & Newcome, with Newcome's notes: Printed from the text and with the various readings of Knapp, Gould and Newman, 1834.

Um comentário:

  1. Apesar de parecer uma análise fundamentada, não apresenta respaldo de nada, se contendo em apenas expressar analises pessoais(sem fundamentos externos) e suposições em cima dos textos bíblicos. Ao analisarmos questões como história bíblica e extra-bíblica(para analisar o panorama da época narrada), narrativa coesa com o Antigo testamento(para analisar a continuidade profética), profecias que se cumpriram(novamente analisando a história bíblica e extra-bíblica, sendo fonte religiosa ou não), ai, sim, serão apresentados temas para gerar um parâmetro de análise crítico.

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