segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Detalhes históricos dos Evangelhos

Ecce Homo - pintura de Antonio Ciseri em 1862. A cena compõe Pilatos apresentando Barrabás e Jesus à multidão.


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A prisão, julgamento e crucificação de Jesus são os elementos mais sólidos nos Evangelhos, mais do que a vida/ensinamentos de Jesus e até Sua ressurreição. Faz parte da liturgia Cristã re-encenar, todos os anos, esse eventos de Páscoa, como ensino da fé num Salvador capaz de derrotar toda a maldade do mundo. Apesar de sua antiguidade, essa estória ainda hoje pode esmiuçada, estudados paralelos e teorias e, assim, aprendermos algo mais com ela.


AS NARRATIVAS DA CRUCIFICAÇÃO


Como é costumeiro entre os testemunhos, temos uma estória contada por 4 autores. Na medida do possível podemos incluir também elementos do historiador Flavius Josephus, que não viveu na época de Jesus, mas dedicou-se a escrever sobre as pessoas famosas dentre seu povo. Pilatos e os reis Herodianos (por exemplo Herodes Antipas, que reinou de 4 a.C. a  39 d.C. e esteve envolvido com as mortes de João Batista e Jesus) não escaparam da sua pena.


A Crucificação não foi particularmente interessante para os Judeus, nem para os Romanos. Assim, os relatos que temos são basicamente Cristãos. E, dada a turbulência política da Judéia no séc. 1, não tivemos uma produção importante de documentos sobre isso antes dos anos 40 d.C.


O relato escrito mais antigo sobre a Crucificação nem é dos evangelistas, mas de Paulo de Tarso.


1ª carta aos Coríntios, cap. 1

22. Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria, mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Para os eleitos - quer judeus, quer gregos - força de Deus e sabedoria de Deus.


A história completa da Paixão aparece nos 4  Evangelhos: Marcos, texto-base para Mateus e Lucas, e também em João. Os três primeiros, chamados Sinóticos (ou paralelos), são textos altamente aparentados entre si. Por outro lado, quase tudo que João tem em comum aos outros Evangelhos é a narrativa da Paixão, ou seja, a prisão, julgamento, morte e ressurreição. Como grande parte do texto de todos os Evangelhos é dedicado à Paixão, temos uma medida da importância que esses eventos tiveram na gênese do Cristianismo.


As fontes dos relatos nos Evangelhos, ou seja, aquelas que assistiram aos eventos,  são pessoas desconhecidas para nós. João Marcos, autor mais antigo e sucinto,  já não foi uma testemunha ocular: antes de se tornar o 1º bispo de Alexandria (61-68 d.C.), acredita-se que ele era um companheiro de Paulo que passou a acompanhar Pedro em Jerusalém e anotou suas falas. O próprio Pedro, tudo indica, era um pescador iletrado. Mais tarde Lucas, médico, cronista de Paulo e autor de Atos, seguiria um caminho parecido, mas se dedicando a uma pesquisa histórica que gerou um texto muito mais detalhado.


Mateus (o texto) parece ser uma tradição comunitária dos Judeus, assim como João, que talvez seja uma tradição dos Samaritanos. Ambos os textos incorporam muitos ensinamentos populares.


As cartas de Paulo (50 - 60 d.C.) não trazem sequências de eventos, nem uma cronologia da Paixão. Paulo não estava interessado em eventos históricos, nem clamava um ensino por alguma testemunha ocular. Ao contrário, ele falava com base em sua visão pessoal de Jesus, no Céu, transmitindo-lhe conhecimentos de forma sobrenatural.


Carta aos Gálatas, cap. 1

11. Asseguro-vos, irmãos, que o Evangelho pregado por mim não tem nada de humano. Não o recebi nem o aprendi de homem algum, mas mediante uma revelação de Jesus Cristo. ... Mas, quando aprouve àquele que me reservou desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça, para revelar seu Filho em minha pessoa, a fim de que eu o tornasse conhecido entre os gentios, imediatamente, sem consultar a ninguém, sem ir a Jerusalém para ver os que eram apóstolos antes de mim, parti para a Arábia. De lá regressei a Damasco.


É interessante que o relato no livro de Atos destoa dessa viagem espiritual de Paulo. O motivo da viagem de Paulo entre a ‘Arábia’ e Jerusalém é revelada por ele mesmo somente perante o rei, o que também nos inspira a pensar no alto nível social a que Paulo pertencia, para ter acesso ao palácio.


Atos, cap. 9

1 E Saulo, respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote. E pediu-lhe cartas para Damasco, para as sinagogas, a fim de que, se encontrasse alguns deste Caminho, quer homens quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém. E, indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do céu. E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues?’


Atos, cap. 26

1 Depois [o rei Herodes] Agripa disse a Paulo: ‘É permitido que te defendas’. Então Paulo, estendendo a mão em sua defesa, respondeu: ‘Tenho-me por feliz, ó rei Agripa, de que perante ti me haja hoje de defender de todas as coisas de que sou acusado pelos judeus; … Bem tinha eu imaginado que contra o nome de Jesus Nazareno devia eu praticar muitos atos, o que também fiz em Jerusalém. E, havendo recebido autorização dos principais dos sacerdotes, encerrei muitos dos santos nas prisões; e quando os matavam eu dava o meu voto contra eles. E, castigando-os muitas vezes por todas as sinagogas, os obriguei a blasfemar. E, enfurecido demasiadamente contra eles, até nas cidades estranhas os persegui. Sobre o que, indo então a Damasco, com poder e comissão dos principais dos sacerdotes, ao meio-dia, ó rei, vi no caminho uma luz do céu, que excedia o esplendor do sol, cuja claridade me envolveu a mim e aos que iam comigo’.


A descrição de Lucas é bastante condizente com as práticas Romanas e também com o altíssimo conhecimento de Paulo sobre as tradições dos Fariseus. Paulo em seguida (segundo Lucas) descreve como todos foram derrubados pela aparição. Curiosamente, e considerando as muitas tradições sobre essa cena - para nos dar uma idéia de como os imaginários são montados - não há qualquer referência a um cavalo onde ele estivesse montado. Ao que parece, Paulo seguiu mais ou menos como um profeta, com seu conhecimento sobrenatural sobre Jesus em direção ao centro dos eventos relativos ao Cristianismo (acontecidos havia já uns 10-15 anos), e não a partir dali.


A CEIA


A Páscoa é a maior comemoração Judaica, relembrando a saída dos antigos Hebreus do Egito. Em Marcos, Mateus e Lucas, a Última Ceia foi realizada na primeira noite da Páscoa. Em João, junto com outros elementos anti-judaicos, a Ceia ocorre talvez 1 semana antes da Páscoa.


Apesar de ser uma comemoração relativa ao Egito, Mar Vermelho e Canaã, milhares de Judeus peregrinavam até o Templo em Jerusalém para celebrar a Páscoa num lugar sagrado. Os Evangelhos Sinóticos descrevem então uma refeição ritual alinhada com a narrativa de Paulo:


1ª carta aos Coríntios, cap. 11

23. Eu recebi do Senhor o que vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão e, depois de ter dado graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim. Assim, todas as vezes que comeis desse Pão e bebeis desse cálice lembrais a morte do Senhor, até que Ele venha.


"Até que o Messias venha" era um elemento da Páscoa dos Judeus, que esperam pela chegada do Messias no fim dos tempos. Paulo usou essa expressão da forma mais harmoniosa que poderia! Mais tarde, os Cristãos substituiriam a Ceia pela representação da Paixão, nas comemorações de Páscoa.


A refeição ritual dos Judeus, que teria sido a Páscoa de Jesus, consiste de um cordeiro assado, pães sem fermento, ervas amargas e outros alimentos. Tratava e trata-se ainda de uma repetição da refeição comandada por Moisés em Êxodo 12.


Em João, a narrativa da Ceia destoa bastante do que Paulo nos ensinou. Primeiro, a Ceia não ocorre na Páscoa (o que reforça a idéia de um Evangelho Samaritano). Ao invés do "pão e vinho", Jesus intervém numa discussão entre Os Doze e termina por dar uma lição de humildade ao lavar os pés de todos, começando por Pedro.


João, cap. 13

12. Depois de lhes lavar os pés e tomar as suas vestes, sentou-se novamente à mesa e perguntou-lhes: Sabeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou. Logo, se eu, vosso Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, assim façais também vós. Em verdade, em verdade vos digo: o servo não é maior do que o seu Senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou.


Tanto a humildade, quanto a referência a Pedro e também às Sinagogas (além do percurso de Jesus entre a Galiléia e Jerusalém passando por dentro de Samaria) fazem pensar no Evangelho de João como fruto de um grupo muito desprezado pelos Judeus, e que tentava separar os Cristãos dos costumes desses últimos.


JUDAS


Na tradição Cristã, foi durante a Ceia que Jesus identificou seu traidor, Judas Iscariotes.


Trata-se, provavelmente, de um dos nomes mais comuns entre os Jud-eus. Eram habitantes da terra de Judá, herdeiros de um patriarca chamado assim. Um dos heróis nacionais também se chamava Judas Macabeu, o líder da Revolta dos Macabeus contra a ocupação Grega (167 a.C.). Mesmo no grupo dos 12 eleitos de Jesus havia também outro Judas, que a tradição costuma especificar como Judas Tadeu. Esse seria o compositor de um dos livros do Novo Testamento, um texto bem curto e afiado sobre práticas "mundanas" nas igrejas.


Mas voltemos ao Judas chamado Iscariotes. Não sabemos se o "sobrenome" indicava um nascido na cidade de Kerioth, ou se era uma referência aos Sicari, uma facção mais radical dos Zelotes. Simão era um membro desse grupo e estava listado entre "Os Doze". Na verdade, tudo o que sabemos sobre esse Judas é o que consta nos Evangelhos: que ele traiu Jesus.


Alguns historiadores mais radicais sugerem que Judas tenha sido uma criação de Marcos, para representar a participação dos Judeus na morte de Cristo. Porém, é notório que Judas aparece com esse papel também em João, texto com origem bem diferente dos demais. Não há traço dele nos escritos de Paulo.


Na verdade, Paulo apenas parece um pregador distanciado do que viria a ser a composição dos Evangelhos. Ele até diz que Jesus foi crucificado, ressurgiu ao 3º dia, apareceu a Cefas, em seguida aos Doze (talvez incluindo Judas), a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a Tiago (um dos primeiros pregadores), a todos os apóstolos (1ª Coríntios 15:3-12). 


Apesar do valor que a própria Igreja deu e ainda dá a Judas como um protótipo de criminoso, ele simplesmente some da narrativa Cristã original. Pilatos, com alguma popularidade a mais, seria mencionado ainda na carta de Paulo a Timóteo (cuja autoria por Paulo é contestada como sendo uma obra de grupos Cristão/Judeus no séc. 2).


A suposta "criação de Judas" se apoia num salmo de Davi, o rei músico-cantor-dançarino que lamentava por sua perseguição


Salmos, cap. 41

10. Até o próprio amigo em que eu confiava, que partilhava do meu pão, levantou contra mim o calcanhar.


Além disso, faria parte da composição uma profecia de Zacarias


Zacarias, Cap. 11

9. Eu declarei: 'Não quero mais saber do ofício de pastor. Pereça o que perecer, morra o que morrer! Os que restarem, que se devorem uns aos outros'. Tomando então Benignidade, meu cajado, quebrei-o, rompendo assim o pacto concluído com todos os povos. Ele foi quebrado naquele dia e os mercadores de animais que me observavam, perceberam que aquilo indicava um oráculo do Senhor. Eu disse-lhes: 'Dai-me o meu salário, se o julgais bem, ou então retende-o!' Eles pagaram-me apenas trinta moedas de prata pelo meu salário. O Senhor disse-me: 'Lança esse dinheiro no tesouro, esta bela soma, na qual estimaram os teus serviços'. Tomei as trinta moedas de prata e lancei-as no tesouro da casa do Senhor.


Por fim, na composição estaria um lugar "maldito" de Jerusalém, chamado Hacéldama. Esse lugar ficaria descrito como onde Judas se enforcou.


Mateus, cap. 27

5. Ele jogou então no templo as moedas de prata, saiu e foi enforcar-se. Os príncipes dos sacerdotes tomaram o dinheiro e disseram: Não é permitido lançá-lo no tesouro sagrado, porque se trata de preço de sangue. Depois de haverem deliberado, compraram com aquela soma o campo do Oleiro, para que ali se fizesse um cemitério de estrangeiros. Esta é a razão por que aquele terreno é chamado, ainda hoje, Campo de Sangue (Hacéldama).


A palavra usada por Paulo com respeito a Jesus equivale a "entregue às autoridades", embora uma "tradução tradicional" seja "traído".


Permitindo-me uma opinião pessoal, a conexão entre os supostos elementos "gestadores" de Judas é extremamente fraca. A desvinculação entre Paulo e a composição dos textos sagrados, que ele mesmo não conheceu, parece muito mais plausível. Não foi ele a nos ensinar sobre a vida de Jesus! Toda inserção do tema de Judas no Cristianismo, assim, viria dos Evangelhos. E quanto a Judas, tanto os Sinóticos quanto João concordam - e eles concordam em bem raras coisas.


GETSÊMANI


Após a Ceia, Jesus e os discípulos foram até um lugar conhecido como Getsêmani (“lagar/prensa de azeite”). A estória é conhecida como a "Agonia no Jardim ”, onde Jesus orou para evitar sua tortura e morte.


Lucas, cap. 22

40. Ao chegar àquele lugar, disse-lhes: 'Orai para que não caiais em tentação'. Depois se afastou deles à distância de um tiro de pedra e, ajoelhando-se, orava: 'Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este Cálice! Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua'. Apareceu-lhe então um anjo do céu para confortá-lo. Ele entrou em agonia e orava ainda com mais instância, e seu suor tornou-se como gotas de sangue a escorrer pela terra. Depois de ter rezado, levantou-se, foi ter com os discípulos e achou-os adormecidos de tristeza. Disse-lhes: 'Por que dormis? Levantai-vos, orai, para não cairdes em tentação'.


Alguns estudiosos vêem um paralelo entre esse episódio e o golpe de Absalão, filho do rei Davi. Em certo ponto da história, Absalão auto-declarou-se rei (pois havia outros herdeiros) e partiu de Hebron para Jerusalém tomar o trono de seu pai. Davi então fugiu com seus homens para o Monte das Oliveiras, onde lamentou (como Jesus) sua situação.


2ª Samuel, cap. 15

31. Foi anunciado a Davi que Aquitofel [seu ex-conselheiro de guerra] estava também entre os conjurados de Absalão. Davi disse: 'Fazei que se frustrem, ó Senhor, meu Deus, os desígnios de Aquitofel!' Ora, chegando ao cume do monte, no lugar onde se adorava Deus, veio-lhe ao encontro Cusai, o araquita, [outro conselheiro de guerra] com a túnica em farrapos e a cabeça coberta de pó.


Salmos, cap. 70 - a respeito de Davi em fuga

4. Meu Deus, livrai-me da mãos do iníquo, das garras do inimigo e do opressor, porque vós sois, ó meu Deus, minha esperança. Senhor, desde a juventude vós sois minha confiança. Porque falam de mim meus inimigos e os que me observam conspiram contra mim, dizendo: Deus o abandonou; persegui-o e prendei-o, porque não há ninguém para o livrá-lo. Ó Deus, não vos afasteis de mim. Meu Deus, apressai-vos em me socorrer.

(outras orações estão nos Salmos 3 e 71)


Um ponto de ligação entre as duas estórias, claro, é o altar ou templo a céu aberto no cume do Monte das Oliveiras. Além de ser um ponto de prensagem das azeitonas para fazer azeite, aquele lugar serviu a propósitos sagrados 1000 anos após Davi. Para este, em fuga da cidade real, também era um ponto estratégico, de onde podiam ver os arredores e ser ocultados pelas árvores. Na floresta de Efraim, mais ao norte, isso foi decisivo na batalha contra Absalão, onde Davi saiu vitorioso.


Ambos, Davi e Jesus, foram para o cume do Monte com seus homens de maior confiança. Mas as orações de Davi e Jesus foram essencialmente diferentes. Davi clamava por proteção e derrota dos inimigos, que o perseguiam "por maldade". Jesus pedia para que Deus o poupasse do sofrimento vindouro.


O BEIJO DE JUDAS


De acordo com os Evangelhos, Judas se ofereceu para levar as autoridades até onde Jesus poderia ser preso. O sinal sobre quem seria o Nazareno foi um beijo, episódio narrado pelos 4 evangelistas e memorizado na cultura Cristã. Judas encontrou Jesus no Monte das Oliveiras.


Apesar da referência comum a Provérbios 27.6 (“Bem intencionadas são as feridas de um amigo que aflige, mas profusos são os beijos de um inimigo”), a conexão de sentidos novamente é fraca.


Em Provérbios, famosa coleção de ditames de sabedoria elaborado a partir da corte de Salomão, a repreensão dos amigos e o afago dos inimigos são emparelhados. Isso indica uma valorização das correções recebidas. No beijo de Judas, não há nenhuma expectativa de instrução ou desvio de Jesus por um falso amigo.


MATEUS CONTRA OS JUDEUS


Muitas pessoas já pensaram no texto de Mateus como fruto do ex-cobrador de impostos chamado por Jesus para ser um dos Doze. No entanto, a única referência ao cobrador é o nome, adicionado ao manuscrito quando este já circulava por Roma. O Evangelho de Mateus é, na verdade, um enorme compêndio de tradições orais dos Judeus associadas propositalmente a Jesus. Não temos como saber quais dos ditos, ensinos, etc realmente seriam Dele, mas o fato é que tais ensinos não saem da boca de Jesus nos outros Evangelhos. Em Lucas, que também reúne diversos ensinamentos, eles são outros! Mais ou menos, Mateus traduz para o Cristianismo europeu um grande material de sabedoria semita, na forma de algo como "estórias dos tempos antigos".


De acordo com Marcos, Jesus foi levado perante o Sinédrio durante a Páscoa; em Lucas e João, é a casa do sumo sacerdote (Anás e seu genro Caifás). Marcos e Mateus mencionam um julgamento à noite, enquanto Lucas incluiu um segundo julgamento por Herodes Antipas, rei da Galiléia.


O problema aqui é que a Páscoa é o maior feriado Judeu, para ser celabrado no grande Templo, junto da família, o patriarca encenando a figura de Moisés. À semelhança do Ramadã Muçulmano, trata-se de um período de purificação, benevolência - jejuns não - e refeições rituais.


Parece muito improvável que os membros do Sinédrio deixassem suas casas de madrugada para prender e condenar um milagreiro Galileu. Quanto mais faria isso Herodes Antipas, o rei da Galiléia! De acordo com a tradição rabínica posterior, a lei judaica até proibia julgamentos à noite ou feriados. Poderiam simplesmente ter colocado Jesus em uma cela até o final do feriado..


Mateus foi escrito no contexto de Jerusalém já destruída pelas legiões Romanas, com Cristãos e Judeus dispersos. Tanto a Galiléia quanto a Judéia estavam arrasadas, e os Herodianos haviam sido destituídos do poder. O Messias era tudo o que restara para se acreditar. Por isso, Mateus relata Pilatos literalmente "lavando as mãos" sobre o assunto de Jesus (e isentando Roma), além de acentuar a culpa completa dos Judeus pela Sua morte, acrescentando


Mateus, cap. 27

25. E todo o povo respondeu: Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!


A citação foi usada ao longo dos séculos e na era moderna para justificar o assassinato de Judeus.


O JULGAMENTO NOTURNO


Se Jesus tivesse tentado interromper os serviços no Templo, o acordo entre os Saduceus e Pilatos faria Jesus ser preso e crucificado imediatamente. O feriado de Páscoa impediria quaisquer apelações ao Sinédrio. Por isso, nos resta o mistério de entender exatamente como Jesus chegou a Pilatos, conhecido pela inclemência com os próprios cidadãos Romanos. Ele teria se incomodado em julgar um camponês Judeu?


Marcos afirmou que, quando Jesus foi acusado, "as testemunhas não concordaram". Mais uma vez, a Lei Judaica ditava que, nesse caso, o testemunho deveria ser rejeitado. Mas essa foi a maneira de Marcos dizer que foi um julgamento ilegal, que desde o início os Saduceus, Fariseus e os Herodianos buscaram Sua morte. 


Marcos, cap. 14

61. Mas Jesus se calava e nada respondia. O sumo sacerdote tornou a perguntar-lhe: 'És tu o Cristo, o Filho de Deus bendito?' Jesus respondeu: 'Eu o sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus, vindo sobre as nuvens do céu'. O sumo sacerdote rasgou então as suas vestes. 'Para que desejamos ainda testemunhas?!', exclamou ele. 'Ouvistes a blasfêmia! Que vos parece?' E unanimemente o julgaram merecedor da morte.


A fala de Jesus é uma citação clara de Daniel 7.13-14, onde um dos principais profetas dos Judeus tem uma visão de criaturas monstruosas destruindo o mundo e um Salvador aparecendo para derrotá-las. Lucas repete essa fala de forma resumida. João se estende na passagem e até  muda completamente o foco:


João, cap. 19

7. Responderam-lhe os judeus: 'Nós temos uma lei, e segundo essa lei ele deve morrer, porque se declarou Filho de Deus'. ... Os judeus gritavam: 'Se o soltares, não és amigo do imperador, porque todo o que se faz rei se declara contra o imperador'. ... Pilatos perguntou-lhes: 'Hei de crucificar o vosso rei?' Os sumos sacerdotes responderam: 'Não temos outro rei senão César!'


Apesar do que João conta, simplesmente reivindicar ser um “messias” não era crime. O historiador Flavius Josephus relatou vários que afirmavam ser o Messias e, aparentemente, nenhum deles foi executado sob a Lei. Entretanto, os Evangelhos não são escrita Judaica ou para os Judeus. Parecia necessário implicar eles na execução de Jesus.


Uma teoria recente é a de que os compositores dos Evangelhos queriam uma aliança com Roma. Ou, pelo menos, viam Roma com bons olhos e pensavam que Jesus e Roma não podiam ser opositores. Lucas, talvez mais do que ninguém, "suaviza" todos os conflitos de Paulo com Roma, no livro de Atos. 


Sabemos que esse propósito demorou séculos a se cumprir.. Muitos Cristãos foram executados por Roma, geralmente porque incitaram as turbas contra o governo. Marcos sabia como Jesus morreu (ele acompanhou Pedro) e, portanto, a trama de uma biografia de Jesus exigia que os líderes Judeus tivessem entregado Jesus a Roma.


Outro detalhe estranho do julgamento de Jesus foi sua temporalidade. Tudo precisava ser muito rápido, pois o Sábado dos Judeus era um dia sagrado, e mais ainda o Sábado de Páscoa. Não haveria julgamento nesse dia, nem sepultamento, então Jesus precisava estar muito rápido em mãos de Roma, já condenado.


O evangelho de João fornece o motivo mais verossímil que temos para o envolvimento Romano - na forma de Pôncio Pilatos - nessa questão. Havia um pacto de cooperação entre os Saduceus e o governo: Roma dava autonomia ao Templo e este mantinha o povo "nas rédeas". Segundo João, a ressurreição de Lázaro agitou as multidões e o sumo sacerdote decidiu que Jesus deveria ser morto para evitar parecer que não podiam controlar o povo.


João, cap. 11

47. Os pontífices e os fariseus convocaram o conselho e disseram: 'Que faremos? Esse homem multiplica os milagres. Se o deixarmos proceder assim, todos crerão nele, e os romanos virão e arruinarão a nossa cidade e toda a nação'. Um deles, chamado Caifás, que era o sumo sacerdote daquele ano, disse-lhes: 'Vós não entendeis nada! Nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação?'


Jesus morreu exatamente como um traidor de Roma. Havia Zelotes por toda parte e era o início da Guerra dos Judeus. Os seguidores de Jesus tiveram que desfazer essa imagem de rebelde, e a melhor maneira era fortalecer que um magistrado Romano declarasse Jesus inocente. Por implicação, seus seguidores também eram inocentes.


BARRABÁS


As cronologias de Jesus situam Sua morte entre 26-36 d.C., quando Pôncio Pilatos serviu na Judéia durante o reinado do imperador Tibério (14-37 d.C.). Pilatos teria ido a Jerusalém para supervisionar as festividades dos Judeus, quando talvez tenha habitado a Fortaleza Antônia, um prédio militar Romano próximo ao Templo. Temos duas fontes sobre Pilatos: os escritos de Philo de Alexandria (compostos nos anos 30-40 d.C.) e Flavius Josephus. Ambos associam Pilatos com abusos de poder e corrupção.


Marcos afirmou que Pilatos tinha o hábito de libertar um prisioneiro na festa da Páscoa. Mas não há outras evidências desse costume, e realmente parece estranho algo semelhante feito por um Romano emaranhado em legalismos. O nome do prisioneiro candidato, para ajudar, era Barrabás, um nome aramaico que significa "filho do pai". A mesma identificação aparece, eventualmente, para Jesus. Barrabás é uma figura ainda mais misteriosa que Judas - após essa breve aparição, não há qualquer traço dele. Marcos apenas conta que havia cometido uma morte durante um motim.


Na cena do julgamento de Pilatos, a multidão dos Judeus pede pela crucificação de Jesus. Ironicamente, a mesma multidão levava folhas de palmeira para recepcionar o Messias, alguns dias antes. A prisão de Jesus durante a noite foi um estratagema para evitar a revolta popular.. Marcos não fornece detalhes sobre por que o povo se voltou contra Jesus, fazendo tudo parecer um retrato da enorme volubilidade das massas.


Os dias atuais de grande polarização política talvez nos sirvam para entender o erro em considerar "o povo" de forma homogênea. Durante a dominação Grega na Judéia, enquanto parte da população se alistava com os Macabeus, outra parte aprendia a cultura Grega e apoiava o governo. Não há porque pensarmos diferente no caso da ocupação Romana.. Por isso, é bem possível que os frequentadores do pátio de Caifás fossem pessoas bem distintas ideologicamente daqueles recebendo Jesus no "Domingo de Ramos".


MORTE E SEPULTAMENTO DE JESUS


Os romanos crucificavam vítimas ao longo das estradas que conduziam às cidades. Isso servia de propaganda para quem chegava: 'é isso que acontece quando você se rebela contra Roma'. Eles tentavam manter a vítima viva e sofrendo o maior tempo possível (daí os estimulantes, como vinagre).


O tempo médio de sobrevivência dos crucificados era de 3 a 5 dias. Morriam por asfixia, mas também de infecção, insolação, sede e fome. Os evangelistas nos fazem crer que Jesus morreu em apenas 4 horas. E Ele não teve as pernas quebradas para acelerar a asfixia, como os demais, intervenção feita pela proximidade do feriado Judeu. De novo, é João quem fornece alguma explicação.


Lucas, cap. 23

44. Era quase à hora sexta [12h00] e em toda a terra houve trevas até a hora nona. Escureceu-se o sol e o véu do templo rasgou-se pelo meio. Jesus deu então um grande brado e disse: 'Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito'. E, dizendo isso, expirou.


João, cap. 19

31. Os judeus temeram que os corpos ficassem na cruz durante o sábado, porque já era a Preparação e esse sábado era particularmente solene. Rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas e fossem retirados. Vieram os soldados e quebraram as pernas do primeiro e do outro, que com ele foram crucificados. Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água.


Reparemos que João também não associou Jesus com o Templo.


No Sábado de Páscoa, que se iniciava ao Pôr do Sol, nem houve tempo suficiente para terminar de embalsamar o corpo, que foi logo recolhido por José de Arimatéia. Normalmente, os crucificados não tinham direito aos rituais fúnebres, sendo jogados em valas coletivas. Mas os magistrados Romanos eram notórios por aceitarem subornos..


João, cap. 19

38. Depois disso, José de Arimatéia, que era discípulo de Jesus, mas ocultamente, por medo dos judeus, rogou a Pilatos a autorização para tirar o corpo de Jesus. Pilatos permitiu. Foi, pois, e tirou o corpo de Jesus. Acompanhou-o Nicodemos (aquele que anteriormente fora de noite ter com Jesus), levando umas cem libras duma mistura de mirra e aloés. Tomaram o corpo de Jesus e envolveram-no em panos com os aromas, como os Judeus costumam sepultar.


O restante do trabalho de embalsamamento precisaria ser feito depois, no domingo de manhã (para os Judeus, o nascer do sol no domingo encerrava os rituais de Páscoa). Então haveria algumas mulheres, incluindo Maria de Magdala, indo para lá com esse propósito. Elas encontrariam a famosa tumba vazia.


Existe aí uma analogia de Jonas e baleia.. Este profeta, que nomeia um livro do VT, teria sido engolido por um "grande peixe" que o carregou por 3 dias e noites, após ser jogado ao mar. Nesse tempo de sepultamento (como pecador) e retorno à vida (como profeta), Jonas provavelmente foi carregado por uma embarcação grega - tradicionalmente chamadas "peixes" (ou ICHTHYS, acrônimo usado para Iesous Christos Theou Yios Soter, Jesus Cristo Filho de Deus Salvador, para dar um nó no cérebro) e pintadas como tal. A tradição diz que Jesus ficou na tumba por 3 dias, sendo esse o tempo ritual permitido para que o cadáver não se tornasse impuro. Mas foi da tarde de 6ª feira para a manhã de domingo. No máximo, 1 dia e meio.


OS ANOS SEGUINTES


Dentro de 20 anos após a morte de Jesus, seus seguidores (Pedro, Tiago e João) estabeleceram uma comunidade Cristã em Jerusalém. Sabemos disso porque Paulo os visitou lá. Tanto Paulo quanto Lucas descreveram uma grande reunião dos missionários em Jerusalém, talvez em 49 d.C.


A primeira experiência Cristã não contava com textos específicos. Pelos anos 50 d.C., Paulo produziria suas cartas para comunidades já visitadas por ele previamente, nas viagens missionárias. Essas comunidades estavam localizadas principalmente onde hoje estão Síria, Turquia e Grécia. Na Judéia, Pedro e os outros apóstolos lideravam outras comunidades, que não se distinguiam bem dos Judeus, pois tanto se reuniam nas Sinagogas quanto no Templo.


O incêndio de Roma em 64 d.C. e as medidas de Nero contra os Cristãos nos indicam que já havia muitas adesões ao novo credo mesmo na capital do Império. Após a Guerra dos Judeus (66-73 d.C.), os Cristãos e Judeus foram bastante dispersos das capitais.


Para Seus seguidores, a execução de Jesus deve ter sido muito traumática. Para lidar com isso, eles fizeram o que os Judeus já haviam feito durante séculos: se voltaram para as Escrituras em busca de uma resposta e encontraram bodes expiatórios. Entre essa tradição oral e a composição dos Evangelhos, no entanto, se passaram de 30 a 70 anos, dos textos de Marcos até o de João.


O que realmente aconteceu é bem difícil de descrever, historicamente. Os Cristãos foram perseguidos pelos Judeus e Romanos; Jerusalém, palco dos acontecimentos mais solidamente descritos nos Evangelhos, foi arrasada por catapultas e incendiada. Quase não restaram materiais escritos, nem as pessoas para contar. As linhagens de autoridades foram desfeitas e, no fim, quase tudo o que sobrou foram tradições orais copiadas e editadas no mundo Romano.


Os Cristãos, inicialmente um grupo dentro dos Judeus, passaram a receber Gregos e Romanos. Ao produzirem sua própria identidade, entre os sécs. 3 e 5 foram reunidos os diversos textos considerados "Cristãos". Esse período, chamado de Cristianismo Primitivo, viu os Cristãos adotarem obras muito diferentes como referência sobre Jesus. Algumas que já foram famosas, mas hoje são desconhecidas, são o Pastor de Hermas (séc. 1), Didache (séc. 1), Cânon de Marcião (séc. 2), Diatessarum (séc. 2) e Cânon Muratório (séc. 3). O desaparecimento dessas fontes (e sua substituição pelas atuais) não se deu sem que houvesse muita disputa, sobretudo quanto à autoridade para empreender a escolha sobre o que é inspirado por Deus e o que não é. Como exposto anteriormente, os Evangelhos hoje aceitos ainda se contradizem e divergem em muitos pontos.


Os Cristãos não apenas assumiram ter a interpretação correta das Escrituras Judaicas, mas também usaram o material dos Evangelhos para demonizar os Judeus, agora acusados ​​de matar Jesus. Este anti-semitismo ganhou proporções assustadoras durante a Idade Média, quando os Cristãos Romanos começaram a povoar antigas vilas dos Judeus na parte mais ao sul da Europa.


Em relação à teologia e espiritualidade, o sofrimento e a morte de Jesus tornaram-se o modelo para o sacrifício altruísta. Obviamente, esse comportamento tinha pouca aplicação quando associado com a Roma Imperial, em que a conversão ao Cristianismo se aliava com a submissão ao Império.


Ou seja, tudo era permitido para fazer os povos serem Cristãos, especialmente o (ab)uso da força. Conquistados e convertidos, os povos deveriam aderir a um pretendo pacifismo Cristão, ou seriam trucidados pelos "verdadeiros" Cristãos.


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ARTIGOS QUE ALGUM MESSIAS INDICOU


Denova R, Historical Problems in the Trial(s) & Crucifixion in the Gospels, www.ancient.eu, 04/nov/2020.



The Bible, 19/jan/2018, www.history.com.

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