domingo, 23 de julho de 2017

Sobre o ensino dos apóstolos

Reunião dos 12 apóstolos - Rússia, século 14

Esse texto faz parte de um material que aparece também em

A palavra Didache, Didaquê ou Didaqué significa literalmente “ensino”. Esse também é o nome de um dos livros mais antigos do Cristianismo. Faz muito tempo que quero escrever sobre essa e outras obras... No entanto, é um trabalho detalhista e demorado estudar cada uma. Após o texto, nas referências, há um link para quem se convenceu a ler esse pequeno e importante livro. Espero que gostem!

O livro “Ensino dos doze apóstolos”, “Ensino do Senhor para os gentios pelos doze apóstolos” ou simplesmente Didache representa uma das primeiras elaborações do Cristianismo. Diversos estudiosos pensam que seja uma obra contemporânea dos Evangelhos ou até anterior a eles. O livro assume-se Cristão desde o título e traz basicamente instruções a comunidades Cristãs. Assim como os livros do Novo Testamento (NT), ele não traz a mínima referência à destruição de Jerusalém em 70 d.C. sendo, portanto anterior a esse ano.

A organização dos Evangelhos só ocorreu no 2º século, com o vínculo com Jerusalém drasticamente cortado (pela destruição da cidade e pela perseguição aos Cristãos) e quando as comunidades iniciaram um movimento de compilação e colagem dos vários manuscritos atribuídos aos apóstolos. Antes disso, havia diversas comunidades Cristãs nas proximidades de Jerusalém, Síria, Grécia e Roma que eram visitadas ocasionalmente pelos apóstolos (incluindo Paulo) e formavam novos líderes itinerantes (como Barnabé e Silas). O ensino nas comunidades (e também o funcionamento delas) era organizado a partir de cartas longas trocadas entre elas, algumas das quais alcançaram o status de epístolas (pequenos livros), mas também através de conhecimentos visionários supostamente fornecidos pelo Espírito Santo ou pelo Cristo.

Um ponto importantíssimo quanto à Didache é que as instruções práticas/rituais encontradas ali não são tão claras na Bíblia, como se ela fosse um manual ou guia de consulta. Quase todos os detalhes da vida Cristã que ela apresenta tornaram-se a práticas padrão nas igrejas. Mesmo que a Didache tenha sido abandonada como material de ensino no século 4, seu conteúdo já havia sido absorvido em documentos e práticas litúrgicas.

Quando o Edito de Milão institucionalizou o Cristianismo em Roma (313 d.C.), as comunidades Cristãs haviam crescido regidas por textos muito variados. A instituição Igreja, então, começou um movimento de descobrir quais desses textos eram “válidos”, “reais” ou canônicos. A Didache era um dos textos que haviam orientado as comunidades dos 1º e 2º séculos, entretanto foi considerada incompatível com os textos canônicos, pois não se podia afirmar que a Didache fosse obra autoral de um dos apóstolos ou de alguém que conviveu com Jesus. De fato, como mostraremos a seguir, o texto indica que esse julgamento é verdadeiro. Desde o século 4, por esse motivo, a Didache desapareceu do ensino religioso.

Existem muitas dúvidas sobre a autoria da Didache. Desde que foi considerada inapropriada, a obra ficou relegada aos manuscritos contando a história da Igreja, sendo citada em partes por historiadores como Eusebius de Cesarea¹ e o antigo texto Doctrina apostolorum. Mas a Didache re-apareceu em 1883, traduzida pelo arcebispo Bryennios a partir de um manuscrito do séc. 11, contendo este e outros textos antigos. A sua origem provavelmente é Antioquia, na Síria, assim como o livro de Mateus. O texto não é assinado por alguém, mas leva o nome conhecido dos Doze. Como em bem poucos momentos desde a Ressurreição os Doze estiveram reunidos, acredita-se que o autor (ou os autores) na verdade usaram um nome conhecido para dar visibilidade à obra. Tal prática era comum na Antiguidade. Por outro lado, havia figuras célebres dentro da Igreja como Paulo, Barnabé, Silas, Pedro, João Marcos, etc a quem a Didache poderia ter sido atribuída. A referência simples aos Doze sugere que se trata de um texto forjado por uma ou mais comunidades Cristãs onde não havia um Profeta ou líder de influência. Tais autores provavelmente tiveram apenas um contato indireto com os Apóstolos. Esse na verdade foi o motivo para que a Didache não fosse aceita como parte dos livros bíblicos.

Um ponto interessante da Didache é a estrutura de evangelismo que ela revela. O NT aparentemente apresenta Paulo como o apóstolo dos Gentios (não judeus) e os Doze como apóstolos dos Judeus (Gálatas 2.9). Como pouco mais do que as epístolas de Paulo sobreviveram até a centralização da Igreja, a teologia Cristão assumiu esse modelo. Entretanto, as histórias dos Doze revelam que apenas alguns deles permaneceram entre os Judeus após a destruição de Jerusalém e início da perseguição aos Cristãos. Na Didache, de forma diferente, os Doze são patriarcas da Igreja enviados a todas as nações, o que talvez seja uma forma mais correta de ver o movimento Cristão nos séculos 1 e 2.

Boa parte do texto trata de como a Igreja deve receber os missionários, chamados de Profetas. Essa designação combina com o que é dito no texto, de que eles são “sumo sacerdotes” em contato direto com Deus. Em outras palavras, são visionários itinerantes. O texto recomenda que sejam mantidos pela Igreja por um número pequeno de dias e então exerçam algum ofício para conseguir seu sustento. Tal atitude protetiva quanto a verdadeiros e falsos profetas que desejavam se aproveitar da hospitalidade Cristã mostra que não deviam ser incomuns esses sujeitos. O próprio Paulo, um dos cabeças da Igreja, remete a esse trabalho dos mestres itinerantes:

Ali, encontrou um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, que havia chegado recentemente da Itália com Priscila, sua mulher, pois Cláudio² havia ordenado que todos os judeus saíssem de Roma. Paulo foi vê-los e, uma vez que tinham a mesma profissão, ficou morando e trabalhando com eles, pois eram fabricantes de tendas. (Atos 18.2,3)

O cap. 15 da Didache trata, por outro lado, da relação com bispos e diáconos. Por isso, a Didache é particularmente interessante: ela retrata a Igreja num momento em que a hierarquia centralizadora (que se fixaria em Roma, Antioquia e Alexandria) começava a existir, mas convivia com a direção descentralizada típica da Grécia. Nesse momento em especial, outras contradições eram conviventes, como a referência a um símbolo Judeu, a videira de Davi (Didache 9.3), que aparece em Isaías e no Apocalipse de João, e a referência a vários mandamentos do Deuteronômio. A importância desses elementos numa epístola destinada aos Gentios está em que, apesar da insistência de Paulo em separar os Cristãos dos Judeus, outros apóstolos (como Pedro) e líderes posteriores viam no Cristianismo uma forma de “judaizar” os Gentios.

A forma como essa “judaização” era feita seguia o modelo de Deuteronômio 30.15:

Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição. (Deuteronômio 30.15)

Na Didache, o dualismo vida/morte aparece como modos de vida e morte, bem no início do texto. Embora o “modo de vida” seja bem semelhante ao Sermão da Montanha (Mateus 5), não há indicação alguma de que essa instrução venha de Jesus. De fato, o mesmo tipo de dualismo aparece como “luz e trevas” nos manuscritos de Qumran (não Cristãos) e até com o mesmo nome – modos de vida e morte – na epístola de Barnabé e no Doctrina apostolorum. Uma vez que Lucas ordena tais mandamentos de forma diferente em sua pesquisa sobre a vida de Cristo, é bem possível que eles sejam na verdade parte de um texto (ou conjunto de textos) de ensino religioso no século 1 que ficou conhecido como “documento Q”. Há evidências da existência de tal documento pelo aparecimento de muitas partes que se encaixam em vários textos (a Didache é um deles), mas nenhum manuscrito completo que tenha sobrevivido até a atualidade.

Ainda com relação à inserção da Didache entre os livros canônicos, em Atos 19:1-5 Paulo encontra em Éfeso, por volta de 50 d.C., alguns discípulos de João Batista, que provavelmente se identificaram com o Cristianismo. É interessante que João Batista não parecia liderar um movimento como o que se seguiu a Jesus, mas Éfeso era distante o suficiente de Jerusalém para se pensar em como havia discípulos de João Batista por lá. Talvez praticassem uma espécie de Cristianismo primitivo, bem depois de João Batista e mesmo de Jesus. Tal situação é semelhante à fala de João apóstolo em Cafarnaum:

"Mestre", disse João, "vimos um homem expulsando demônios em teu nome e procuramos impedi-lo, porque ele não era um dos nossos." (Marcos 9.38, Lucas 9.49)

Repare que este que expulsava demônios em nome de Jesus nem ao menos era conhecido dos Doze. Talvez sequer tivesse tido um contato pessoal com Jesus. Muitos estudiosos sugerem que nos 1os séculos (como hoje também) existia um Cristianismo paralelo ou popular, bastante místico e rico em elementos judaicos, não centrado nos Doze ou qualquer personagem bíblico mais relevante. Se isso for verdade, a Didache pode ter surgido dessa fonte, assim como a Doctrina Apostolorum e talvez partes do livro de Mateus.

Algumas diferenças relevantes entre a Didache e o texto bíblico são quanto a esperar para saber a quem dar esmolas, cercar-se de pessoas (santos) que pensam da mesma maneira e o pão repartido sobre as montanhas, que foi reunido como a Igreja será. Além disso, os capítulos 8 e 9 são referentes à Eucaristia, que hoje se celebra como um ritual de purificação entre os Cristãos, lembrando as cenas da ceia com pão e vinho descritas em Marcos 14.22-26 e 1ª Coríntios 11.23-25. Essa ceia é bem diferente da descrita por João, o discípulo mais próximo de Jesus, contendo a carne e o sangue, e também Jesus lavando os pés dos discípulos. A Eucaristia da Didache, semelhante à ceia com pão e vinho, é descaradamente uma bênção antes e após a refeição existente no Judaísmo (sem nenhuma referência à morte e ressurreição de Jesus), o que novamente sugere um Cristianismo paralelo ou popular que foi misturado aos relatos dos apóstolos na composição dos livros canônicos.

Paulo fazia questão de separar os Cristãos dos Judeus, enfatizando que os preceitos do Judaísmo nada tinham a ganhar quanto ao ensino de Jesus. Ele chamava tais preceitos de “escravidão”.

Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão. (Gálatas 5.1)

A Didache, como um livro Cristão de forte influência judaica, por outro lado coloca a curiosa sentença:

Tenhais cuidado para que ninguém vos faca errar neste modo de Ensino, visto que é Deus que vos ensina. Pois se sois capazes de suportar o jugo do Senhor, sereis perfeitos; mas se não puderes fazer isto, façais o que sois capazes. (Didache 6.1-2)

Assim, ela mistura os preceitos divinos do Judaísmo com o ensino de Jesus (via Sermão da montanha), mas então, tendendo para o “jugo leve do Senhor” de Mateus 11:30, acrescenta que não é necessário ser estrito na observação de tais leis.

A VIDA CRISTÃ NA DIDACHE

Em seus estudos sobre os livros canônicos, Eusebius de Caesarea classificou a Didache como escritura espúria (não verdadeira). Outro estudioso do séc. 4, Methodius de Olympus considerou canônicos os 27 livros do NT atual, além do Apocalipse de Pedro, a epístola de Barnabé, a Didache e ainda o Sobre a Virgindade. Pouco depois, em 367 d.C., o bispo romano Athanasius apresentou os formatos atuais do VT e do NT. Ele agrupou os livros existentes em canônicos (os que são parte da Bíblia), rejeitados (aqueles que se averiguou serem falsos) e livros para serem proclamados, como por exemplo, instruções sobre o batismo. A Didache foi colocada nesta última categoria, com “os dois caminhos” sendo entendido como uma espécie de juramento ou contrato de batismo. De fato, na Didache, uma parte importante do texto é relativa aos preparativos para o batismo. Este deveria ser feito em água corrente (como o de João Batista), mas precedido de jejum tanto do batizador quanto do batizando. Sendo um batismo Cristão, entretanto, era feito para aqueles que jurassem quanto ao “modo de vida” e em nome do Pai, Filho e Espírito Santo.

Em seu brilhante artigo, Thomas O’Loughlin chamou a atenção para diversos elementos que deveriam estar em um livro Cristão – sobretudo para a época/local em que foi publicado - e estão ausentes da Didache. Primeiro, não há explicações doutrinárias, ao contrário das cartas de Paulo. Parece que a Didache foi escrita para leitores com um conhecimento certo do "evangelho" e de Jesus. Essa mesma certeza é aplicável aos batizandos, algo sem dúvida notável no meio do século 1 e entre uma população de Judeus, Gregos e Romanos. O batismo é até colocado como única condição para que tais pessoas participem da refeição Cristã e as bênçãos associadas com esta prática.

A vida em comum, os batismos, as refeições em grupo e as bênçãos antes/depois das refeições são destacadas na Didache como o centro da vida Cristã, ao invés de uma estrutura de cultos e reuniões sagradas eventuais. De fato, tais reuniões nem sequer são citadas.

Outro ponto importante é a relação entre os antigos e os novos na fé. A Didache cita a existência de mestres/profetas itinerantes, mas deixa claro que eles são recebidos e mantidos pelas comunidades quando ali estão, em geral por pouco tempo. Ou seja, tais mestres não são “os guias” das comunidades, como somos levados a pensar pela analogia com “o pastor de ovelhas” nas falas de Jesus. Os membros da comunidade Cristã da Didache não são ovelhas necessitadas de um mestre, ainda que os tenham como sumo-sacerdotes por um tempo. As comunidades da Didache se auto-organizam, batizam seus neófitos e, mais ainda, os colocam na mesmo posição dos mestres que os batizaram.

No livro de Mateus há uma idéia sugerida de que o discípulo jamais se iguala ao mestre:

O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo acima do seu senhor. (Mateus 10.24)

A Didache, por outro lado, não cita mestres além daqueles itinerantes – que são respeitados, mas não são membros da comunidade. Nem são eles quem fazem os batismos.

Nós Te agradecemos, Pai santo, por Teu santo nome porque fizeste um tabernáculo em nossos corações, e pelo conhecimento, fé e imortalidade, que modestamente nos tornou conhecidos através de Jesus, Teu Servo; a Ti seja para sempre a glória. (Didache 10.2)

O texto da Didache não era destinado a um grupo especializado de sacerdotes, mas para uso de todos os membros da nascente Igreja. Não pretendia ser "um documento de alto nível" explicando a fé ou pregando "o evangelho", mas com informações simples sobre a práxis cristã para que um indivíduo pudesse viver como discípulo dentro da comunidade. Esse membro comum poderia, com tal instrução, iniciar ele mesmo novos membros no grupo, mais ou menos como quando Filipe batizou o eunuco etíope a quem o Espírito o destinou (Atos 8).

Compartilhar um tempo comum é uma maneira fundamental de os seres humanos expressarem suas solidariedades. E se isso está ligado a estruturas de lembrança - como uma bênção em cada refeição - torna-se o meio pelo qual as pessoas absorvem a história da comunidade. Na Didache, dada sua simplicidade como livro ou epístola - é possível que a forma de o neófito aprender o que era fazer parte da igreja fosse literalmente através do tempo e eventos compartilhados. Isso coloca uma estrutura certamente diferente do que se desenvolveu no Cristianismo a partir do século 4 e após sua definição como elemento do Estado Romano.

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¹ Eusebius Pamphili foi bispo de Cesarea Maritima (norte de Israel) durante a publicação do Edito de Milão e ficou famoso por sua argumentação durante o processo de estruturação da Igreja como órgão do Estado romano.

² Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus, imperador de Roma de 41 a 64 d.C.

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LEITURA DE OUTROS TEMPOS

Didache - texto traduzido e numerado
Draper, J. A. (2006). The Apostolic Fathers: The Didache. The Expository Times, 117(5), 177-181.
O'Loughlin, T. (2011). The Missionary Strategy of the Didache. Transformation, 28(2), 77-92.

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