'O semeador', ou uma das telas com esse nome, de Vincent van Gogh
Esse texto faz parte de um material composto por
O Pastor de Hermas (PH) é um daqueles livros da antiguidade Cristã que está rodeado de mistérios. O primeiro deles é a data em que foi escrito: o autor é realmente um homem chamado Hermas, irmão de Pio, bispo de Roma entre 142 e 155 d.C. Mas, no texto, há uma referência para que seja entregue a Clemente, supostamente uma autoridade em Roma. E houve um Clemente, bispo de Roma por volta de 96 d.C. A teoria mais aceita é o livro que tenha sido composto em partes e depois reunido entre 96 e 150 d.C. Se isso for verdade, o Pastor de Hermas foi escrito logo após as cartas de Paulo.
Mas porque isso é importante? No começo da Era Cristã, tanto os Evangelhos quanto as cartas de Paulo, Pedro, etc eram textos que circulavam em separado, copiados a mão, passados de comunidade em comunidade como preciosidades. O PH fez parte dessas jóias da evangelização, por tanto tempo que causou grande alvoroço quando foi rejeitado como obra sagrada pela Igreja. Embora não tenha pontos teológicos fortemente disputados (como outros livros, a exemplo a Sabedoria e o livro de Tobias), o PH não se encaixa no critério para ser um livro sagrado. Ele não traz o relato de alguém que viu Jesus pessoalmente (se bem que João Marcos e Lucas, evangelistas, provavelmente também não O viram).
O segundo ponto misterioso é o conteúdo do livro. Ele traz mandamentos, parábolas e visões, assemelhando-se a uma versão particular do Novo Testamento (NT) sem os detalhes cronológicos dos evangelhos, os detalhes históricos do livro de Atos ou a discussão filosófico-teológica das cartas de Paulo. O PH são estórias, estranhamente encadeadas, de um autor que recebe ensinamentos Cristãos diretamente de anjos-pastores. Fica evidente, nele, a analogia com a figura do “bom pastor”, usada fartamente no NT, especialmente por Lucas e João.
O PH usa visões como as de João, no livro de Apocalipse. É através dessas visões que ele acompanha e conversa com os anjos-pastores. A estrutura explicativa da Parábola do Semeador é constante ao longo da obra, ainda que não haja uma transcrição dessa parábola. Aquele anjo que se intitula ‘anjo da Penitência’ acompanha Hermas boa parte do tempo, ensinando-o... precisamente os ensinamentos que estão nos evangelhos e nas cartas de Paulo! Mas não há a citação direta de personagens dos Evangelhos, do Velho Testamento (VT), transcrições dos evangelistas ou de Paulo, como se o PH fosse uma obra completamente independente.
O estilo em que o livro foi escrito é definitivamente Cristão¹ e romano. As estórias são repetitivas e detalhistas, com cenas rurais simples de explicação complicada. Esse estilo aparece de modo mais suave no Apocalipse e perduraria até o final da Idade Média, em obras como o Decameron (1350). Roma recebeu a visita de Paulo e foi sede do ministério de Pedro até sua morte, por isso impressiona que o PH possa ser uma obra Cristã independente. Por outro lado, quase todo o texto do PH reflete a Parábola do Semeador, encontrada nos livros de Mateus, Marcos e Lucas, mas com um papel maior no livro de Marcos, o mais antigo deles (66-70 d.C.). Mesmo a explicação
Para que, vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados. (Marcos 4.12)
que faz um paralelo de Isaías 6.9-10, é conservada e re-explicada em muitas partes ao longo do livro. Por exemplo, em suas visões, Hermas é a todo momento questionado: “Vês isso e não entendes?”
A obra enfatiza a Salvação obtida por meio de Penitência, isto é, pelo sofrimento produzido para expiação dos pecados. O próprio Hermas é castigado pelos pecados de seus filhos. Esse conceito é bem distinto dos evangelhos e das cartas de Paulo. Trata-se, na verdade, de um entendimento particular do NT: Jesus sofrendo para expiar os pecados humanos e os apóstolos vítimas da perseguição judaico-romana aos Cristãos tornam-se uma espécie de modelo de conduta. E os Cristãos foram, nos 1os anos da nova doutrina, direcionados a buscar o sofrimento para a Salvação de si e dos outros.
Mas a teologia ensinada pelo PH tem outras nuances. Logo no início do livro, vemos:
Cap 6. 5O Senhor jurou por sua glória e respeito de seus eleitos: se depois deste dia, fixado como limite, ainda se cometer um só pecado, eles não obterão a salvação, pois a penitência para os justos tem limite. Terminaram os dias de penitência para todos os santos. Contudo para os pagãos, a penitência pode ser feita até o último dia.
Em outras palavras, Hermas introduz sua obra como um divisor de eras mais importante até do que o ministério de Cristo. Após ela, os Cristãos não deveriam pecar jamais, pois teriam sido informados de todos os pormenores necessários à Salvação. Trata-se de um entendimento tão radical quanto a anunciação do Quran a Maomé, que justificaria até os Cristãos se ofenderem com alguém que não conhece o PH.
Uma curiosa referência aos judeus é feita numa pequena passagem:
Cap 7. 'Dize a Máximo: Eis que chega a tribulação. Se te parece bem, renega de novo. O Senhor está próximo daqueles que fazem penitência, como está escrito no livro de Eldad e Medad, que profetizaram para o povo no deserto.
Não se sabe porque Hermas introduziu essa passagem. Eldad e Medad são homens da Israel liderada por Moisés durante a peregrinação pelo deserto. Eles foram abençoados como profetas que estavam fora do acampamento quando Moisés pediu tal dom a Deus. Um manuscrito do séc. 11 atesta que os versos 35 e 36 de Números 10 não são obra de Moisés, mas de Eldad e Medad. Nos manuscritos Masoretas, as marcas laterais indicam que tais versos foram adicionados depois. E vários escritos antigos levam a crer que existiu um livro de Eldad e Medad. Tal livro foi dado como apócrifo pelos judeus e desapareceu ainda na antiguidade, mas Hermas parece ter tido contato com ele, o que torna a composição do PH ainda mais misteriosa. Seria o mais canônico dos livros gnósticos²?
Outra referência curiosa de Hermas é o cereal “espelta” (cap 12), um trigo avermelhado e doce que foi cultivado na Europa até a Idade Média. Desde então, ninguém mais citou tal cereal.
Hermas faz mais uma referência ao VT quando transcreve o jejum de Isaías 58, que aparece repartido em dois trechos:
Cap 54. "Senhor, estou jejuando." "Escuta. 4Deus não deseja esse jejum vazio. Com efeito, jejuando desse modo para Deus, não farás nada para a justiça. Jejua do seguinte modo: 5Não faças nada de mau em tua vida e serve ao Senhor de coração puro; observa seus mandamentos, andando conforme seus preceitos, e que nenhum desejo mau entre em teu coração, e crê em Deus. Se fizeres isso e o temeres, abstendo-te de toda obra má, viverás em Deus. Se cumprires essas coisas, farás um jejum grande e agradável ao Senhor." … Cap 56. 5Eis como observarás o jejum que queres praticar: 6Antes de tudo, guarda-te de toda palavra má, de todo desejo mau, e purifica teu coração de todas as coisas vãs deste mundo. Se observares isso, teu jejum será perfeito. 7E jejuarás do seguinte modo: depois de cumprir o que foi escrito, no dia em que jejuares, não tomarás nada, a não ser pão e água. Calcularás o preço dos alimentos que poderias comer nesse dia e o porás à parte para dar a uma viúva, a um órfão ou necessitado e, desse modo, te tornarás humilde. Graças a essa humildade, quem tiver recebido ficará saciado e rogará ao Senhor por ti.
VISÕES
Uma das primeiras visões de Hermas se refere a uma mulher que lhe apresenta a Grande Torre, símbolo da Igreja, erguida com pedras tiradas de dentro de um rio e depois da terra. Noutro ponto do livro, as pedras – que representam as pessoas salvas – são tiradas de um abismo, de uma planície e também de montanhas. Todos são representações de grupos de pessoas, através de uma elaborada explicação, semelhante à Parábola do Semeador.
Cap 10. 4Não estás vendo diante de ti uma grande torre que está sendo construída sobre as águas, com pedras quadradas e brilhantes? 5Com efeito, ela estava sendo construída em forma quadrada pelos seis jovens que tinham vindo com ela. Outros milhares e milhares de homens carregavam as pedras, uns do fundo da água, outros da terra, e as entregavam aos seis jovens, que as recebiam e construíam.
Quando a Torre estivesse pronta, chegaria o dia do Juízo Final.
Cap 13. As pedras quadradas e brancas, que se ajustam bem entre si, são os apóstolos, os bispos, os doutores e os diáconos ... Estes são os que estiveram sempre de mútuo acordo, conservaram a paz entre si e se ouviram reciprocamente. É por isso que na construção da torre suas junturas se ajustavam bem.
A hierarquia da Igreja é apontada como possuindo o tipo de pessoa mais adaptada à Igreja. Para Hermas, a participação na organização religiosa é a forma mais segura de obter a Salvação. Tal conceito deriva da reverência aos fundadores e foi criado dentro do Catolicismo romano (não está presente no NT). Ele foi responsável por uma incrível filiação de pessoas aos monastérios durante a Idade Média, na Europa. Com o enchimento dos monastérios, apenas os pertencentes a famílias ricas e poderosas passaram a ter direito à filiação religiosa e, em outras palavras, à Salvação. Isso sem dúvida foi uma inversão surpreendente da rejeição de Jesus aos mestres judeus e suas regalias! Mais recentemente, até no séc. 19, era prática que os membros de famílias poderosas fossem enterrados não menos do que dentro das igrejas Católicas. Mas, ainda, estamos no séc. 2 e, como dizia Jesus, os ricos não eram dignos da Igreja.
Cap 15. 7Aprende contigo mesmo: enquanto eras rico, eras inútil; agora, porém, és útil e frutuoso para a vida. Tornai-vos úteis para Deus! Tu mesmo foste uma dessas pedras.
Uma das expressões usadas no mesmo cap. 15 é “dureza de seus corações”, expressão típica do livro de Marcos e das cartas de Paulo. João Marcos, o evangelista, foi um seguidor de Paulo aceito no grupo pela intervenção de Barnabé, com quem viajou de Antioquia para Chipre (Atos 15.36-40). Dentro do mundo romano, Hermas pode ter adquirido essa expressão tanto de Marcos quanto de Paulo, sendo parente de um dos primeiros bispos romanos.
Outra particularidade do PH é colocar repetitivamente os negócios e ocupações mundanas como agentes de um afastamento entre as pessoas e Deus. Novamente, ele evoca a Parábola do Semeador.
Cap 19. Da mesma forma, enfraquecidos pelos negócios do mundo, vos tendes deixado levar pelo abatimento e não entregastes ao Senhor as vossas preocupações.
A 2ª visão de Hermas é o encontro com uma enorme fera. Não há descrições precisas, mas de um animal multi-colorido, no qual, claro, cada cor representa algo.
Cap 22. Mas ela aumentava cada vez mais e eu suspeitei que fosse algo divino. Nesse momento, o sol brilhou um pouco, e então pude ver uma fera enorme, parecida com a baleia. E da sua boca saíam gafanhotos de fogo.
Hermas escapa da fera simplesmente por “entregar sua preocupação a Deus”, mediante a intervenção do anjo Tegri, senhor das feras selvagens. O nome “Tegri” é até hoje um mistério, mas dada a semelhança entre as visões de Hermas e as passagens de Daniel, é possível que o autor tivesse algum contato com os textos hebraicos. Além disso, a palavra aramaica usada para o verbo de “fechou a boca dos leões” em Daniel 6.22 é Sgr ou Segri, que poderia, por uma mudança de pronúncia, se transformar em Tegri. Dessa forma, o anjo de Hermas seria o mesmo anjo de Daniel, desvelando novamente um conhecimento do VT pelo autor do livro.
Noutra visão, Hermas presencia uma grande árvore, de onde um grande anjo cortava ramos e os entregava aos homens.
Cap 67. 1Ele me mostrou um grande salgueiro, que cobria planícies e montanhas, e ao abrigo do salgueiro tinham-se recolhido todos os que são chamados pelo nome do Senhor. ... Cap 69. 2Ele me respondeu: "Escuta. Essa grande árvore que cobre planícies, montanhas e toda a terra, é a lei de Deus dada ao mundo inteiro, e essa lei é o Filho de Deus anunciado até os confins da terra. Os povos que se encontram debaixo da árvore são aqueles que ouviram o anúncio e creram. 3O anjo grande e glorioso é Miguel, que tem o poder sobre esse povo e o governa. É ele que dá a lei e grava no coração daqueles que crêem.
O anjo então recolhia os ramos de volta e, dependendo do estado em que voltavam, distribuía penitências aos que receberam tais ramos. Havia desde os que voltavam com frutos até aqueles que voltavam secos e fendidos. E temos, mais uma vez, uma semelhança da Parábola do Semeador, onde aparece o nome do anjo Miguel.
Miguel é uma figura do livro de Daniel (Daniel 10.21), do livro de Judas (Judas 1.9) e do Apocalipse (Apocalipse 12.7), tido como protetor de Israel e um dos espíritos que andam junto de Deus (Miguel, Gabriel, Rafael e Uriel, segundo o livro de Enoque). Também foi uma figura bastante reverenciada na Idade Média, sugerindo que algo da tradição mística judaica foi absorvida pelo Cristianismo de Roma Ocidental e repassada com sucesso às comunidades Cristãs na Europa. O PH possivelmente foi uma ferramenta desse processo, deixando claro que Hermas absorveu (de forma simples, talvez por tradição oral) elementos de textos judaicos importantes como Daniel e Isaías.
Noutra visão, Hermas visita a terra de Arcádia, na Grécia, uma grande ilha ligada ao continente pela passagem de Corinto. As grandes planícies de Arcádia (planícies não são comuns na Grécia!) renderam ao lugar uma imagem de terra fértil, onde habitavam pastores. Na mitologia grega, Arcádia é o lar de Pan, o deus-bode senhor dos sátiros. Mesmo na Roma Ocidental antiga, essa imagem de Arcádia como uma terra antiga, fértil, sagrada e pacífica já existia no imaginário popular.
Cap 78. 4Então me transportou para a Arcádia, sobre um monte de forma cônica. Fez-me sentar no topo da montanha, e me mostrou uma grande planície e, ao redor da planície, outras doze montanhas, cada uma com aspecto diferente. 5A primeira era negra como fuligem; a segunda, seca e sem vegetação; a terceira, cheia de espinhos e cardos; ... A décima segunda montanha era inteiramente branca; seu aspecto era muito exuberante, e a montanha em si mesma era belíssima. ... Cap 79. 1 No meio da planície, ele me mostrou uma grande rocha branca que se erguia da planície. Era mais alta que as montanhas, e quadrada, de modo a conter o mundo inteiro. 2A rocha era antiga, e havia nela uma porta escavada, que parecia ter sido escavada recentemente. Resplandecia mais do que o sol, e eu me maravilhava com tal esplendor.
Arcádia, em outras palavras, era o local da torre de Hermas. É muito significativo que ele não a tenha colocado em locais bíblicos como Jerusalém, Nazaré, Éfeso, Corinto (ok, Arcádia é vizinha de Corinto), etc. Um leitor dos textos bíblicos facilmente colocaria o centro do mundo num desses locais, como Jerusalém era tida por centro-do-mundo na Idade Média. Hermas preferiu uma localização mais místico-imaginária, denunciando que a obra tem um fundo de 1º contato com o Cristianismo, ou de uma obra Cristã para ser lida por não Cristãos.
MANDAMENTOS
Assim como um substituto aos textos bíblicos, o PH traz tanto Mandamentos quanto Parábolas. Supõe-se, assim, que desde o início o livro foi tratado como uma obra didática de evangelismo.
LISTAS
Um formato de apresentar virtudes e defeitos humanos aparece na famosa lista de Paulo contrastando os frutos do Espírito e as obras da carne (Gálatas 5.19-23), assim como em outras obras Cristãs. Esse formato com uma lista de aspectos positivos emparelhada a uma lista de aspectos negativos é bastante usada no PH:
Os frutos da Cólera, são amargura, ocupações, estultícia, leviandade, estupidez, irritação; furor, ressentimentos. Os frutos da Paciência são força poderosa e sólida, alegria, despreocupação, glória ao Senhor, doçura e calma (Hermas 34.1-7);
Os frutos da Justiça são delicadeza, modéstia, doçura, suavidade, castidade, santidade temperança. Os frutos do Mal são cólera, amargor, insensatez, desejos de atividade, gastos loucos, bebidas inebriantes, orgias, requintes variados e supérfluos, paixões pelas mulheres, grande riqueza, orgulho e altivez (Hermas 36.1-10);
Os males de que nos abster são adultério, fornicação, excesso na bebida, prazer depravado, comer em demasia, luxo da riqueza, ostentação, orgulho, altivez, mentira, maledicência, hipocrisia, rancor, blasfêmias, roubo, mentira, fraude, falso testemunho, avareza, desejos maus, engano, vanglória, arrogância e outros vícios semelhantes. As boas ações são fé, temor do Senhor, caridade, concórdia, palavras justas, verdade, perseverança, assistir às viúvas, visitar os órfãos e necessitados, resgatar da escravidão os servos de Deus, ser hospitaleiro, não criar obstáculos para ninguém, ser calmo, inferior a todos, honrar os anciãos, praticar a justiça, conservar a fraternidade, suportar a violência, ser paciente, não nutrir rancor, consolar os aflitos na alma, não afastar da fé os escandalizados, mas convertê-los e dar-lhes coragem, corrigir os pecadores, não oprimir os devedores e necessitados, e outras ações semelhantes (Hermas 38.3-10);
Eu pedi: "Senhor, dize-me o nome das virgens e das mulheres trajadas de preto." Ele respondeu: "Escuta o nome das virgens mais fortes, que estão nos ângulos (da porta). A primeira é a Fé; a segunda, a Temperança; a terceira, a Força; a quarta, a Paciência. As outras, colocadas entre as primeiras, chamam-se: Simplicidade, Inocência, Castidade, Alegria, Verdade, Inteligência, Concórdia, Caridade. Aquele que leva esses nomes e também o nome do Filho de Deus, poderá entrar no Reino de Deus. Escuta também os nomes das mulheres trajadas de preto. Quatro delas são mais fortes: a primeira é a Incredulidade; a segunda, Intemperança; a terceira, Desobediência; a quarta, Engano. As que se seguem chamam-se: Tristeza, Maldade, Dissolução, Cólera, Falsidade, Insensatez, Maledicência e Ódio. O servo de Deus que leva esses nomes verá o Reino de Deus, mas nele não entrará." (Hermas 92.1-3)
É provável que tanto Paulo quanto Hermas tenham se apropriado desse estilo ítem-a-ítem, como a lei mosaica, do tipo “faça isso”, “não faça aquilo”. No caso de Paulo e sua comunidade da Galácia (descendentes de gauleses, celtas e gregos), tal listagem era uma metodologia quase militar de conversão. Para os pregadores como Hermas, parecia ser também uma forma didática de ensinar sobre o Cristianismo aos romanos, como numa espécie de fábula com heróis e vilões.
ESTRUTURA DO TEXTO
Algumas passagens do PH são especialmente significativas na condução da sua narrativa. Elas introduzem idéias que são muito mais aceitas como teologia hoje, muito após o contato com o Islã e a Reforma Protestante do que no 2º século. Talvez muitas delas pareçam surpreendentemente atuais.
O arrependimento é valioso
Cap 30. Não te parece que o fato de se arrepender é em si mesmo inteligência? O arrependimento é ato de grande inteligência. Com efeito, o pecador compreende que fez o mal diante do Senhor, e que o ato que ele cometeu entra no coração, então se arrepende e não pratica mais o mal. Ao contrário, ele se empenha com todo o zelo a praticar o bem, humilha e experimenta a sua alma, pois ela pecou.
Deus castiga, mas acaba concedendo o perdão
Cap 39. 3De fato, Deus não é como os homens rancorosos; ele não conhece o rancor e tem compaixão de sua criatura. ... E se alguma vez pedires alguma coisa ao Senhor e ele tardar em concedê-la, não duvides porque não obtiveste logo o pedido da tua alma; certamente, tardas a receber o que pediste, por causa de alguma provação ou de algum pecado que ignoras.
Hermas até conhece o anjo do Castigo, que trata as pessoas distantes de Deus com prejuízos, indigência, doenças, insegurança, injúrias por pessoas indignas e calamidades (Hermas 63)
Sem cuidados religiosos, a alma se afasta de Deus
Cap 40. As vinhas, antes belas, por falta de cuidados, secam por causa dos espinhos e ervas daninhas de todo tipo. (novamente, uma imagem da Parábola do Semeador)
A tristeza sinaliza um afastamento de Deus
Cap 42. 2O homem triste pratica sempre o mal ... Com efeito, a oração do homem triste jamais tem a força de subir ao altar de Deus ... O vinho misturado com vinagre não tem o mesmo sabor. Igualmente acontece com a tristeza: misturada com o Espírito Santo, não conserva a própria oração.
O mal/diabo atinge aqueles que se afastaram de Deus
Cap 48. 3Quando um homem enche de bom vinho recipientes apropriados e entre estes deixa alguns semi-cheios, ao voltar para os recipientes ele não se preocupa com os que estão cheios, pois sabe que estão cheios; observa, sim, os que estão semi-cheios, temendo que tenham azedado, e o vinho perca o sabor. 4O mesmo acontece com o diabo: Ele vai e tenta todos os servos de Deus. Os que estão cheios de fé lhe resistem fortemente, e o diabo se afasta deles, pois não encontra por onde entrar. Então, ele vai até os que estão semi-cheios e, encontrando lugar, entra neles, faz o que quer, tornando-os seus escravos.
Todo prazer é insensato e vazio para os servos de Deus
O cap 45 traz precisamente essa frase. Reparemos a semelhança com a obra de Santo Agostinho³.
O favor de Deus é merecido
Cap 46. Escuta. Pratica a justiça e a virtude, a verdade e o temor do Senhor, a fé, a mansidão e todas as coisas boas semelhantes a essas. Praticando essas coisas, serás servo agradável de Deus e viverás nele. Todo aquele que servir ao desejo bom viverá em Deus.
Os ricos e os pobres têm funções distintas para Deus
Cap 50. 9De fato, o Senhor vos enriqueceu, para que presteis a ele tais serviços.
Cap 51. Escuta. O rico tem muitos bens, mas aos olhos do Senhor ele é pobre, porque se distrai com suas riquezas. A oração e a confissão ao Senhor não lhe são importantes e, se ele as faz, são breves, fracas e sem nenhum poder. Contudo, se o rico se volta para o pobre e atende às suas necessidades, crendo que o bem que ele fez ao pobre poderá encontrar sua retribuição junto a Deus (porque o pobre é rico por sua oração e confissão, e sua oração tem grande poder junto de Deus), então o rico atende sem hesitação às necessidades do pobre. 6Assim, o pobre, socorrido pelo rico, reza por ele e agradece a Deus pelo seu benfeitor; este, por sua vez, redobra o zelo para com o pobre, para que não lhe falte nada na vida, pois sabe que a oração do pobre é bem acolhida e rica junto a Deus.
Os justos e os pecadores serão distinguidos no outro mundo
Cap 52. Porque os justos e os pecadores não se distinguem neste mundo, mas são semelhantes. De fato, para os justos este mundo é inverno, e eles não se distinguem, pois nele habitam juntamente com os pecadores.
Cap 53. 3No verão, os frutos de cada árvore aparecem e se pode saber de que espécie são.
O fim está próximo
Nos sécs. 1 e 2, principalmente, a literatura Cristã era bastante voltada à anunciação de que Jesus retornaria em pouco tempo, para o Juízo da humanidade. No PH, essa visão é discreta, mas presente:
Cap 89. 2O Filho de Deus nasceu antes de toda a Criação, embora ele tenha sido o conselheiro de seu Pai para a Criação. … 3Ele respondeu: "Porque Ele se manifestou nos últimos dias da consumação. A porta foi feita recentemente, para que os que devem salvar-se entrem por ela no Reino de Deus."
Filhinhos, é já a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também agora muitos se têm feito anticristos, por onde conhecemos que é já a última hora. (1ª João 2.18)
O Cristianismo foi ensinado aos mortos
Desde o início do Cristianismo, surgiu um problema teológico: “Se a Salvação vem através de Jesus, o que aconteceu aos que viveram antes Dele?” A resposta que surgiu então, ainda susceptível de várias interpretações, era de que Jesus desceu ao Hades (mundo dos mortos, na tradição greco-romana) e resgatou de lá os espíritos dos que haviam morrido antes Dele.
Cap 93. 5Eu perguntei: "Senhor, por que as quarenta pedras também sobem com eles do abismo, visto que estas já haviam recebido o selo?" Ele respondeu". "Porque esses apóstolos e doutores que anunciaram o nome do Filho de Deus, adormecidos no poder e na fé do Filho de Deus, o anunciaram também àqueles que tinham morrido antes deles, e lhes deram o selo do anúncio. 6Desceram com eles à água e novamente subiram. Contudo, desceram vivos e subiram vivos, enquanto os que estavam mortos antes deles desceram mortos e subiram vivos. E graças a eles que estes últimos receberam o nome do Filho de Deus.
Pois também Cristo sofreu pelos pecados uma vez por todas, o justo pelos injustos, para conduzir-nos a Deus. Ele foi morto no corpo, mas vivificado pelo Espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão que há muito tempo desobedeceram, quando Deus esperava pacientemente nos dias de Noé, enquanto a arca era construída (1ª Pedro 3.18-20) … Por isso mesmo o evangelho foi pregado também a mortos, para que eles, mesmo julgados no corpo segundo os homens, vivam pelo Espírito segundo Deus. (1ª Pedro 4.6)
Tanto a passagem de Pedro como a de Hermas falam do resgate de espíritos antigos. Hermas parece limitar o número dos salvos a 40, mas era um uso linguístico do Oriente Médio chamar “muitos” de 40, como dizemos hoje “já falei mais de 1000 vezes”. Quando Hermas usa essa 'prosódia' em Roma, sabemos que ele foi influenciado pelo linguajar do Oriente Médio. Pedro e Paulo em Roma foram instrumentos dessa influência!
Segundo Hermas, os próprios patriarcas, apóstolos e doutores do Cristianismo foram ao Hades resgatar os mortos pré-Cristo. Trata-se de algo bem diferente da carta de Pedro, mostrando que não havia um consenso nesse assunto (ainda hoje não há), além de destacar que O PH e as cartas de Pedro não absorveram materiais um do outro.
Os inocentes são herdeiros do reino de Deus
Cap 106. 1Os fiéis que vieram da décima segunda montanha, a branca, são os seguintes: são como crianças pequeninas, em cujo coração não entra maldade nenhuma. Eles nem sequer sabem o que é o mal, e sempre permaneceram na inocência. 2Tais homens certamente habitarão no Reino de Deus, pois em nada violaram os mandamentos de Deus, mas perseveraram todos os dias de sua vida na inocência e no mesmo sentimento. 3Todos vós que assim perseverardes e fordes sem malícia, como crianças pequenas, sereis mais gloriosos do que todos os anteriores. Com efeito, todas as crianças são gloriosas diante de Deus e os primeiras diante dele.
Essa fala aparece no Sermão da Montanha de Mateus, no Sermão da Planície de Lucas e noutras falas de Jesus. A idéia é muito bem sintetizada por Hermas nesse trecho acima, mas vai prontamente em contrário de um “pecado original”. Como se houvesse aqueles ‘naturalmente herdeiros’, que,não precisam ser modificados por Cristo.
CONCLUSÃO
Desde a época de Titus Flavius Clemens, ou Clemente bispo de Alexandria (150 – 215 d.C. - não confundir com Clemente bispo de Roma, citado por Hermas) houve uma crescente resistência das hierarquias Cristãs em aceitar o PH como livro inspirado por Deus. A principal crítica foi justamente quanto às visões de Hermas, que fomentavam algo do Gnosticismo. Apenas as visões do Apocalipse de João foram aceitas como inspiradas, talvez por sua semelhança com Daniel.
Embora o PH pareça uma obra independente, desvinculada do Velho e do Novo Testamentos, nalguns pontos ele transparece o contato com conhecimentos judeus e, provavelmente, o texto de Marcos. Sabemos que Hermas era alguém instruído no Cristianismo, numa transição entre o paganismo greco-romano e a nova doutrina.
A história nos conta como o PH foi importante na Europa romana. Há relatos de largo uso dele como instrumento de evangelização, até o séc. 4 d.C., quando a própria Roma começou a desmoronar. O PH não foi conhecido ou difundido pelo Cristianismo oriental, baseado em Alexandria e Constantinopla. Muitos conceitos do PH foram combatidos e discutidos dentro da Igreja por séculos. Por fim, diversos deles foram resgatados (não necessariamente a partir do PH) a partir do séc. 16 dentro de algumas subdivisões do Protestantismo.
Embora o PH pareça uma obra independente, desvinculada do Velho e do Novo Testamentos, nalguns pontos ele transparece o contato com conhecimentos judeus e, provavelmente, o texto de Marcos. Sabemos que Hermas era alguém instruído no Cristianismo, numa transição entre o paganismo greco-romano e a nova doutrina.
A história nos conta como o PH foi importante na Europa romana. Há relatos de largo uso dele como instrumento de evangelização, até o séc. 4 d.C., quando a própria Roma começou a desmoronar. O PH não foi conhecido ou difundido pelo Cristianismo oriental, baseado em Alexandria e Constantinopla. Muitos conceitos do PH foram combatidos e discutidos dentro da Igreja por séculos. Por fim, diversos deles foram resgatados (não necessariamente a partir do PH) a partir do séc. 16 dentro de algumas subdivisões do Protestantismo.
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¹ Não é simples definir uma obra como Cristã. O Cristianismo tem muitas vertentes e mudou muito ao longo dos séculos. O conceito que estou usando aqui é de uma obra que se referencie a Jesus como divino e Senhor (as obras islâmicas e judaicas são diferentes quanto a isso, quando falam de Jesus) e que seja coerente com a filosofia Cristã de alguma época. Assim, obras que falem de Jesus como profeta, mago ou entidade metafísica não seriam chamadas de Cristãs, assim como aquelas apresentando uma teologia única, que ninguém mais replicou.
² Os Gnósticos eram, originalmente, um secto dos judeus. Mas foram/são um grupo de teologia fluida, cujos preceitos são continuamente revelados por Deus na forma de visões. Por isso, não faltam escritos Gnósticos que sejam “Cristãos”. O material literário dos Gnósticos inclui inserções de muitas culturas e revelações que aparentemente não se encaixam, cuja busca de um significado é o cerne do gnosticismo.
³ Aurelius Augustinus Hipponensis (354-430 d.C.), chamado também de Santo Agostinho, foi um dos maiores teólogos de todos os tempos. Sua obra “Confissões” marcou a história do Cristianismo ao unir os conceitos de Platão sobre “mundo terreno” e “mundo ideal” com a perspectiva Cristã de “mundo terreno” e “mundo espiritual”. Assim, o corpo e todas as suas necessidades se tornaram antíteses do espírito e tudo que existe de divino. Mesmo a fome, a sede, o desejo sexual se mostraram fontes de pecado para Agostinho. E o prazer, em especial, seria o maior de todos os pecados, tentando os homens desde seu nascimento até a morte. Somente a racionalidade fria, planejada, voltada à Igreja era uma forma correta de se viver. Agostinho foi terrivelmente influente sobre a mentalidade da Europa Medieval, introduzindo muitos conceitos Cristãos que vemos em uso até hoje.
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PERGAMINHOS MAIS VELHOS QUE PAPIRO
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Gospel of Mark - wikipedia
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Michael - biblehub.com
Streett DR, Thegri, the angelic beastmaster - a mystery in the Shepherd of Hermas, danielstreett.com, 2011.
Wilford JN, Archaeologists find celts in unlikely spot: turkey, New York Times, 2001.
Muito bom esse estudo, uma visão diferente do ponto bíblico.
ResponderExcluirMuito curioso acredito ser verdade
ResponderExcluirPerfeito. Pra mim um dos livros covardemente retirados do Canon. E que irá condenar muitos expertos. principalmente em relação ao divórcio
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