segunda-feira, 21 de maio de 2018

A invisibilidade Cristã

Imagem da cúpula da catedral Hagia Sophia, em Istambul (antiga Constantinopla), datada do séc. 4 d.C.

Emendei aqui 2 artigos muito relevantes de Douglas Boin, professor de história greco-romana na Saint Louis University, que foram publicados na Biblicalarchaeology.org

Estamos sempre correndo atrás do próximo artefato Cristão: caixas de ossos, manuscritos codificados com mensagens secretas, fragmentos de papiros menores que os recibos que enfiamos em nossos bolsos. Eles prometem respostas para as muitas perguntas que a Bíblia deixa. Se olharmos melhor, se cavarmos mais, um dia encontraremos Aquela evidência do tempo de Jesus e seus seguidores. Para muitos, essa é uma missão arqueológica urgente, com profundas implicações para a história da fé.

Por quase 200 anos após a crucificação, as cidades romanas foram totalmente desprovidas de qualquer vestígio dos cristãos primitivos. Até hoje, ninguém encontrou um objeto indubitavelmente conectado a eles. Como arqueólogo e historiador, acho que é hora de começarmos a levar esse silêncio a sério e parar de tentar preenchê-lo com mais "descobertas" sensacionais. Os seguidores de Jesus dos primeiros 3 séculos da nossa Era não queriam ser encontrados.

Não é isso que vem à mente quando pensamos nos 1os Cristãos, mas a evidência é insuperável. Por 400 anos, não houve sequer um presépio toda Roma. Não havia crucifixos em casas ou escolas. Não havia nem Bíblias nos bancos das igrejas. Na verdade, nem sabemos como eram as "igrejas", até meados do 3º século. Para uma comunidade que viria a lembrar sua história como perseguições cruéis, respondida com atos de martírio, esse silêncio arqueológico representa um problemão. Sabemos sobre eles, mas não vemos suas pegadas. Onde andaram os 1os Cristãos?

Há duas suposições famosas para explicar o silêncio. A primeira é que o 2º Mandamento de Moisés proibia os seguidores de Jesus de fazerem qualquer coisa artística. A segunda é que os Cristãos eram muito pobres para deixar artefatos duráveis. Mas novas pesquisas arqueológicas e históricas sugerem que nenhuma dessas explicações é correta.

"Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra.” (Êxodo 20.4, Deuteronômio 5.8)

Trabalhos recentes sobre a cultura material judaica ao final do período do Segundo Templo lançaram uma nova luz sobre este tópico. No centro do quadro está Alexandre, o Grande, conquistando o mundo aos 20 anos. Ele mudou o leste do Mediterrâneo Oriental a partir do séc. 3 a.C. e impactou o que seriam as culturas judaica e Cristã. As dinastias Selêucida (na Turquia, Síria, Jordânia, Israel, Palestina, Líbano e Chipre) e Ptolomai (no Egito) difundiram a arte grega para todo Mediterrâneo, especialmente no Oriente.

Uma visita a duas cidades histórias deixa isso claro. Na cidade de Marisa helenística (hoje conhecida como Maresha, perto de Belém), os arqueólogos encontraram túmulos com pinturas de animais e paisagens semelhantes a Vergina, na Grécia, um local importante para os reis da Macedônia. Os animais retratados em Maresha podem até ter sido inspirados por um famoso zoológico grego, organizado pelos Ptolomai em Alexandria. As pinturas de Maresha foram datadas dos sécs. 3 e 2 a.C.

Em Jerusalém não houve menos intercâmbio cultural. Pinturas de navios e âncoras aparecem em muitos túmulos de Jerusalém datados da época de Jesus. Algumas tumbas monumentais construídas no Vale do Cedron, à sombra do Segundo Templo, incorporam colunas e pirâmides de pedra populares no mundo grego, como a tumba dos filhos de Hezir¹ (séc. 2 a.C.) e a Tumba de Absalão² (século 1 d.C.). Em outras palavras, o 2º Mandamento não impediu que os judeus fizessem imagens; porque deveríamos pensar que os Cristãos - parte judeus e parte gentios - também se sentissem ceifados em suas artes?

Não levem nem ouro, nem prata, nem cobre em seus cintos; não levem nenhum saco de viagem, nem túnica extra, nem sandálias, nem bordão; pois o trabalhador é digno do seu sustento. (Mateus 10.9,10)

Na busca por artefatos do início do Cristianismo, os historiadores e arqueólogos poloneses estão atônitos com notícias de um Evangelho de Marcos do séc. 1 d.C. Se for verdade (e sejamos francos, ninguém tem certeza ainda), permitirá aos crentes contemplarem as primeiras palavras já escritas do Novo Testamento. O texto também pode confirmar uma verdade inconveniente que os historiadores vêm pregando há décadas: os seguidores de Jesus eram muito mais ricos e instruídos do que nos ensinaram. E isso pode até iluminar a luta através da qual os Cristãos terminaram por conquistar seus direitos na Roma do séc. 3 d.C.

Embora a missão da Igreja para com os pobres e marginalizados possa ser uma posturas admirável ​​do Cristianismo atual, não se pode dizer todos os seguidores de Jesus faziam parte dos menos favorecidos. Paulo, um seguidor ardente que ficou famoso em todo mar Egeu, foi o 1º a nos fornecer informações de dentro do grupo. Ele próprio era um fariseu-romano de alta classe, e nunca disse que sua fortuna simplesmente desapareceu. Fazer as muitas viagens que ele relata (e que iniciaram a proliferação dos Cristianismo entre os gentios) não era algo acessível à maioria dos homens. Ler, escrever e o equipamento necessário (tinta, pena, pergaminhos) também eram recursos greco-romanos bem caros. Possuir isso abria portas; Paulo certamente estava entre os 10% mais ricos da sociedade. No final do séc.1 d.C. - época em que o evangelho de Marcos foi composto; sua cópia mais antiga é de pelo menos 100 anos depois - um abastado casal de Pompéia estava tão orgulhoso de ler e escrever que retrataram-se segurando uma pena, rolagem e prancheta.

Os correspondentes de Paulo eram desses mesmos círculos cultos. Sabemos pelas cartas que ele escreveu para eles. As convenções de escrita usadas sugerem uma familiaridade com práticas sociais da elite. Escrever de forma educada também era importante, em Roma! Seu contato Cloe, em Corinto, organizou reuniões em sua casa (1ª Coríntios 1.11). Assim também Febe na cidade vizinha Cencréia (Romanos 16.1), bem como Priscila e seu marido Áquila (Romanos 16.3). Não precisamos supor que esses Cristãos estavam entre os mais ricos para ter suas propriedades, mas uma boa estimativa os colocaria nos 33% superiores da pirâmide socioeconômica. E também podemos ver que, quando os Cristãos se reuniam, divisões sociais ser ferozes.

Depois que Paulo deixou Corinto, ele ouviu que muitos membros do grupo estavam tratando a Ceia do Senhor como um jantar luxuoso. Os mais privilegiados comiam e bebiam, indo para casa bêbados³, enquanto os membros da classe baixa saíam com fome (1ª Coríntios 11.20,21). Apesar dos ensinamentos, não era uma comunidade igualitária! Essas divisões econômicas não seriam resolvidas com o passar do tempo. Um século depois, Cristãos abastados em Alexandria celebravam a Ceia do Senhor “com carne gordurosa e molhos finos”, disse Clemente, o bispo de Alexandria*, no final do séc. 2. Pratos primorosamente trabalhados em ouro e prata estavam sendo usados ​​na refeição comunal instituída por Jesus. "E essas pessoas ousam chamá-la de Ceia do Senhor!", disse Clemente, exasperado.

Muitos Cristãos tinham idéias pessoais sobre como seguir a Jesus - e isso envolvia se relacionar politicamente. Em meados do séc. 3 d.C., na Síria, uma comunidade Cristã convenceu um residente local fazer da sua casa um grande salão para reuniões. O proprietário até instalou um batistério e fez pinturas de cenas do Novo Testamento nas paredes. Essa casa transformada é o 1º exemplo de arquitetura Cristã que temos. E ela foi produzida num período em que os Cristãos supostamente eram perseguidos. No entanto, a casa de Dura-Europos** antecede a legalização do Cristianismo por meio século, e isso pode mudar a maneira como pensamos a história Cristã.

Roma era muito grande e, ao contrário do que pensamos, os Cristãos dificilmente se escondiam em toda ela. Com efeito, o triunfo político do Cristianismo pode ter sido o produto de algo tão mundano quanto aliados bem posicionados e apoio financeiro. Isso poderia inspirar Nero a afrontá-los em 64 d.C., quando as perseguições começaram.

Mas resta a pergunta: porque os Cristãos do 1º século não deixaram nada além de textos?

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¹A Tumba dos filhos de Hezir é uma grande construção funerária do séc. 2 a.C., encravada no Vale do Cedron, destinada a abrigar os restos de uma família nobre de Jerusalém, chamada ‘filhos de Hezir’. Possivelmente trata-se da linhagem do príncipe que firmou aliança com Neemias em Neemias 10.20.

²A Tumba de Absalão é uma torre de 20m de altura, apoiada num pedestal de pedra de 7m, incrustado no Monte das Oliveiras. É um monumento bastante decorado do lado de fora, com propósito incerto. A ligação com Absalão, filho de Davi que tentou usurpar o trono, é alegórica. Dentro da torre, encontrou-se a inscrição “Esta é tumba de Zacarias, o mártir, alto sacerdote, pai de João”. Mas os estilos e a tecnologia de escultura são muito posteriores a isso. Há teorias de que se trate da tumba de Herodes Agrippa, rei da Galiléia a quem Jesus foi apresentado, ou ainda um monumento para indicar o sistema de cavernas funerárias Jehoshaphat.

³Embora a Ceia do Senhor tenha se tornado um ritual estilizado com sacerdote, óstia, suco e pedacinhos de pão, somos instruídos pela leitura do Novo Testamento, costumes judeus e a história de que realmente se tratava de uma refeição grupal. Para os romanos, gregos e judeus sentar-se à mesa para comer e beber com alguém era um sinal de igualdade e até a posição das pessoas tinha seu significado. Por isso, quando Jesus começou a reunir seus seguidores em uma mesa (para jantar, é isso que Ceia significa), ele debochou das divisões sociais como mesmo Pedro não ousou fazer (Gálatas 2.11,12).

*Em sua obra Paedagogus (que significa Mestre, Professor), Clemente de Alexandria (150-215 d.C.) se referiu a Cristo como alguém que ensinou a Humanidade. Para construir seu discurso, ele usou fartamente de autores gregos como Platão (A República) e Homero (A Odisséia). Para ele, o pecado fazia parte do involuntário e irracional humano, com Deus dando ao homem sua parte racional. Ele também fala de um Deus sem sexo, até apontando o vinho da Eucaristia como ‘leite do Pai’, e usando exemplos gregos e bíblicos de mulheres inspiradoras, que deveriam compor a liderança da Igreja. Clemente também defendeu a moderação dos costumes, sendo contra as riquezas mas também contra a pobreza voluntária, pois os Cristãos deveriam ser capazes de louvar a Deus com festas e felicidade.

**Dura-Europos era uma cidade síria de maioria judaica, nas bordas do Império, que logo foi invadida pelos Persas. A casa em questão continha cenas de Adão e Eva, Davi e Golias, o Bom Pastor, Jesus e Pedro andando sobre as águas e as Três Marias visitando a tumba de Jesus. Lá também foram encontrados fragmentos de pergaminho usados em batismos, altamente semelhantes ao texto da Didache.

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Leituras de além do tempo

Boin D., site Religious Dirt
Boin D., The archaeological quest for the earliest Christians, 02/jan/2018. 2ª parte

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