quarta-feira, 30 de maio de 2018

Quando uma igreja não é igreja

Igreja de Saint George, em Lalibela, Etiópia. A igreja de 25m de altura é uma única peça de rocha vulcânica, esculpida externa e internamente no séc. 12.

Esse é um texto que poderia ser do Tuco Egg (olha o link dele aí do lado), mas não é. Esse foi produzido por Katherine Stewart e publicado no jornal The New York Times em 16/abril/2018. Brinquei um pouco com o texto dela.

Com o pagamento dos impostos bem próximo, considere que, através do milagre dos incentivos fiscais, seu dinheiro vai financiar campanhas contra o casamento gay e contra o desarmamento da população. Vários grupos financiados pelos impostos também o usarão para fins políticos, sem se reportar às entidades públicas. Por quê? Eles têm Deus do seu lado.

No outono passado, por exemplo, de acordo com formulários protocolados no Internal Revenue Service (a Receita Federal estadounidense), a “Focus on the Family” (tradução: Foco na Família), uma organização Cristã conservadora em termos de política pública e familiar, declarou-se uma igreja. A “Focus on the Family” não tem um local de congregação, não realiza cultos, nem casamentos ou funerais. Com seu orçamento anual de quase US $ 90 milhões, o que a entidade faz é produzir programas de rádio. Muitas vezes, são programas políticos direcionados a 38 milhões de ouvintes nos Estados Unidos e além. Eles fazem campanhas contra legisladores estaduais que lutam pelos L.G.B.T. e combatem o que chamam de "ativismo gay" nas escolas públicas.

Por que um grupo assim gostaria de chamar a si mesmo de igreja? Resposta curta: dinheiro. As igrejas podem fazer deduções nos impostos com mais facilidade do que outras organizações sem fins lucrativos. Eles também desfrutam de isenções de impostos sobre a propriedade para membros do clero (ou seriam personalidades do rádio?). As igrejas também podem aproveitar os benefícios do capital “negro”: não são obrigadas a revelar a origem dos seus fundos. E a “Focus on the Family”, como vários outros grupos da direita religiosa, se preocupa com a possibilidade de que sua oposição a relacionamentos gay os torne foras-da-lei. Afinal de contas, os “padrões de comportamento moral” nas suas diretrizes proíbem “atos homossexuais”.

O “Family Research Council” (tradução: Conselho de Pesquisa da Família), um parceiro próximo que, por algum tempo, se fundiu ao “Focus on the Family”, é registrado como uma organização não religiosa. Mas um dos principais objetivos do Conselho é converter as igrejas conservadoras em células políticas partidárias. Ele procura colocar o que chama de “equipes de impacto cultural” nas igrejas para “promover os valores do Reino na arena pública”.

Segundo a “Focus on the Family” e o “Family Research Council”, a Bíblia oferece informações específicas sobre como as pessoas deveriam votar. As Escrituras, dizem eles, opõem-se à assistência pública por princípio (“Deus encarregou os crentes de ajudar os pobres, viúvas e órfãos”, explica o manual da equipe de impacto cultural do Conselho). Aparentemente, a Bíblia também é contra o desarmamento e apóia a privatização de escolas. E, claro, que as relações homossexuais são uma abominação. Eles também são contra as mulheres terem acesso a cuidados reprodutivos. O Ambientalismo, de acordo com a fonte que o manual recomenda aos grupos religiosos, é uma ladainha do Dragão Verde¹ e uma das maiores ameaças à sociedade e à igreja. Outras fontes recomendadas pelo manual promovem a noção de que a Terra tem 6000 anos.

Não há mistério sobre qual partido político a Bíblia apóia, pelo menos como esses grupos vêem. No período que antecedeu as eleições de 2016, James Dobson, fundador da “Focus on the Family”, elogiou Donald Trump e explicou que a perspectiva de uma presidência de Hillary Clinton "assusta até a morte". Mas eles se dizem não partidários.

Se você se preocupa que o gasto público/político de dinheiro é alto, imagine o que acontece quando se adiciona uma exceção divina. Isto é, quando recebedores dos impostos repassam dinheiro aos candidatos livremente, sob a cobertura das igrejas. Não obstante a Emenda Johnson² proíba que igrejas façam campanha eleitoral, isso está acontecendo.

Em 2016, Ralph Reed, presidente da "Coalizão Fé e Liberdade", falou na "Road to Majority Conference" (tradução: Conferência Caminho para a Maioridade), que reuniu políticos e líderes da direita religiosa. Reed prometeu distribuir 35 milhões de guias eleitorais "não-partidárias" através das igrejas e ajudar a levar os eleitores às urnas. Ninguém que financiasse sua operação ou ouvisse seu discurso teria dúvida sobre quem se beneficiaria do trabalho. Mais tarde naquele dia, depois que Reed saiu do palco, o Sr. Trump chegou para falar. A prova da efetividade dessa máquina político-religiosa pôde ser lida nas pesquisas de boca-de-urna em 2016. 80% dos evangélicos brancos³ apoiaram Donald Trump.

Quando questionados sobre o flagrante ativismo partidário, esses grupos invariavelmente clamam que sua liberdade religiosa está sob ataque. Não está. Eles podem expor suas opiniões livremente em praça pública. A questão aqui é a transparência sobre uso do dinheiro público. Os incentivos fiscais são uma das maneiras pelas quais o governo usa o que arrecada nos impostos. E se o governo vai alocar dinheiro em algo, você deveria saber para onde ele está indo (a questão da transparência fiscal, no Brasil, é bem mais séria).

Esse processo de politização corrompe a religião. A maioria dos líderes religiosos nos Estados Unidos respeitou a separação entre Igreja e Estado, e esse arranjo serviu bem ao país. Sob a lei atual, os grupos religiosos estão isentos de encargos fiscais e de relatórios sobre suas atividades (as empresas declaram suas atividades financeiras, não?). Grupos políticos não são isentos. As igrejas precisam decidir de que lado elas querem estar.

Quanto ao Sr. Trump, ele lançou-se candidato a presidente da principal democracia no mundo acusando o México de exportar “estupradores”. Ele já começara a carreira política inaugurando uma teoria da conspiração de que o primeiro presidente negro daquele país não era um cidadão de verdade. Jornalistas e cientistas políticos bradaram que ele jamais ganharia a nomeação do seu partido. Ele ganhou e, durante a campanha, as regras sobre respeito foram rasgadas de vez. Num comício, ele usou o palavrão mais censurado no seu idioma para referir-se a um adversário político. Noutro, imitou um repórter com deficiência física. Declarou que um juiz não era capacitado para julgá-lo por ter ascendência mexicana. Por fim, menos de um mês antes da eleição, vazou um vídeo em que ele gabava-se de assediar mulheres. Mas Donald Trump foi eleito presidente, com apoio de parte da Igreja. Talvez não ainda sob esse nome atual, mas sim, por pessoas que se afirmam religiosas o suficiente para justificar pela Bíblia as suas ações. Lembremos que, na sua única aparição declarada, o Diabo usou partes da Escritura para tentar Jesus.

Alianças improváveis na Igreja não são coisa tão nova. Em 1932, um candidato democraticamente eleito com uma plataforma racista pôs em curso uma política pública que matou 6 milhões de pessoas, sobretudo judeus, negros, ciganos, comunistas e LGBTs. Hitler teve apoio dos industriais da época, arruinados com o empobrecimento da classe média. Inicialmente, os católicos alemães eram proibidos de ingressar no Partido Nazista e os padres recusavam a comunhão às pessoas usando a suástica. Essa antipatia inicial do Partido com a Igreja Católica foi resolvida de forma amigável, com um tratado de não influência mútua entre Pio XI e Hitler, em 1933. Claro que Hitler nem se importou com o acordo, mas ele era um fechar de olhos quanto às atrocidades que o Partido comandava. Quase por tabela, os judeus, negros, ciganos, comunistas e LGBTs passaram a ser considerados, na Alemanha e territórios subordinados, como destituídos da graça e até da observância de Deus.

Nos EUA, e talvez no Brasil, é preocupante pensar que acordos políticos sejam feitos ou influenciados pela Igreja. Especialmente acordos que, às vezes, retiram a ajuda do Estado sobre algum grupo de pessoas. Ou que fecham os olhos da Igreja sobre as más ações de políticos, empresas, etc porque são declarados bons aos olhos do Deus - apesar de agirem em próprio interesse.

Com certeza não vivemos na Igreja de Jesus, nem de Pedro e Paulo. A Igreja de 2018 somente pode se apoiar nos que vieram imediatamente antes de nós. Existimos como resultado dos movimentos Protestantes e Católicos no começo dos anos 1980, das transformações ideológicas que o Vaticano trouxe à América Latina nos anos 1950, dos grupos estadounidenses de 1900, do movimento protestante no século 19, e vamos assim até a Igreja romana estatizada do séc. 4 e os Cristãos ricos do séc. 2. Ok, o que aprendemos da Igreja enquanto evangelizados, na melhor das hipóteses, é o que está na Bíblia. É a Igreja inicial, do séc. 1. Mas é difícil e provavelmente impossível resgatar a “santa Igreja” dos tempos bíblicos, como se 2000 anos não tivessem passado*. Mas deveríamos pensar, enquanto Igreja, no que temos feito HOJE do nome de Jesus.

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¹Dragão Verde é um personagem do escritor James Wanliss. O Dragão Verde seria uma pseudo-entidade espiritual, uma espécie de demônio, que faz as pessoas desprezarem a obra de Deus. Graduado em Física, Wanliss atualmente tem se renomado como ambientalista e religioso, com obras que tentam atrelar o Cristianismo ao Ambientalismo. Ver Jesus naturalista.

²A “Emenda Johnson” foi feita em 1954 pelo senador Lyndon B. Johnson, futuro presidente dos EUA. Ela restringia a atuação de Organizações sem Fins Lucrativos (como as igrejas) quanto a intervirem em campanhas eleitorais. Recentemente, houve tentativas de Donald Trump de alterar essa emenda.

³Nos EUA, ao contrário do Brasil, há uma separação racial, política e ideológica entre as Igrejas protestantes "branca" e "negra". Enquanto a "igreja branca" é de maioria caucasiana, direitista/nacionalista, conservadora quanto aos costumes e luterana/tradicional, a "igreja negra" é de maioria latina/afro, esquerdista, liberal quanto aos costumes e mais próxima ao pentecostalismo. Ver A igreja do outro mundo.

*Nunca faltaram, curiosamente, novos profetas prontos a re-iniciar o Cristianismo. Em poucas situações esses movimentos tiveram algum sucesso, por destoarem fortemente da ideologia de sua época e contarem, portanto, apenas com a própria força para crescerem. Na maioria das vezes, a estratégia para repelir outras versões do Cristianismo é adotar um Velho Testamento ou um Novo Testamento completamente re-feitos, o que configura a nova doutrina como uma seita ou heresia.

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NEM QUEIRA LER

Green DB, 1933: The Vatican and Nazi Germany sign an agreement, revista Haaretz, 20/julho/2016
Mais LA, O racismo como razão de voto, revista Piauí, 17/maio/2018
Reichskonkordat - wikipedia

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