quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Cristianismo em sua juventude

"Cristo e o jovem rico", pintura de Heinrich Hofmann, 1889

Esse texto é grandemente baseado nos capítulos iniciais do livro “The rise of Christianity” (O crescimento do Cristianismo), que o sociólogo estadounidense Rodney William Stark publicou em 1996. Ele é um antigo professor-celeridade da Washington University e seu livro é bastante famoso e recomendado a qualquer um interessado na história Cristã. Mas o interesse nele vem justamente de dois textos anteriores, “A invisibilidade Cristã” e “A velha e a nova igrejas”. O primeiro deles fala sobre o estranho fato de que os mais antigos artefatos Cristãos (e estamos falando de qualquer imagem, mesmo desenhos em paredes) são de pouco antes de a religião ser legalizada em Roma, uns 250 anos após Jesus. O segundo texto traz uma avaliação de como funcionava a igreja primitiva.

De alguma forma, tudo parece ter mudado no contexto Cristão desde que a religião foi adotada pelo imperador Constantino e legalizada pelo Edito de Milão em fev/313 d.C. Após isso, em menos de 1 século, os Cristãos passaram de grupo perseguido a dominadores políticos em Roma. O preço pago por tal sucesso foi praticamente o abandono dos ensinamentos de Jesus em favor de uma ritualística e uma santificação dos ricos e poderosos. É como se o jovem rico dispensasse Cristo, porque Esse Tal não tinha como segui-lo, e então fundasse a sua igreja de ricos. Essa mudança de funcionamento do Cristianismo entre o que lemos no livro de Atos para o que se tornou o Cristianismo Imperial é - ou deveria ser - desconcertante para a maioria dos que lêem sobre a história Cristã, pois tudo se deu em 200 anos ou menos. Não se espera mudanças rápidas em grupos religiosos, ainda mais num grupo nascente.

Em seu livro, Stark apresenta uma teoria mais contínua sobre o surgimento do Cristianismo, comparando as denominações tradicionais (ex. Católicos, Presbiterianos, Metodistas) com grupos mais dissidentes (ex. Assembléia de Deus, Nazarenos, Testemunhas de Jeová), grupos nascentes (ex. Igreja da Unificação¹) e grupos se estabelecendo como tradicionais (ex. Mórmons).

CONTAGENS IMAGINÁRIAS

Um problema que ele levanta, quanto ao número de pessoas em certo grupo, é a discrepância entre evidências e relatos. Era muito comum na Antigüidade (e hoje em dia também) relatar grandes números para fazer alguns movimentos ou acontecimentos parecerem mais grandiosos do que realmente eram. Heródoto que o diga! Ele cita, como exemplo, uma matéria de revista que alardeava haver 10 mil Hare-Krishnas² em Toronto/Canadá no meio dos anos 1980. Seria um número impressionante de seguidores de uma religião geograficamente tão distante. Um censo mais rigoroso, entretanto, averiguou que só haviam 80 praticantes na cidade.

Da mesma forma, ele chama a atenção para a fantástica conversão de 5000 homens descrita em Atos 4.4, após a pregação de Pedro e João no Pórtico de Salomão, uma das entradas do Templo. Seria muito difícil simplesmente colocar essa quantidade de pessoas dentro do Templo. Além disso, tal conversão em massa rapidamente transformaria o Cristianismo na religião dominante em Jerusalém, o que não aconteceu³. Stark avalia diversos relatos de historiadores antigos e estima a existência de uns 1000 Cristãos na 1ª geração, ou seja, aqueles que foram ensinados pelos próprios apóstolos.

OS VESTÍGIOS CRISTÃOS

Essa quantidade de pessoas, sendo cidadãos comuns, produziria uma quantidade muito pequena de vestígios tão duráveis que pudessem ser encontrados após 2 mil anos. Seria preciso uma população de pelo menos 100 mil devotos para produzir tantos vestígios que pudéssemos saber de sua existência, tanto tempo depois. Para Stark, esse número de Cristãos deve ter sido alcançado por volta de 180 d.C., que é a data do “aparecimento arqueológico” dos Cristãos.

A misteriosa ausência de rastros dos Cristãos, para ele, se deve simplesmente à destruição das provas materiais ao longo do tempo e ao pequeno nº de convertidos nos 1os séculos da nova religião. Mas, mesmo assim, atingir a marca de 100 mil crentes em menos de 2 séculos é impressionante.

A EXPLOSÃO DOS CRISTÃOS

Sabemos que a vertiginosa expansão Cristã se deve à semeadura de igrejas por Paulo, João Marcos (evangelista), Lucas (evangelista), Silas, Tito, Barnabé e vários outros da 1ª geração. Considerando que apenas os relatos de Paulo e Lucas nos chegaram, provavelmente havia muitos outros grandes patriarcas, dos quais nunca ouvimos falar. Pedro, por exemplo, foi um grande líder Cristão sobre o qual pouco se fala fora dos evangelhos. Stark comenta que, considerando o provável grande número de comunidades independentes fundadas e distribuindo por elas os 1000 crentes da 1ª geração, deviam ser comunidades bem pequenas. Tão pequenas que podiam se reunir em casas comuns, o que seria mais um argumento para não terem deixado construções específicas, como um templo.

Stark então projeta uma curva de crescimento que levaria os Cristãos até 100 mil no ano de 180 d.C. Ele mostra que, supondo um modelo em que cada convertido arrebanha uns tantos outros, temos um aumento exponencial do nº de Cristãos e não há muita incerteza possível quanto a esse ritmo de crescimento, que deve ter sido de uns 40%/década ou 3,4%/ano. Esse número é muito compatível com o início do Mormonismo*.

Apesar disso, em todo crescimento exponencial, o início sempre é bem lento. Com os dados de população de Roma em mãos, ele avalia que, em sua fase inicial, o Cristianismo passou praticamente despercebido. Mesmo havendo os extermínios em massa na Judéia e em Roma no séc. 1, eles produziram pouco ou nenhum impacto no Império. Por volta do ano 200 d.C., nem sequer 1% da população romana era aderente. Por outro lado, em 250 d.C. os Cristãos chegavam a 2% do total e saltaram para 10,5% até 300 d.C. Isso chamou rapidamente a atenção, o que levou o próprio imperador a se filiar a eles por volta de 300 d.C., quando marcavam incríveis 56% da população.

Stark fortalece suas estimativas com a contagem de nomes Cristãos no Egito nessa mesma época. As porcentagens extremamente parecidas de Cristãos nas populações Egípcia e Romana mostram que as conversões Cristãs não estavam centradas em grandes pregadores num ou noutro local, mas fluíam ao sabor do próprio crescimento populacional.

NÃO TÃO POBRES ASSIM

O artigo em questão é valioso porque analisa a fundo os motivos da expansão rápida dos Cristãos, ligando-os às transformações que ocorreram na Igreja durante esses primeiros séculos.

O autor faz uma distinção sociológica entre cultos estrangeiros (ex. Hare Krishna, nos EUA), seitas e denominações estáveis. Os cultos estrangeiros requerem um nível de educação mais alto dos adeptos, que precisam buscar longe suas informações e motivações, uma vez que interagem pouco com o ambiente social ao seu redor. As seitas  (ex. Assembléia de Deus, Nazarenos, Testemunhas de Jeová), por outro lado, são grupos dissidentes dentro de uma religião estabelecida, mantendo níveis altos de tensão com seus pares. Essa tensão substitui ganhos pessoais por demonstrações de fé, por isso tais religiões são o abrigo de pessoas mais pobres e menos educadas. As denominações estáveis (ex. Católicos, Presbiterianos, Metodistas) têm um nível mínimo de tensão, por isso são politicamente ativas e a conformação socioeconômica dos fiéis é a mesma do local que ocupam. Segundo Stark, a categoria de uma religião pode variar ao longo de sua história.

O Mormonismo, por exemplo, surgiu como uma seita na Inglaterra (o movimento reavivacionista) e emigrou como um culto estrangeiro para os EUA. Apesar de altamente centrado no ambiente estadounidense, o Mormonismo trazia elementos culturais nativos que eram estranhos a boa parte da população urbana. E o ponto crucial dessa cisão foi a elaboração do Livro de Mórmon, que os separou dos demais Cristãos. Com a criação do Livro, o profeta Joseph Smith teve a adesão da parcela mais rica e educada da população, o que promoveu seu crescimento até a situação de uma denominação estável.

Stark propõe um mesmo modelo para o Cristianismo, tendo este nascido como uma seita dos Judeus e, entre a 1ª e a 2ª geração de Cristãos, tendo evoluído para culto estrangeiro em Roma. OS Cristãos inicialmente se reuniam no Templo, e a cisão definitiva foi a elaboração dos Evangelhos no final do séc. 1. Paulo certamente teve muito a ver com isso**. Nesse modo de crescimento, o autor aponta o histórico enorme de Cristãos perdoados, mesmo durante as perseguições mais severas, como indicador de que as famílias mais ricas e poderosas de Roma estavam aderindo à nova religião. A adesão do imperador no início do século 4 seria apenas uma decorrência do poder político que os Cristãos estavam angariando.

Segundo ele, o Protestantismo surgiu como seita dentro do Catolicismo, mas rapidamente evoluiu para um culto em separado quando surgiram as traduções da Bíblia. Os Pentecostais também, nesse atual ponto da história, constituem uma seita dentro do Protestantismo tradicional.

A adesão de famílias ricas ao Cristianismo teria sido propiciada pelo fornecimento de novas motivações espirituais, que os deuses greco-romanos não mais proviam, além possibilidade de consagração e hierarquia. Obviamente a nova religião precisava de patronos nas cidades onde chegava e os comerciante ricos estariam ávidos por essa posição. Stark relembra as instruções do livro de Atos sobre a venda de propriedades, coisa que os plebeus não possuíam. O acolhimento dos pobres, segundo ensinado por Jesus e pregado por Paulo, levou à formação de hierarquias eclesiáticas (que justificam a desigualdade) ao invés de uma distribuição de renda, como Jesus e Paulo desejavam.

O MODO DE CRESCIMENTO DO CRISTIANISMO

Os adeptos do Cristianismo, segundo Stark, foram principalmente os moradores das cidades romanas. Até mesmo as rotas por onde a nova fé se espalhou no Império seguem as estradas conectando zonas urbanas. Nas cidades, o enfraquecimento dos deuses greco-romanos em favor do culto Cristão lembra bastante a mudança dos deuses Egípcios de formas naturais (ex. Anúbis, o chacal, ou Rá, o sol) para formas humanas (ex. Osíris e Isis). De modo semelhante, os deuses greco-romanos pouco tinham a ensinar sobre uma sociedade estável, com conflitos humanos, e isso abriu espaço para os ensinamentos Cristãos. De forma análoga, o termo “paganus” significa, de fato, “caipira” ou “camponês”. Pouco tempo após a adoção do Cristianismo pelo império, os não-Cristãos já eram chamados de “pagãos”, o que denotaria sua condição ligada ao campo.

Ao estudar a adesão de novos membros aos Moonies¹, assim como a cultos hindus dentro dos EUA, Stark mostra que os novos convertidos são essencialmente amigos próximos ou parentes de contato frequente dos membros mais antigos. Essa forma de crescimento se adéqua bem ao crescimento exponencial, com cada fiel recrutando novos membros, quando há estruturas de poder envolvidas. Isto é, alguém poderoso converte seus subordinados, que fazem o mesmo ladeira abaixo. Mais um ponto a favor do início do Cristianismo entre as famílias mais ricas de Roma.

O ENVELHECIMENTO DO CRISTIANISMO

Se a teoria de Stark sobre a formação do Cristianismo estiver correta, a vida simples e comunal ensinada por Jesus não prosseguiu além dos apóstolos e a 1ª geração de Cristãos. Devo admitir que ela é bem tentadora para explicar como se desenvolveu rapidamente uma estrutura eclesiástica tão logo o Cristianismo foi legalizado: na verdade tal estrutura já existia, apenas estava fora das documentações romanas.

Na medida em que os Cristianismo se consolidava em Roma Ocidental, e depois em Bizâncio ou Roma Oriental, a tensão cultural entre Cristãos e os demais romanos diminuiu muito. As estruturas de poder eclesiástico se conformaram ao poder político e vice-versa, até ser impossível diferenciar um do outro. No meio da Idade Média, lá pelo séc. 10, tanto cléricos quanto nobres possuíam exércitos e terras; ambos se misturavam nas mesmas cortes e as pessoas transitavam entre a condição de nobreza e a hierarquia da Igreja.

Após o santo Batismo, um duque podia rapidamente ser alçado à condição de cardeal ou mesmo a santo reverenciado. Com os camponeses, obviamente nada disso acontecia. Na medida em que os pagãos passavam a ser uma minoria populacional, as conversões tornavam-se mais raras e atreladas a fortes interesses políticos ou bélicos. Stark afirma que o Mormonismo está entrando nessa fase tardia

Quanto ao Cristianismo, o enfraquecimento de seu apelo emocional é sensível pelo aumento dos Ateus e Agnósticos em muitos países tradicionalmente Cristãos, ao passo que nas partes menos educadas do mundo, as seitas internas minam o aspecto tradicional da religião, introduzindo alterações doutrinárias que são majoritariamente vistas entre os Pentecostais.

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¹ A Igreja da Unificação surgiu através do coreano Sun Myung Moon, nos anos 1970. Seu grupo mistura o Cristianismo com a tradição Oriental, apresentando a necessidade de um guia presencial para levar a humanidade de volta à perfeição e ao Paraíso. Jesus teria iniciado esse processo, sendo agora substituído por Moon como sua nova aparição. Os seguidores são chamados de Moonies (mu-ni-es), um de seus escritos sagrados é o Princípio Divino, uma re-interpretação oriental da Criação, Queda do Homem e da História do Cristianismo, escrito por Moon logo após a 2ª Guerra.

² O movimento Hare Krishna é uma vertente do hinduísmo surgida no séc. 16, que usa como textos sagrados o Bhagavad Gita e o Bhagavata Purana. Praticam o culto a Krishna, 8ª forma humana do deus Vishnu e representativo de seu amor, além de mantras para meditação e yoga. Popularizou-se na América durante o movimento Hippie.

³ Embora o Cristianismo tenha Crescido rapidamente na Síria e Turquia, estima-se que uma das cidades com maior porcentagem de Cristãos nos primeiros séculos tenha sido, incrivelmente, a capital do Império Romano.

* Os Mórmons ou Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias é considerada uma seita Cristã e surgiu com o profeta estadounidense Joseph Smith no início do séc. 19. Smith é o autor do Livro de Mórmon, que junto com o Velho e o Novo Testamento compõe as escrituras Mórmons. O livro traz, entretanto, uma outra versão das duas demais escrituras. Um certo Jared e seu irmão (cujo nome foi propositalmente omitido) fugiram da Torre de Babel em 2500 a.C. e navegaram até a América, onde foram visitados por Jesus (ainda não material) e estabeleceram um reino promissor. No ano 600 a.C., pouco antes da destruição de Jerusalém pelos Babilônios, um homem chamado Nehi levou sua família até o Golfo Pérsico e depois ao redor da África e através do Atlântico, onde encontrou vestígios do reino de Jared e iniciou sua própria colônia americana, que durou até 130 a.C. Os registros de seu povo foram guardados pelo profeta americano Mórmon (385 d.C). Após o período dos mártires, no Oriente Médio, a Igreja então se corrompeu. O profeta Mórmon, entretanto, apareceu como anjo Moroni para o profeta Joseph Smith, para revelar onde guardara suas escrituras, que serviram de base para o Livro. Os mórmons são conhecidos por terem feito grandes peregrinações no território estadounidense, em busca de sua terra prometida, até se fixarem na região que hoje é o estado de Utah. Eles essencialmente não se casam com não convertidos e mantém grupos patriarcais, onde os homens são aconselhados a possuírem várias esposas.

** Pareceria estranho falar de uma participação de Paulo nos Evangelhos. Mas as cartas de Paulo são, incrivelmente, anteriores à elaboração escrita dos Evangelhos. Dos seguidores nomeados de Jesus, apenas Mateus e João deixaram obras escritas que nos chegaram. As demais versões - Marcos e Lucas - são justamente de companheiros de Paulo em suas viagens. E, mais curioso ainda, a última ceia descrita por Mateus e Lucas coincide com a descrição de Paulo, mas não com a de João.

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Não deixe de ler o original:

STARK, Rodney. The rise of Christianity: A sociologist reconsiders history. Princeton University Press, 1996.

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