quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A velha e a nova igrejas



Imagens da sinagoga de Dura Europos. Começando da esquerda superior, no sentido horário - Samuel ungindo Davi entre seus irmãos; o Bom Pastor carregando uma ovelha, sobre a cena de Adão e Eva junto à Árvore do Conhecimento; Jesus andando sobre as águas do lago de Genesaré; Jesus curando o paralítico na piscina de Bethesda.

Há opiniões diferentes quanto ao momento exato em que passou a existir a Igreja. Alguns argumentam que a Igreja existia no tempo de Jesus pois, a respeito de Pedro, Jesus disse: "você é Pedro, e sobre esta rocha edificarei minha igreja e os portões. do inferno não prevalecerão contra ela” (Mateus 16.18). De fato, Pedro foi um dos primeiros líderes da Igreja, e também um dos mais tardios a crer em Jesus como enviado de Deus. Os evangelhos foram escritos após a fundação da Igreja, então é natural que tenham referências a ela. Para a maioria dos Cristãos, a Igreja nasceu no dia de Pentecostes (50 dias após a Páscoa), em Jerusalém, quando o Espírito Santo veio sobre os crentes (Atos 2.1-6). Esse “batismo de fogo” seria o que João Batista anunciava como o grande sinal do Messias.

Desde então, o Cristianismo se espalhou e diversificou, atravessando eras e Impérios, até cobrir quase todo mundo Ocidental. Hoje, podemos dizer que a Igreja é um eco distante do que foram as primeiras reuniões Cristãs: o mundo mudou muito, professamos um Cristianismo completamente diferente do original. Se escrevêssemos sobre as práticas Cristãs de hoje, mesmo guiadas por textos milenares, os pastores balançando seu paletó sagrado, as vestimentas e teologias diferentes ou os cardeais de chapéus coloridos seriam absolutamente estranhos a um daqueles pioneiros seguidores de Jesus.

IDEAL DE PUREZA

Paulo se preocupava com as igrejas contaminadas por filosofias pessoais e outras doutrinas. O mundo Romano era repleto delas! A igreja de Corinto era ótimo exemplo:

Mas agora estou lhes escrevendo que não devem associar-se com qualquer que, dizendo-se irmão, seja imoral, avarento, idólatra, caluniador, alcoólatra ou ladrão. Com tais pessoas vocês nem devem comer.” (1ª Coríntios 5.11)

Era exigido aos Cristãos uma certa pureza, que seguissem os mandamentos que professavam (repare: já não eram os mandamentos de Jesus). Não que um desobediente devesse ser punido, pois não era função da igreja punir, mas ensinar. Mas o desobediente não poderia falar em nome de Cristo e compartilhar de tudo com os demais. Um pecador impenitente era expulso da congregação até o momento em que se arrependesse. Ou pagasse a pena imposta a ele. Muitas vezes, a pena o transformava em pregador enviado a terras distantes!

Reparemos nas ofensas que Paulo denomina: imoralidade (cada cultura tem seus valores morais); desviar-se excessivamente de gastar dinheiro; cultuar outras coisas além de Jesus; fazer acusações falsas; andar bêbado (μεθυσος); roubar. Eram e são problemas sociais comuns. Segundo Paulo, problemas toleráveis nas pessoas a quem a doutrina precisava ser ensinada; mas não naqueles que diziam conhecê-la e a ensinavam. Isso precisava ser deixado para trás.

A proposição de Paulo para expurgar tal mal era “entregar esse tal para Satanás, a fim de que a carne seja destruída e o espírito seja salvo”. É uma proposição terrível, se pensarmos nas torturas da caça às bruxas. Mas nada semelhante foi registrado entre os Cristãos, até o séc. 4, pelo menos. Paulo também recomenda, ao final, tirar de entre os crentes tal pessoa. “Entregar o tal a Satanás”, portanto, devia ser uma expressão figurativa para abandonar quanto aos cuidados.

Mesmo havendo tal comando, bem mais leve, é de se pensar como nada parecido ocorreu ligado a Jesus - que ressaltava o abandono de tudo para segui-Lo. Jesus não "expurgou" qualquer um de Seus seguidores, de acordo com os evangelhos. Por isso, é surpreendente encontrar tal medida nas cartas de Paulo, anteriores à redação do evangelhos. Entre seguir as ações de Jesus e as recomendações de Paulo, os Cristãos guardaram uma longa memória de expulsões, castigos, torturas, ou mesmo (e principalmente) execuções. Até onde sabemos, os Cristãos produziram muito sofrimento na história humana, porém devido a outros males do caráter além destes enumerados por Paulo - como cobiça por poder, privilégios e riqueza. Pouco se faz para eliminar tas males da Igreja.

A FAMÍLIA CRISTÃ

Os primeiros Cristãos viam a igreja como uma grande família. Isso é conhecido de quem lê o Novo Testamento. Mas não devemos entender a metáfora Igreja/família através de nossos valores familiares modernos. Nossos pais são altamente cuidadores e acabam suas vidas em lares de idosos; nossos irmãos de sangue são chamados de irritantes e tratados como párias.

No 1º século, a unidade familiar se estendia muito além da família nuclear. O termo “clã” seria mais adequado para o Oriente Médio antigo. Várias gerações e vários irmãos, primos, etc compartilhavam o mesmo teto. Usualmente, toda uma vila era composta de pessoas aparentadas entre si, com um líder de clã que geralmente era o mais velho e decidia sobre casamentos, propriedades, etc dos demais.

Além disso, muitos viviam fora das cidades, nas pastagens e montanhas. Era comum que uma região estivesse próspera enquanto outra sofresse com a seca ou inundações. Por isso, fazer parte do clã assegurava auxílio e também apoio (como guerreiros) nas disputas de terras, invasões, etc. O clã de alguém assegurava até abrigos durante as longas viagens. O termo “filho de Davi” aplicado a Jesus, incrivelmente, denotava a pertença a um grande clã do qual o lendário rei fizera parte 10 séculos antes (1ª Crônicas 2).

Foi nesse contexto que os 1os seguidores de Jesus propuseram abrir as portas de casa a todos os crentes, membros do seu novo clã. A lealdade ao Cristo ressuscitado colocava o clã Cristão se estendendo até além de Israel, nas casas em que Paulo se hospedava quando viajava.

OS DE DENTRO E OS DE FORA

Aqueles que testemunharam o Pentecostes e ouviram os discípulos pregando cada um em seu próprio idioma ficaram chocados. Deus proclamava-se aberto a todas as nações. A mensagem da salvação foi primeiro para os Judeus, mas depois para os Gentios (Apocalipse 22.17).

No Antigo Testamento, pessoas de outras nações poderiam se unir a Israel se obedecessem às Suas leis. Jonas é um grande exemplo do desejo de Deus de que ninguém perecesse: na sua viagem missionária a Nínive, centenas de milhares foram poupados da destruição (Jonas 3.10). O nome de Jonas ficou gravado nas ruínas da antiga capital Assíria, que chegou a seu auge por volta de 700 a.C., embora decaísse nas décadas seguinte, com o erguimento de Babilônia. 

Quanto aos Gentios, a lei dos Judeus não lhes foi imposta. Receberam a lei branda de Jesus quanto a amar a Deus e ao próximo; lei que também proibia um julgamento humano sobre as coisas que eram domínio de Deus (João 12.47,48). Apesar disso, em pouco tempo os Cristãos estavam julgando uns aos outros.

Irineus (130 - 202 d.C.), bispo grego de Lyon/França na 5ª geração de Cristãos, foi o primeiro a argumentar contra outras correntes dentro do Cristianismo. Ele estabeleceu o cânon de quatro evangelhos (havia muitos outros, hoje considerados apócrifos). Até que a Igreja se fundisse ao Império, as disputas teológicas apenas resultavam em discussões acaloradas ou ofensas mútuas. Mas em 315 d.C. (na 11ª geração de Cristãos, logo após o Edito de Milão), os Cristãos comandaram o extermínio de pagãos na Grécia, Egito e Palestina, justamente nas cidades onde residiam os grandes bispos. Em 380 d.C., o Edito de Tessalônica criminalizou as heresias. Apenas 5 anos depois, o bispo de Avilla/Espanha, Priscilliano, foi condenado por suas práticas de pureza, divisão radical entre mundo material maligno e mundo espiritual divino, associadas ao Gnosticismo. Mas a acusação foi de feitiçaria: ele e seus mais próximos morreram a golpes de espada, em nome de Jesus, enquanto suas enormes propriedades rurais foram confiscadas pelo novo rei.

A 1ª geração de Cristãos - aqueles que andaram com Jesus, Pedro e Paulo - preferiam morrer a levantar espadas contra outros homens. E isso aconteceu com eles. No séc. 19 apenas, os Estados do mundo tenderam a desvincular sua força militar da Igreja. Os massacres em nome da pregação de amor de Jesus, infelizmente, acompanharam a Igreja até os dias atuais, dependendo do poder concedido ou retirado dos religiosos.

IGREJAS CASEIRAS

No início da Era Cristã, os fiéis se reuniam em casas ou no imenso templo de Jerusalém. O mais antigo templo Cristão conhecido data do séc. 3, centenas de anos após o início do Cristianismo. Ainda assim, era uma casa adaptada para servir como templo¹.

E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração, Louvando a Deus, e caindo na graça de todo o povo. E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de salvar.” (Atos 2.46,47)

Pelo que sabemos da igreja primitiva, eles se encontravam diariamente e comiam juntos. Nada aproxima mais as pessoas mais do que fazer refeições juntos, mas elas também se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão. Essas reuniões não eram pequenos sermões.

Jesus era um homem pobre, que descansava do trabalho comendo e falando com seus amigos. Muitas vezes, contando as tantas parábolas que Mateus registrou. Hoje, as igrejas se reúnem em instalações enormes e as pessoas raramente comem juntas, exceto em ocasiões especiais. Numa dessas várias “ceias”, Jesus falou ardentemente enquanto rasgava e comia pão, e tomava vinho em copo de cerâmica numa mesa com os companheiros também faladores. Paulo e João descreveram grandes ensinamentos, mas não sabemos se falavam da mesma reunião (da qual/is apenas João teria participado). Isso foi substituído por cerimônias solenes, com pessoas bem vestidas e em templos. Crentes silenciosos, que sequer se conhecem, fazem fila para receber sagrados pedaços minúsculos de amido ou de pão e diminutos copinhos de suco de uva, ou então assistem o sacerdote recitando enquanto toma o vinho de uma grande taça dourada.

As pessoas ainda se chamam de “irmãos” mas nada sabem, nem participam das vidas uns dos outros. Mesmo irmãos raramente fazem isso, hoje. Quando o fazem, em função da Igreja, não passa de um policiamento milicialesco coletivo dos membros, uns vigiando os pecados dos outros.

IGREJA EVANGELÍSTICA

Uma das principais diferenças entre a Igreja de hoje e primitiva era que antes éramos muito mais evangelísticos (Atos 13). Talvez essa diferença seja inevitável, no séc. 21, em um país com 89% da população declarando-se Cristã. Sem dúvida, o evangelho se espalhou pelo mundo junto com os Judeus.

A severa perseguição da Igreja pelos Judeus e depois pelos Romanos espalhou o evangelho por toda parte do Império. Vários apóstolos levaram o Cristianismo para Turquia, Síria, Egito, Iêmen, Índia. Quando as perseguições se acirraram (por volta de 64 d.C., com o grande incêndio de Roma e as revoltas populares na Judéia), os Romanos nem viam mais diferenças entre Judeus e Cristãos. Todos foram expulsos de suas terras, e um fluxo centrífugo de Judeus e Cristãos se iniciou.

Paulo escreveu: “Primeiramente dou graças ao meu Deus por Jesus Cristo, acerca de vós todos, porque em todo o mundo é anunciada a vossa fé.” (Romanos 1.8). Talvez o evangelismo tenha sido levado mais a sério porque a Grande Comissão dada por Jesus ainda estava fresca na mente dos apóstolos. Ou porque o Cristianismo era então uma fé desconhecida, mais estruturada que as crenças pagãs nas bordas do Império, menos seletiva que o Judaísmo, e mais fervorosa (afinal, contava de um contato recente com O divino).

Na sociedade Romana, era esperado que todos participassem de um culto, mas poucas pessoas acreditavam em Marte ou Vênus. A maioria simplesmente tinha seus ancestrais protetores. Por isso também não se importavam muito com os imperadores em seu panteão. No final do segundo século, quase todas as religiões populares - especialmente o mitraísmo - se alinhavam de alguma forma com o monoteísmo solar. Assim, os Cristãos frequentemente discutiam Jesus entre o deus-sol pagão e a “luz do mundo”. Clemente de Roma, no séc. 1, discutiu a Ressurreição comparando-a com a história da fênix, algo que devia ser familiar aos Romanos.

É também possível que os Romanos fossem bastante obedientes em cultuar os deuses de seus senhores. No séc. 3, os Cristãos ainda representavam apenas 2% do Império. No séc. 4, porém, após a adesão do imperador Constantino, esse número chegou a 56% da população.

OS POBRES

Hoje, muitas igrejas gastam a maior parte de sua receita com infra-estrutura, locando novos prédios, pagando dívidas bancárias e outros suplementos materiais ao ministério. Observe o orçamento de qualquer igreja e você provavelmente encontrará 1 ou 2% dos fundos alocados à benevolência ou caridade - ajuda às pessoas carentes. Talvez outros 5 ou 10%, na melhor das hipóteses, sejam dados a necessidades externas à igreja que, em algum nível, ajudem os pobres. Estou chutando muito alto.

Mas essa distribuição de fundos contraria o modo como a Igreja primitiva gastava seu dinheiro. O Novo Testamento fala muito sobre doar dinheiro, mas raramente - se é que alguma vez - fala sobre gastos institucionais.

Os Judeus tinham o dízimo como lei, que significava doar 10% dos seus ganhos para o Templo, tanto no que se refere a dinheiro como a animais, alimentos, etc (é isso que significa dízimo - a 10ª parte). As poucas menções do dízimo no Novo testamento, por outro lado, são no contexto do jovem rico (impecável pela lei, mas recusou-se a seguir Jesus) e no contexto da herança de sacerdócio. Jesus enfatizava não o dízimo, mas a generosidade. Ele acrescentou que seu discípulos não deviam dar 10%, mas tudo que possuíssem, para o bem dos que deles precisavam.

Segundo Jesus (e Paulo seguiu na mesma linha), dar devia ser uma atitude de amor, medida com a necessidade do próximo, para que “a vossa abundância supra a falta dos outros, para que também a sua abundância supra a vossa falta, e haja igualdade” (2ª Coríntios 8-9). Em especial, o Novo Testamento não fala de doar ao Templo ou a um templo, mas aos que precisam (1ª Coríntios 16.1-3). De fato, Paulo gastou mais tinta falando sobre dar às pessoas pobres do que sobre a doutrina da justificação pela fé. O próprio Jesus disse que dar aos pobres era o principal meio pelo qual Ele separaria os maus dos justos:

"Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Tive fome, e destes-me de comer. Tive sede, e destes-me de beber. Era estrangeiro, e hospedastes-me. Estava nu, e vestistes-me. Adoeci, e visitastes-me. Estive na prisão, e foste me ver. Então os justos lhe responderão, dizendo: ‘Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? Ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? Ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?’ E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes." (Mateus 25.34-40)

Se levarmos a sério as palavras de Jesus - e o orçamento de nossas igrejas sugere que não - podemos não gostar do que nos está reservado².

MILITARISMO

Outro valor moderno que a Igreja primitiva desconhecia é o militarismo. O militarismo se refere à "crença ou desejo de que um país deve manter uma forte capacidade militar e estar preparado para usá-lo agressivamente para defender ou promover interesses nacionais". Não há dúvida sobre isso - o militarismo está fortemente ligado aos valores Cristãos. No Brasil e na Bolívia atuais, isso não poderia estar mais claro.

O historiador militar Andrew Bacevich vasculhou as raízes do militarismo Estadounidense e descobriu que, por detrás das cortinas, não havia outro senão a Igreja Evangélica. Ele concluiu: “Não fosse o apoio oferecido por várias dezenas de milhões de evangélicos, o militarismo neste país profunda e genuinamente religioso seria inconcebível.

Ele estava falando especialmente das campanhas Estaounidenses no Oriente Médio e Oeste da África. Foram campanhas contra governos matadores de homens, financiadas com muito mais dinheiro das igrejas do que já foi aplicado em causas sociais. No Brasil, temos um Estado que volta-se cada vez mais ao setor militar, eleito como protetor da comunidade “contra a desordem” (por exemplo nas áreas educacional, meio-ambiente, etc). Esse Estado é fortemente apoiado pelas Igrejas Evangélicas através de dinheiro para campanhas políticas e apoio no Congresso Nacional. Nas transformações atuais da Bolívia, um líder populista (nominalmente da Esquerda) foi derrubado e houve a tomada de poder pela Direita. Pelo que sabemos, até agora apenas ideologicamente, o novo governo levanta a bandeira das Igrejas Evangélicas como apelo popular.

O militarismo foi sempre algo praticado por um grupo majoritário que teme a contaminação ou perda de hegemonia. Os Egípcios usaram o militarismo (em nome dos deuses) contra os Judeus que povoavam sua costa norte. Os Judeus usaram o militarismo (em nome de YHWH) contra os Cananeus das terras onde chegavam. Os Gregos usaram de militarismo (em nome de Apolo) contra os Judeus em sua colonização do Oriente Médio e Europa. Os Romanos usaram de militarismo (em nome de César e Augusto) contra os Judeus. Hoje os Cristãos do Ocidente usam de militarismo (em nome de Jesus) contra os Muçulmanos e grupos não-evangélicos.

A igreja primitiva, minoritária e perseguida, obviamente não era militarista. Apesar disso, o que se esperava de Jesus era um líder militar-revolucionário que expulsaria os Romanos como no tempo dos Macabeus³. Os primeiros Cristãos nunca ficaram fascinados com o poder das forças armadas romanas. Ao contrário, eles se apegaram a uma pregação onde o mal é conquistado não por espadas e lanças, mas por sofrimento e amor. De fato, o versículo mais citado entre os primeiros Cristãos era sobre amarmos nossos inimigos (Mateus 5.44 e João 3.17).

Hoje, isto está enterrado sob uma pilha de advertências e notas de rodapé - não podemos mais amar de verdade todos os nossos inimigos, como Jesus mandou. Quando se trata de pessoas percebidas como ameaças, a maioria dos Cristãos de hoje prefere a justiça (e entendamos isso como provocar sofrimento ao próximo, porque somos mais poderosos, até que ele se curve) à graça ou amor.

Talvez os Cristãos devam servir nas forças armadas ou usar a violência como último recurso para defender os inocentes. Mas quando a Igreja se tornou o motor por detrás da máquina militar - para defender ou promover agressivamente os interesses nacionais - nós fugimos das raízes da Igreja primitiva. Preferimos a lealdade a Roma (que agora é nossa) à lealdade ao Reino de Deus, com sua simplicidade e humildade.

A BÍBLIA

A Igreja primitiva valorizava o estudo dos textos sagrados. Jesus, como os demais Judeus, era conhecedor dos profetas antigos. Mas os primeiros Cristãos não eram necessariamente Judeus, e também não dispunham de Bíblias como temos hoje.

O evangelho de Mateus foi escrito em hebraico, por volta do ano 70 d.C. Como as primeiras reuniões Cristãs são de 40-50 d.C., época próxima às cartas de Paulo (ex. Romanos, Efésios, Coríntios, Gálatas), Mateus deve ter sido posto em forma escrita pela 2ª geração de discípulos, por ocasião das investidas de Roma contra as revoltas na Judéia. O mesmo se deu com o evangelho de Marcos. Embora semelhantes, há sinais de que Marcos é mais antigo que Mateus. Lucas é, segundo o próprio autor, uma produção a partir de pesquisa histórica. Há um consenso de que teria ganhado sua forma final por volta de 90 d.C., após a destruição de Jerusalém. Lucas e Atos são obras do mesmo autor, que certamente era Romano. Do final do 1º século também temos o evangelho de João, elaborado por uma comunidade bastante separada das que produziram os demais textos. Dessa 3ª geração de discípulos também vêm outros livros, como o Pastor de Hermas e a Didache, não incluídos na Bíblia. Sua variedade já testemunha como o Cristianismo se espalhava rapidamente.

O material de que a Igreja primitiva dispunha era alguma das cartas de Paulo, algum dos evangelhos decorado, não necessariamente em forma escrita, e/ou um dos primeiros livros de ensino religioso, como o Pastor de Hermas e a Didache. Ambos os últimos eram ensinos metodológicos, sobre “como o Cristão deve viver”. Os evangelhos eram provavelmente usados como justificativa ou pano de fundo dos ensinamentos. Além disso havia obras (sobretudo Gnósticas*), que ganhavam o apreço popular e eram misturadas aos ensinos nas casas dos Cristãos, o que Paulo repudiava.

Hoje, a maioria dos lares Cristãos possui várias Bíblias e suas igrejas possuem uma variedade de estudos bíblicos. As igrejas são enormemente distintas em termos de pregação e teologia, embora todas sigam os mesmos textos. Os Cristãos de hoje são bastante afetados por essas filosofias locais, pois exibem um analfabetismo bíblico sem precedentes. De acordo com uma estatística, 60% dos Cristãos que confessam ter “nascido de novo” não podem citar 5 dos 10 mandamentos; 81% não acreditam (ou não estão cientes) dos princípios básicos da fé Cristã; e 12% pensam que Joana d'Arc era a esposa de Noé (que, afinal, tinha uma Arca).

Os primeiros Cristãos precisavam estudar muito para entender o que lhes chegava, de autores originais que eram Judeus e Romanos. As cartas de Paulo, por exemplo, não contêm apenas citações diretas do Antigo Testamento, mas também muitas alusões sutis (frases breves). O livro de Apocalipse não contém uma única citação direta do Antigo Testamento, e ainda assim possui mais de 500 alusões a palavras ou frases dele. Essas alusões só poderiam ser entendidas por homens familiarizados com as Escrituras.

Jesus disse a seus discípulos para ensinar aos outros "tudo o que eu te ordeno" (Mateus 28.19,20). Sem dúvida, ouvir sobre montanhas, rios e poços sagrados de terras distantes exigia imaginação. No mundo greco-romano, a escrita ainda era algo mais comum, de forma que a Igreja primitiva podia se beneficiar das cartas apostólicas e não tardou a veicular cópias dos evangelhos. Por outro lado, em muitos cantos o Cristianismo era proscrito e raras versões escritas dos textos eram memorizadas e replicadas pelas pessoas. Os escritos mais antigos que nos chegaram foram encontrados em Nag Hammadi e datam do séc. 3**.

Tudo indica que as obras Cristãs dos primeiros séculos eram muito valiosas aos seus possuidores. As que foram preservadas sempre estavam em locais secretos, altamente protegidas e guardadas. E ainda assim foram feitas muitas cópias delas, em locais distantes, provavelmente através da memória de alguém - o que mostra que eram usadas, não só guardadas. Os primeiros Cristãos ficariam perplexos com a nossa capacidade moderna de possuir e não ler, ou ainda negligenciar os textos sagrados.

Receio que nosso desejo de voltar à igreja primitiva exija uma revisão bastante extensa de como nos portamos..

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¹ Em meados do séc. 3 d.C., na Síria, uma comunidade Cristã convenceu um residente local fazer da sua casa um salão para reuniões. O proprietário até instalou um batistério e fez pinturas de cenas do Novo Testamento nas paredes. Essa casa transformada é o mais antigo exemplo de arquitetura Cristã que temos. E ela foi produzida num período em que os Cristãos supostamente eram perseguidos.

A cidade, Dura-Europos, ficava numa região de maioria judaica, nas bordas de Roma. A casa em questão continha cenas de Adão e Eva, Davi e Golias, o Bom Pastor, Jesus e Pedro andando sobre as águas e as Três Marias visitando a tumba de Jesus. Lá também foram encontrados fragmentos de pergaminho usados em batismos, altamente semelhantes ao texto da Didache.

² No mundo moderno, as doações religiosas são quase totalmente concentradas nos templos e o fluxo de caixa das igrejas Brasileiras é largamente desconhecido. Cerca de 20% dos fiéis pagam dízimos, a imensa maioria deles sendo pessoas sem problemas financeiros. Alguns pastores (Estadounidenses) são conhecidos por fazerem grandes doações de seus ganhos pessoais. Os membros de denominações são mais dados a fazer (outras) doações do que as pessoas sem denominação religiosa, mas isso é tudo que sabemos.

O pouco interesse das igrejas Evangélicas para desenvolver atividades sociais vem de longa data. Sua motivação fundamental é alegadamente a oração. As obras não são essenciais (quase ninguém lê até o livro de Tiago..) porque não são elas que levarão à Salvação, mas a justificação pela fé. Apesar disso, os investimentos das grandes congregações no povoamento de templos produzem super-fortunas e traçam alianças políticas. Elas supostamente são muito mais representativas da aprovação de Deus do que seria uma escola, hospital ou auxílio a famílias necessitadas (que devem ser, afinal de contas, destituídas da Graça).

Nos EUA, onde isso é mais tabelado, sabemos de grandes pastores com salários de 3 a 500 milhões de dólares. Ok, agora levante-se e volte para a sua cadeira. Esse ganho pessoal geralmente representa 3% da entrada das igrejas (de onde projetamos uns $100 milhões a $17 bilhões mensais, por congregação). Cerca de metade do valor é gasto com pagamentos de várias outras pessoas (ex. contabilidade, advogados, canal de televisão, etc). Apesar disso, as doações das igrejas Estadounidenses à caridade não representam nem 5% do total arrecadado. A maior fatia vem de doações individuais.

No Brasil, a imensa maioria de obras “sociais” das igrejas são, na verdade, empreendimentos financiados pelos dízimos onde se paga (e caro) por um serviço como educação ou atendimento médico, sem abono para os pobres. No setor privado, os mesmos empreendimentos são conhecidos por atrair grandes corporações e produzir lucros vultuosos.

³ No ano de 167 a.C., a Judéia estava invadida pelos Gregos e a autonomia do culto Judeu estava sendo violentamente perseguida, em prol do culto aos deuses gregos. Na chamada Revolta dos Macabeus, um grupo de Judeus restaurou o Templo, então abandonado, e estabeleceu Jerusalém como um reino independente. Essa independência cruzou-se com as disputas de poder dentro do imenso reino de Alexandre o Grande, garantindo a liberdade dos Judeus até a chegada dos Romanos. Ver Os dois lados de uma Cleópatra.

* O Gnosticismo é uma facção transcendental dos Judeus. Segundo seus adeptos, o mundo estava repleto de sinais secretos de Deus, ensinamentos que podiam ser encontrados apenas pelos “iluminados”. Dessa forma, visões e profecias eram uma forma poderosa de trazer tais ensinamentos ao público, ainda que não se realizassem ou fossem radicalmente diferentes entre um visionário e outro. Os escritos Gnósticos eram muito populares na Judéia, conseguindo seu lugar nas 1as reuniões Cristãs.

** A biblioteca de Nag Hammadi localizava-se no Alto Nilo, sendo composta por muitos manuscritos dos sécs. 2 e 3 guardados em jarros e enterrados em cavernas. A tradição nos ensina que o Cristianismo chegou ao Egito através de uma comunidade fundada pelo evangelista João Marcos, companheiro de Paulo e Lucas em suas viagens. Acredita-se que as obras de Nag Hammadi, em grande parte textos Gnósticos, pertenciam a um monastério perseguido assim que a Igreja fundiu-se ao Império Romano. Com essa oficialização da Igreja, os grupos Cristãos que se diferenciavam do credo imperial passaram à condição de hereges. Entre os vários livros encontrados ali estão os evangelhos de Tomé e Filipe, além de vários outros apócrifos Cristãos.

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PROSCRITOS DA INFANTARIA GOSPEL


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