quinta-feira, 28 de março de 2013

Pedro, o discípulo teimoso

Pedro liberto da prisão por um anjo
quadro de Gerard von Honthorst

Pedro foi uma figura central do Novo Testamento e esteve presente em todos os acontecimentos dos evangelhos sinópticos (de sinopse, ou resumo de uma história) onde Jesus se reunia com os apóstolos. Para a Igreja Católica, ele é considerado até mesmo o 1º papa, e ainda aquele que guarda as entradas do paraíso. Aqui, vamos analisar alguns fatos a respeito de Pedro de acordo com a Bíblia e com documentos antigos falando dele.

Nos evangelhos, Pedro nasceu com o nome Simão Barjonas (filho de Jonas). Ele era pescador na cidade de Betsaída, na província da Galiléia. Sabidamente, Pedro era irmão de André e provavelmente tio de João. Betsaída era uma cidade na margem norte do lago de Genesaré (também chamado lago da Galiléia), que no passado havia sido fortemente influenciada pela cultura Síria. Nos tempos de Jesus, essa influência ainda prevalecia na língua falada (siríaco, além de outras secundárias como o aramaico e o dialeto grego “koiné”), mas a província havia sido anexada por Roma havia muitos anos. Uma das pessoas curadas por Jesus foi a sogra de Pedro, em Cafarnaum (outra cidade no norte do lago, a 5 Km de Betsaída), de forma que ele era um homem casado (1Co 9.5).

O ENCONTRO COM JESUS

João (o apóstolo) conta que André e Simão seguiam João Batista, quando este anunciou que Jesus era o Messias. Assim, os dois irmãos e Filipe teriam sido os primeiros a seguir Jesus (Jo 1.32-42). Logo nesse 1º encontro, Jesus chamou Simão de Cefas. A palavra “Cepha” ou “Kepha” em siríaco significa “pedra”. No grego “koiné”, pedra se traduz como “petrus”, de onde vieram os nomes Pedro, Petra (a cidade), Pierre (francês), Piotr (polonês) e Pietro (italiano). A identificação de Simão com “pedra” é curiosa, e já estimulou diversos debates teológicos.

Simão foi o único a ter seu nome trocado por Jesus, mas uma mudança semelhante aconteceu com Paulo (antes chamado Saulo). Mais ainda, porque “pedra”? A Bíblia ou Jesus simplesmente não dão explicações para isso.

Lucas dá uma versão diferente desse encontro. Segundo ele, Jesus foi ao lago de Genesaré seguido por uma multidão e lá subiu no barco de Simão para pregar. Logo depois, pediu a Simão (que acabara de voltar sem peixes da pescaria durante a noite) que afastasse seu barco da terra e jogasse as redes. Segue-se então uma pesca farta, quando Simão (já com o sufixo Pedro) se prostra aos pés de Jesus e é chamado de “pescador de homens”. Nessa ocasião juntam-se a Jesus os irmão Tiago e João, filhos de Zebedeu, que trabalhavam com Simão (Lc 5.1-11).

Mateus apresenta uma descrição mais sucinta, que mescla elementos de ambas: segundo ele, Jesus ensinava nas margens do lago, próximo a Cafarnaum, e chamou os irmãos Simão (chamado Pedro) e André, que pescavam com redes, nomeando a ambos de “pescadores de homens”. Em seguida ele chamaria Tiago e João, que consertavam redes junto com seu pai Zebedeu (Mt 4.12-22). Coisa muito semelhante é relatada por João Marcos, com Jesus logo mudando o nome de Simão para Pedro (Mc 1.16-21).

ANDANDO COM O MESTRE

Embora João fosse “o discípulo a quem Jesus amava”, o único a estar junto no momento da crucificação e ter sido um dos evangelistas, Pedro é o discípulo de quem os evangelhos sinópticos mais falam. Há muitos indícios de que Pedro exercia certa autoridade sobre os demais discípulos; provavelmente era o mais velho deles, e assim lhe cabia autoridade, segundo o costume judaico. Chamado por muitos de “o intrépido”, Pedro parecia ser sempre o mais impetuoso e primeiro em tomar as lições que Jesus apresentava. Também, freqüentemente era a quem Jesus se referia para indagar questões aos apóstolos.

Em Cafarnaum, quando a mulher com fluxo de sangue tocou a roupa de Jesus e foi curada, enquanto Ele falava com Jairo (o chefe da sinagoga) apenas a indignação de Pedro é registrada: “Mestre, a multidão te aperta e te oprime, e dizes: Quem é que me tocou?” (Lc 8.45). Ao chegar na casa de Jairo, Jesus leva para dentro consigo apenas Pedro, Tiago e João (Lc 8.51). O mesmo trio foi com Jesus ao monte de Betsaída para orar durante a noite, quando Jesus assumiu sua aparência celestial e falou com Moisés e Elias. Novamente, é Pedro quem se manifesta dizendo que faria tendas para os seres celestiais (Lc 9.28-36).

Em Betsaída, Jesus parece se importar sobremaneira com quem Pedro pensava ser Ele: “E vós, quem dizeis que eu sou? E, respondendo Pedro, disse: O Cristo de Deus.” (Lc 9.20). Quando, navegando sobre o lago durante a madrugada, os discípulos viram Jesus andando sobre as águas, foi Pedro quem gritou “Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas” (Mt 14.28).

A FÉ DE PEDRO

Curiosamente, é justamente a fé de Pedro (e não de outros apóstolos) que Jesus contesta, diversas vezes. Além da ocasião em que Pedro é chamado a caminhar sobre o lago em meios às ondas, na ocasião de “última ceia” em Jerusalém ocorre um diálogo intenso entre Pedro e Jesus:

E houve também entre eles contenda, sobre qual deles parecia ser o maior. E ele lhes disse: “Os reis dos gentios dominam sobre eles, e os que têm autoridade sobre eles são chamados benfeitores. Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve. Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós sou como aquele que serve. E vós sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentações. E eu vos destino o reino, como meu Pai mo destinou, para que comais e bebais à minha mesa no meu reino, e vos assenteis sobre tronos, julgando as doze tribos de Israel”.

Disse também o Senhor: “Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo, mas eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, confirma teus irmãos.” E ele lhe disse: “Senhor, estou pronto a ir contigo até à prisão e à morte”. Mas ele disse: “Digo-te, Pedro, que não cantará hoje o galo antes que três vezes negues que me conheces”. (Lc 22.24-34)

Esse é um dos dois diálogos pelos quais Pedro mais é lembrado. Afinal, a profecia de Jesus não tardou a se cumprir. Mas atentemos para a fala de Jesus: “... quando te converteres ...”. Seria possível que, após ser o 1º chamado, presenciar milagres e até caminhar sobre as águas, Pedro ainda não visse em Jesus o Deus Filho? Se assim fosse, talvez ele não tivesse zelado pela própria segurança quando negou conhecer a Jesus, no pátio de Caifás. Pedro o via como um rabi milagroso, e várias vezes já havia sido questionado, mas não necessariamente entendia o que Ele realmente significava. Jesus testava Pedro, Pedro testava Jesus. E eis aí provavelmente o que o fazia um paradoxal “pescador de homens”: a dúvida de Pedro era a mesma de todos que rodeavam Jesus.

O segundo diálogo pelo qual Pedro é lembrado diz respeito levanta até hoje disputas teológicas.

Disse-lhes ele [Jesus]: “E vós, quem dizeis que eu sou?” E Simão Pedro, respondendo, disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. E Jesus, respondendo, disse-lhe: “Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus. (Mt 16.15-19)

Não há explicações posteriores sobre o que Jesus quis dizer. Em grego “koiné” e siríaco, “Pedro” e “pedra” se escreviam exatamente da mesma forma. Jesus bem poderia estar dizendo “... digo que tu é pedra …”, ou “... sobre este Pedro edificarei minha igreja …”, ou poderia diferenciar a ambos. Não há nenhuma passagem semelhante a “ligar e desligar nos céus”. Alguns vêem aí Jesus designando Pedro como autoridade sobre a igreja (isso seria cabível, pela posição dele), e ele teria então o poder de levar ou não as pessoas aos céus. Outros vêem a atribuição de um trabalho a Pedro, no sentido de levar as pessoas a conhecer o Reino de Deus, e recebendo de Jesus o poder para isso. Jesus também se referia a si mesmo como “a pedra angular” ou “a pedra de esquina” (Mc 12). A confusão vem do fato de que, historicamente, o grande propagador do cristianismo foi Paulo, e não Pedro. Entretanto, a tradição católica vê aí Pedro tornado em “santo”, ou guardador das portas dos céus e iniciador da linhagem papal.

A DÚVIDA DE PEDRO

Pedro, sempre impulsivo, tirou da espada quando os guardas apareceram no Getsêmane para prender Jesus, e decepou a orelha direita do guarda Malco (Jo 18.10). Após ser repreendido por Jesus, este curou a orelha do guarda (Lc 22.51). Depois da impetuosidade toda, entretanto, cumpriu-se a profecia onde Pedro negou que conhecia Jesus e se arrependeu amargamente. Parece curioso um homem enfrentar guardas, mas desviar-se de acusadores: para Pedro, o desafio não estava no combate, mas no prejuízo moral. E então, ficar junto de um “mestre” como Jesus ou até João Batista poderia significar, para ele, simplesmente estar “enaltecido”, como se ele pudesse compartilhar da glória dos outros. No pátio de Caifás, essa glória se tornara em prejuízo, e Pedro facilmente se afastou de Jesus (Lc 22.54-62). Como sempre, o carisma de Pedro está na facilidade com que ele reflete os defeitos de todos os “homens de pequena fé”.

A Bíblia fala sobre três Marias junto da cruz quando Jesus morreu, além de João, mas não fala de Pedro (e falaria se ele estivesse lá, pois é o discípulo mais citado nos evangelhos). Apesar disso, Paulo declara o que lhe haviam ensinado: que Jesus ressuscitara e apareceu a Pedro antes de qualquer outro (1Co 15.3-8). Após a morte de Jesus, os discípulos voltaram às suas profissões: Paulo fala a favor dos que precisavam cuidar de suas esposas (1Co 9.3), e João descreve os pescadores reunidos numa ocasião em que Jesus apareceu, da praia mandando que jogassem suas redes. Nesse ofício trabalhavam não menos que Pedro, Tomé, Natanael, Tiago e João. Na ocasião, Pedro, não menos impetuoso, pulou nu na água para ir onde Jesus estava (Jo 21).

PEDRO DEPOIS DE JESUS

Paulo foi o principal responsável por espalhar o cristianismo aos gentios. Entre os judeus, essa função foi exercida por Pedro. Foi célebre a divisão entre eles, quando Pedro falava em judeus melhores que os gentios mas juntava-se a eles, e Paulo o repreendeu por sua hipocrisia (Gl 2.1-14). Pelo menos em Jerusalém, Pedro não se firmou como um líder cristão proeminente. Um dos documentos mais antigos sobre o cristianismo, escrito por Clemente de Alexandria no ano 190 d.C., recorda Tiago como bispo de Jerusalém. Apesar disso, a Bíblia relata Pedro tomando a posição de líder após a morte de Jesus e elegendo Matias para o lugar antes ocupado por Judas Iscacriotes (Atos 1.12-23).

Pedro também fez a famosa pregação no dia de Pentecostes (50 dias após a Páscoa e, portanto, após a Ressurreição), onde declarou que Jesus representava Deus e converteu a cristianismo 3 mil pessoas. Assumindo o propósito de converter os judeus, junto com João, a dupla chegou a ser ameaçada pelo Sinédrio e Pedro declarou altivamente sua crença perante eles (Atos 4.1-22).

Pedro é apontado no livro de Atos como efetuador de diversos milagres na igreja primitiva, geralmente em companhia de João, o que reforça que ele exercia uma função de autoridade. Assim como Paulo, Pedro empreendeu viagens pela Ásia Menor, visitando grupos cristãos em Antióquia (onde teria atuado como bispo) e talvez Corinto, onde documentos antigos falam de uma comunidade cristã chamada “Cefas”. Foi em Antióquia que Paulo e Pedro tiveram seu famoso encontro (Gl 2.11-14)..

Pedro finalmente retornou a Jerusalém, onde Herodes mandou prendê-lo e um anjo apareceu para libertá-lo milagrosamente da prisão (Atos 12.11-18). Após esse acontecimento, o narrador de Atos (possivelmente Lucas) distancia-se de Pedro, o que sugere que ele tenha passado a seguir Paulo em suas viagens.

A MORTE DO PESCADOR

Os demais livros da Bíblia não falam sobre o que teria acontecido a Pedro. Supostamente ele morreu em Roma mas, em sua carta aos Romanos, Paulo não fala sobre Pedro.

Jesus havia alertado sutilmente Pedro quanto a uma morte violenta, primeiro afirmando que o diabo havia pedido sua alma para maltratá-lo (e exemplo de Jó) (Lc 22.31-32) e depois ao sugerir que em sua velhice ele seria preso (Jo 21.18). Um livro do séc. 9 fala da tradição de que Pedro teria estado por 7 anos em Antióquia como bispo, deixando sua família lá para seguir até Roma. Os historiadores Tertulliano e Eusebius, no séc. 2, escreveram que em sua ida a Roma, Pedro foi preso e condenado a ser crucificado, ao que ele teria se dito indigno, escolhendo ser crucificado de cabeça para baixo.

Entre 1963 e 1968, a historiadora Margherita Guarducci escavou a suposta tumba de Pedro na Basílica de São Pedro, em Roma. A Basílica foi construída por ordem de Constatino 1 no séc. 4, quando Roma se tornou um reino cristão. Entre os problemas na construção, citava-se a presença de um cemitério no local. Além desse cemitério romano do séc. 1 sob a basílica, a escavação arqueológica encontrou ossos de um homem de 61 anos, morto no 1º século e sepultado sob o altar. A historiadora estimou sua morte em 13 de outubro de 64 d.C., durante as festividades dos 10 anos da coroação de Nero. Apenas alguns meses antes, esse mesmo rei teria mandado os soldados incendiarem Roma e atribuir o incidente aos cristãos na cidade.

O historiador romano-judeu Flavius Josephus escreveu sobre como o soldados romanos se divertiam ao crucificar pessoas em diferentes posições. Finalmente, Clemente de Roma, entre 80 e 98 d.C. escreveu sobre Pedro:

Tomemos os nobres exemplos de nossa geração. Através de ciúme e inveja, os pilares maiores e mais justos da Igreja foram perseguidos, e foram até a morte ... Pedro, pela inveja injusta, suportou não uma ou duas, mas muitos trabalhos, e, finalmente, depois de ter entregue o seu testemunho, partiu para o lugar de glória devida a ele.

CARTAS DE PEDRO

Curiosamente, a autoria das famosas epístolas não é creditada a Pedro, mas a seus seguidores. Era uso comum na antiga Roma que os seguidores atribuíssem suas obras a algum mentor influente, mesmo já morto. A 1ª carta de Pedro fala da perseguição aos cristãos na Ásia Menor durante o reinado de Domitiano (81-96 d.C.). A 2ª carta de Pedro só foi admitida como canônica (verdadeira) no séc. 4, depois de muitos debates (pois haviam muitos apócrifos supostamente escritos por Pedro). Atualmente, acredita-se que ela foi escrita no final do séc. 2, pois não é citada por escritores cristãos famosos como Clemente de Alexandria.

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