sexta-feira, 31 de julho de 2015

Walking on the water

Lago de Genesaré. Vista do lago, em Cafarnaum.

Mapa mostrando as possíveis trajetórias da embarcação que Jesus encontrou, segundo cada um dos evangelistas.

Na Bíblia, diversos acontecimentos são retratados mais de uma vez e, curiosamente, de formas diferentes. Embora isso de fato adicione a certeza de que não houve simplesmente a cópia de um texto por outro, algumas vezes coloca diferenças bastante gritantes entre os relatos. Mais ou menos como se diversas testemunhas de um crime atribuíssem a autoria um a José, outro a João, outro a Dna. Joaquina. Milênios depois do ocorrido, nos resta olhar para tais divergências e engendrar formas de acomodá-los todos a uma única verdade e, por vezes, discernir que alguém estava enganado quanto ao testemunho que nos deixou.

De acordo com a doutrina da Inerrância Bíblica, tudo o que está escrito nos 66 livros bíblicos (na versão Protestante) foi inspirado direta ou indiretamente por Deus e assim constitui verdade absoluta. Ao mesmo tempo, esses 66 livros foram selecionados de uns 80, desde o século 2, tomando-se como critério que os livros do Velho Testamento (ou Torá judaica, VT) estavam corretos e os do Novo Testamento (NT) não fossem discordantes entre si e não fossem relatos copiados, mas testemunhos presenciais. Assim, de uma forma ou de outra, chegamos no séc. 19 a uma versão da Bíblia (dentre várias) produzida e conferida a partir dos textos mais antigos o possível em grego e hebraico, que está absolutamente correta - por determinação da doutrina de inerrância - ou que está o mais próximo possível da verdade por força da seleção rigorosa em que passou. Mesmo assim, o que fazer quando partes de testemunhos confiáveis discordam uns dos outros? Deixo aqui claro que não sou partidário da doutrina de Inerrância, por acreditar na participação efetiva de homens bem reais e “errantes” em tudo o que foi escrito.

Um exemplo marcante dessa divergência divide os 4 evangelhos bíblicos entre Sinóticos (ou históricos, Mateus, Marcos e Lucas) e o de João. A maior parte do que João relata não aparece nos Sinóticos e vice-versa. No entanto, todas as tentativas de “escolher entre uma versão e outra” falharam pois, mesmo discordantes, ambas as versões do ministério de Jesus exibem provas notáveis de sua credibilidade. Para começar, os relatos de uma versão não aparecem na outra, ao invés de aparecerem de forma diferente - o que não exclui a possibilidade de serem pelo menos duas versões parciais dos acontecimentos. Além disso, os Sinóticos também não são concordantes entre si; ao invés disso, mudam a seqüência dos fatos e os detalhes narrados. Pelo menos quanto à seqüência dos acontecimentos, o consenso atual é que o evangelho de João é mais preciso e que os Sinóticos foram compostos por fragmentos de pelo menos 2 textos originais organizados de forma diferente por cada um dos autores. Talvez seja uma forma muito mais suave de ver a inspiração de Deus no que está escrito.

Aqui, gostaria de gastar algumas linhas com dois acontecimentos: (1) a multiplicação dos pães e peixes e (2) Jesus caminhando sobre as águas. São acontecimentos sequenciais em todos os evangelhos, exceto Lucas, que não menciona o 2º deles. Além disso, a multiplicação dos pães e a ressurreição (de Jesus) são os únicos milagres relatados nos 4 evangelhos.

ALGUMAS DISCORDÂNCIAS

Os 4 evangelistas bíblicos relatam a incrível transformação de poucos pães e peixes em alimento para milhares de pessoas. Isso não deixa de pertencer ao papel curador de Jesus, no sentido em que garantia a saúde e a sobrevivência das pessoas. Como o maná que aparecia no deserto, esse alimento produzido de forma sobrenatural era um testemunho do favorecimento dos homens por um Deus superior à natureza e os limites físicos. Ao final, os discípulos ainda são mandados a “recolher as sobras”, o que faz parecer que a quantidade de comida produzida era ainda maior do que a multidão podia consumir. Fala-se em “12 cestos”, que podem representar o 12 discípulos, freqüentemente referidos pelos evangelistas como “os doze”. De qualquer forma, a multiplicação dos pães e peixes é sempre seguida da travessia do lago de Genesaré num barco, onde poderiam estar 12 pessoas, mas provavelmente não haveria espaço para 12 cestos de comida, a menos que fossem pequenos.

Primeiro, devemos ter em mente que o lago de Genesaré (também referido como Mar da Galiléia) é uma grande extensão de água doce de 11 x 25 Km, com colinas de 600 m de altura em todo o seu redor. O rio Jordão forma-se das águas desse lago que escoam até o Mar Morto, ao sul. A menos que o clima esteja muito ruim, vê-se claramente uma margem quando se está na outra. No séc. 1, o lago servia de “fronteira” entre as províncias de Galiléia (norte) / Judéia (sul) e Síria (norte) / Decápolis (sul), todas então sob controle romano. Ao redor do lago ficavam muitas cidades importantes como Tiberíades (capital da Judéia, recém construída em homenagem ao imperador romano Tiberius, onde deviam haver muitos carpinteiros trabalhando), Magdala, Genesaré (importante porto comercial), Cafarnaum (a maior cidade do entorno do lago), Betsaída (um importante porto de comércio), Gergesa e Hippo (bem afortunadas cidades romanas).

Abaixo seguem as narrativas dos evangelistas sobre o que aconteceu:

MATEUS - (14.13) Jesus soube da morte de João Batista (possivelmente em Tiberíades) e se retirou de barco para um lugar deserto. O deserto estava do lado leste do lago de Genesaré, no território da Síria. Lá, Jesus foi encontrado pela multidão e curava seus doentes. Ao fim da tarde, os discípulos queriam mandar as pessoas à aldeia próxima (talvez Kebar Akabia) para encontrarem mantimentos. Mas Jesus multiplicou 5 pães e 2 peixes para alimentar 5000 homens, sem contar mulheres e crianças. Os discípulos recolheram 12 cestos de sobras.

Jesus mandou seus discípulos irem para a outra margem (Tiberíades, Magdala ou Genesaré) e subiu num monte para orar durante a noite. O barco estava a boa distância da margem, navegando contra o vento, quando Jesus apareceu andando. Disseram “É um fantasma!”, mas Jesus os tranquilizou.

Apenas Mateus relata Jesus convidando Pedro a caminhar sobre as águas. Quando subiram na barca, o vento cessou e logo chegaram a Genesaré. Lá, Jesus foi curar os doentes.

Mateus relata uma 2ª multiplicação dos pães e peixes (Mateus 15.29), de forma mais breve. Jesus estava numa colina desértica, não queria despedir a multidão em jejum pois estavam havia 3 dias sem comer. Tinham consigo 7 (não se especifica quantos pães e quantos peixes), foram alimentados 4000 homens, além de mulheres e crianças e encheram depois 7 cestos de sobras. Jesus despediu o povo e embarcou para Magadã (vila supostamente próxima a Genesaré).

Numa outra ocasião, sem um contexto para isso, Jesus teve compaixão das multidões, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor. (Mateus 9.36).

MARCOS - (6.30) após saber da morte de João Batista (talvez em Tiberíades), Jesus e os discípulos vão de barco para descansar em um lugar deserto (do lado da Síria?). Mas quando desembarcaram, havia uma multidão à espera, como ovelhas que não têm pastor. Anoitecendo, os discípulos queriam despedir o povo para que buscassem provisões nos sítios e aldeias vizinhas. Não tinham 200 denários (que pagaria comida para 1000 pessoas), mas apenas 5 pães e 2 peixes. Jesus multiplicou isso para atender a 5000 homens e os discípulos recolheram 12 cestos de sobras.

Jesus ficou despedindo o povo e mandou os discípulos de barco a Betsaída, depois foi orar em um monte. Vendo que um vento forte os impedia de atravessar o lago, Jesus foi até eles “como se fosse passar ao lado deles”. Ao verem Ele, pensaram que era um fantasma. Quando Ele subiu no barco, o vento cessou e os discípulos estavam apavorados por não compreenderem a multiplicação dos pães.

Marcos também apresenta uma 2ª e breve multiplicação dos pães e peixes. O povo seguia Jesus havia 3 dias sem comer, então os discípulos perguntam "Onde, neste lugar deserto, poderia alguém conseguir pão suficiente para alimentá-los?" (Marcos 8.4) Tinham consigo 7 (entre pães e peixes?), que Jesus multiplicou para 4000 pessoas. Recolheram as sobras em 7 cestos e então Jesus foi para Dalmanita (vila supostamente próxima a Genesaré; há uma caverna lá com esse nome).

LUCAS - (9.10) os discípulos haviam feito muitas curas e Jesus se retirou com eles para um lugar deserto para o lado de Betsaída. Como a multidão os encontrasse, Ele curava e ensinava. Ao fim do dia, os discípulos pediram que Ele despedisse as pessoas para que fossem procurar alimento e hospedagem. Quando mandou que os alimentassem, eles tinham 5 pães e 2 peixes, mas questionaram se iriam comprar comida para todos os 5000 ali. Jesus multiplicou os alimentos para todos e recolheram 12 cestos de sobras. A narrativa de Lucas é truncada aí por outros acontecimentos; não se fala em andar sobre o lago ou em uma 2ª multiplicação.

JOÃO - Jesus estava na Galiléia e aproximava-se a Páscoa. Atravessou o mar com os discípulos (não sabemos para onde) e subiu a um monte. Ele pergunta a Felipe "Onde compraremos pão para esse povo comer?" (João 6.5). Felipe responde que 200 denários (dinheiro para alimentar 1000 pessoas) não bastariam. André apresenta um garoto com 5 pães de cevada e 2 peixes. Jesus multiplica-os e alimenta 5000 pessoas. Jesus diz "Ajuntem os pedaços que sobraram. Que nada seja desperdiçado" (João 6.12) e as sobras são postas em 12 cestos.

Após ser reconhecido como profeta e rei, Jesus retira-se para um monte. Os discípulos tomam um barco para Cafarnaum. Após remarem uns 5 Km (25 ou 30 estádios), Jesus se aproxima do barco e ficam aterrorizados. “Então se animaram a recebê-lo no barco, e logo chegaram à praia” (João 6.21). A multidão chega a Tiberíades, onde haviam comido o pão e, como Jesus não estava entre eles, partem para Cafarnaum e se maravilham de encontrá-Lo.

ALGUMAS OBSERVAÇÕES INTERESSANTES SOBRE A TRAVESSIA DO MAR

A posição inicial de Jesus em Tiberíades é reforçada pelo fato de que João Batista, que batizava no Jordão, devia ser conhecido naquela cidade. Mas há poucos detalhes sobre o local onde aconteceu a multiplicação dos pães; João, que afirma ser em Tiberíades o milagre dos pães e peixes, dificilmente poderia encontrar um lugar deserto naquela margem do lago, onde afloravam as vilas dos judeus e onde Jesus era um personagem conhecido por todos. Como o livro de João é repleto de revisões e anotações feitas posteriormente a sua escrita (ex. Jesus disse a Filipe: "Onde compraremos pão para esse povo comer? " [revisão ou anotação] Fez essa pergunta apenas para pô-lo à prova, pois já tinha em mente o que ia fazer. João 6.5,6), podemos supor que Tiberíades tenha sido colocada ali posteriormente. O estilo diferente do texto ao apontar a cidade apóia que se trate de uma revisão.

João cita que estavam próximos à Páscoa (abril a junho, dependendo do ano), o que é reforçado pela citação de que a multidão “sentou-se sobre a relva”. Na região ao redor do lago de Genesaré, o vento da primavera deixa úmidas as colinas a oeste. Assim, é provável que a multiplicação dos pães tenha se dado no lado sírio do lago, como sugerem Mateus e Marcos. Lucas ainda sugere a proximidade de Betsaída.

Durante a primavera e principalmente ao entardecer, o vento ali sopra na direção oeste-leste, sendo mais fraco no lado judeu do lago e mais forte no lado sírio. Os 3 evangelistas que narram a travessia do lago falam sobre o vento contrário que impedia o barco de prosseguir, o que estaria de acordo com uma saída na Síria e um destino em Genesaré ou Betsaída, ambas vilas de pesca farta e onde deviam residir vários dos discípulos. João nos tira essa dúvida:

Filipe, como André e Pedro, era da cidade de Betsaida. (João 1.44)

Ficando com Betsaída como destino final, temos Marcos dando os detalhes mais verossímeis sobre a famosa travessia: os discípulos saíram de algum ponto da Síria e margearam o lado oeste do lago rumo a Betsaída, contra o vento oeste, sendo encontrados por Jesus quase no final da travessia. Uma vez que muitos estudos sugerem Marcos como sendo a fonte das informações de Mateus, talvez não estejamos errados ao tomar a versão dele. Pobre Pedro.

ANDANDO EXATAMENTE ONDE?

É notável a continuação que Marcos dá a sua narrativa. Os discípulos encontraram Jesus “andando sobre as águas”, mas estavam preocupados com a multiplicação dos pães. De fato, Marcos não gasta uma linha falando sobre andar nas águas. Pior, apenas Mateus faz isso. João descreve o encontro com Jesus assim: “Então se animaram a recebê-lo no barco, e logo chegaram à praia” (João 6.21). Todo o discurso em João 6 trata da multiplicação dos pães e seu simbolismo semelhante a Moisés trazendo o maná para os judeus no deserto. Logo João, que se preocupou em interpretar os milagres de Jesus como se os usasse em uma espécie de aula ou catecismo.

Tomando a posição das vilas ao redor do lago de Genesaré no séc. 1, os discípulos poderiam ter embarcado em Gergesa ou Kefar Akabia, ambas a 10 e 5 Km de Betsaída, respectivamente. Qualquer um poderia ter feito esse trajeto a pé em 2 a 5 horas de caminhada pela planície, rodeando o lago. Mas talvez fosse muito mais cômodo (e rápido) viajar de barco, a menos que o vento o devolvesse para a margem. Jesus, que não embarcou com seus seguidores, poderia ter ido a Betsaída andando e ter encontrado os mais preguiçosos encalhados nalgum ponto do caminho. Fazendo as contas, Ele chegaria perto de Betsaída por volta de 1h da manhã. Mais um tempo orando no monte e temos a “alta madrugada” relatada por Mateus e Marcos, quando os navegantes O encontraram.

O texto em grego, no qual os evangelhos foram escritos, usa “epi tis thalassis” (επι της θαλασσης) para dizer que Jesus andou “sobre o mar”. “Epi” pode ter interpretações como sobre*, encima de*, em algum lugar#, junto de#, antes de%, na posição de%, além de%, contra%, para algum lugar%, através de*, ao redor de#, ao lado de#. As marcações com * indicam interpretações favoráveis a Jesus encima das águas. As marcações com # indicam interpretações favoráveis a Jesus rodeando o lago, por terra. As marcações com % indicam interpretações que não condizem com o contexto. Pelo menos estatisticamente, o grego nos deixa na dúvida se Jesus andava “encima do mar” ou “ao redor do mar”, bem diferente da crença quase universal em Jesus pisando as ondas, como Mateus descreve.

Se continuarmos tomando Marcos como referência, ele ainda acrescenta que Jesus passava “ao lado do barco”. Se pensarmos no Messias socorrendo seus discípulos nas ondas e na ventania, fica difícil entender porque Jesus não foi diretamente a eles, ou porque não se maravilharam com a chegada Dele daquela forma. Entretanto, um Messias caminhante que encontra os seguidores encalhados na margem (Ele teria tempo para isso) e vai até eles não seria motivo de alarme. Marcos e João não teriam deixado passar nenhum milagre, porém Mateus ficaria como um exagerado.

POR FIM

Existem muitas “exegeses” dando interpretações sonhadoras a um Jesus caminhando nas águas. Alguns falam em Deus controlando os elementos, outros em um Messias que desafia a natureza para salvar seus discípulos, outros ainda em uma prova do que a fé pode realizar. Exceto Mateus, que estende a Pedro o controle sobre os elementos e fecha sua narrativa com o famoso “Homem de pequena fé…”, nenhum dos evangelistas (nem mesmo João) se detém na interpretação desse acontecimento. Trata-se de algo a se pensar.

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PARA LER NA TEMPESTADE

"John", O'Day GR, Hylen S, Westminster John Knox Press, 2006
Tiberias - http://www.bible-history.com/
"Um homem chamado Jesus", Frei Betto, Ed. Rocco, 2009


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