sábado, 15 de fevereiro de 2020

Testemunhas da Ressurreição

As mulheres na frente da tumba de Jesus, num certo domingo de Páscoa

A Ressurreição é uma crença básica do Cristianismo. Conforme disse Paulo, "se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé" (1ª Coríntios 15.14). Isso porque a volta de Jesus dentre os mortos foi o sinal derradeiro de seu poder divino, confirmando as promessas de uma volta dos homens, quando serão julgados segundo Seus ensinamentos.

Mas mesmo a Ressurreição não escapa a vários debates. Um deles, bastante simples e significativo, é sobre quem viu a Ressurreição e exatamente o que foi visto. Os evangelistas apresentam versões bem díspares, com pontos que podem ser conciliados e outros que não podem.

A variedade nos relatos nos ensina algo sobre a Inerrância Bíblica, para aqueles que pretendem usar o texto religioso como legislação. Havendo quatro relatos diferentes, somos obrigados a admitir uma incerteza sobre o que os evangelistas contam, ou pelo menos três deles estariam mentindo. Mas e se fosse apenas um a contar os fatos, como no Velho Testamento? Essa incerteza não teria como ser percebida. A falha narrativa seria invisível.

No caso específico da Ressurreição, temos uma narrativa com vários níveis. Todos os textos apontam mulheres como sendo as primeiras testemunhas. Mas não são elas as autoras bíblicas. Então, o que temos é um texto de 2ª mão pensando no que foi descrito por João. E um texto de 4ª ou mais versão, ou seja, o contato por alguém que ouviu o relato de outro, que também não participou, no caso de Mateus, Marcos e Lucas.

CONCILIAÇÕES

Algumas divergências entre as narrativas são simples de serem corrigidas. Por exemplo, quantas mulheres foram ao Sepulcro no dia da Ressurreição?

João fala sobre Madalena, mas deixa entrever outras participantes que não nomeia. Marcos, o 1º Evangelista, fala em Madalena, a Maria mãe de Tiago e Salomé. Lucas, o companheiro de Paulo e cronista de Atos fala em Madalena, a Maria mãe de Tiago, Joana e outras. Mateus, o último a registrar sua versão, traz Madalena e uma "outra Maria". Apesar de serem diferentes relatos, o não testemunho direto da cena por nenhum deles (as mulheres se dirigiram aos discípulos Pedro e João) nos dá uma certa liberdade até para dizer que lá estavam Madalena (deve ter sido a grande anunciadora da Ressurreição), a mãe de Tiago, Salomé, Joana e qualquer outra mulher que desejemos.

Embora, claro, os defensores da inconsistência bíblica se fiem nessas diferenças de relatos, nenhum deles é claramente excludente a outras pessoas além das que nomeia. Sabemos que um grupo de mulheres foi antes do alvorecer ao túmulo de Jesus, e Madalena voltou falando sobre uma tumba vazia.

DIVERGÊNCIAS

A junção dos vários relatos (pensando que são corretos e descrevem uma mesma cena) se torna bem mais difícil quando tomamos o encadeamento de fatos que as mulheres testemunharam.

João diz ter tido a primazia dos relatos, junto com Pedro. Segundo ele, em seu capítulo 20, Madalena viu a tumba aberta e correu avisá-los. Os dois correram até lá, João chegando primeiro. Encontraram os trapos que envolviam Jesus caídos e foram para suas casas. Madalena ficou de fora, chorando, e então viu dois anjos que falaram com ela. Voltando-se, topou com o próprio Jesus. Ele então proferiu seu célebre "Não me toques".

Marcos, o primeiro evangelista, conta no cap. 16 que as mulheres acharam a tumba aberta e entraram. Lá dentro, um anjo sentava-se à direita de onde o corpo de Jesus estivera. Ele mandou avisar a Pedro que Jesus seguia para a Galiléia e elas fugiram, com Madalena e outras duas tendo o visto pessoalmente em seu caminho.

Lucas coletou outra versão para seu capítulo 24. Segundo ele, as várias mulheres chegaram na tumba e a encontraram aberta e vazia. Quando entraram, lá estavam dois anjos. Elas foram até os apóstolos, que não lhes acreditaram. Pedro foi até a tumba e encontrou os panos que prendiam o corpo de Jesus. O mestre foi visto em Emaús.

Mateus, último dos evangelistas a entregar sua versão, no capítulo 28 traz ainda outra narrativa: as mulheres encontraram a tumba fechada, um anjo apareceu, rolou a pedra da frente e sentou-se sobre ela. Ele lhes mostrou a tumba vazia e disse para irem elas e os apóstolos no caminho da Galiléia, para alcançarem Jesus, que partira antes. Assim se deu.

MATEMATIZANDO

Obviamente, os quatro relatos têm pontos em comum e em desalinho, acerca das mulheres. Tentemos contabilizar eles:

1a. acharam a tumba fechada: Mt
1b. acharam a tumba aberta: Jo, Mc, Lc

2a. voltaram e chamaram os discípulos: Jo
2b. as mulheres entraram: Mc, Lc, Mt

3a. havia um anjo na tumba: Mc, Mt
3b. havia dois anjos: Jo, Lc

4a. o(s) anjo(s) mandou chamar Pedro e os demais: Mc, Lc, Mt
4b. o(s) anjo(s) apenas anunciou a Ressurreição: Jo

5a. Jesus estava ali ao lado: Jo
5b. Jesus fora para a Galiléia: Mc, Lc, Mt

As opções aqui foram escolhidas deliberadamente para serem mutuamente excludentes (ex. a tumba não podia estar aberta E fechada). Havendo muitas combinações possíveis desses trechos, a mais provável é:

1. as mulheres acharam a tumba aberta (probabilidade 75%)
2. as mulheres entraram na tumba (75%)
3. havia um ou dois anjos, não sabemos (50% cada)
4. o(s) anjos (s) mandaram avisar Pedro e os demais (75%)
5. Jesus foi para a Galiléia (75%)

Repare que NENHUMA das possibilidades é totalmente certa, como no célebre caso do gato de Schrodinger¹. Nossa única certeza está no fato de serem várias mulheres, uma delas Madalena, que foram até a cripta de Jesus antes do amanhecer e não O encontraram lá, mas chegaram a ver Ele vivo mais tarde. Esse é o eixo da estória, o ponto comum dos evangelistas.

Concordância com o enredo mais provável:

João: 2 de 5 = 40%
Marcos: 5 de 5 = 100%
Lucas: 5 de 5 = 100%
Mateus: 4 de 5 = 80%

Agora, dois relatos parecem mais concordantes, Marcos sendo o mais sucinto e Lucas o mais detalhado. Entretanto, não podemos perder de vista que os evangelistas não foram independentes. Mateus parece ser baseado em Marcos; Lucas e Marcos eram companheiros de viagem de Paulo. Isso certamente sincronizaria suas estórias. Além disso, o fato de João ser nominalmente o único envolvido na narrativa e justamente ele ser o menos concordante nos deixa duas possibilidades assustadoras.

Primeira: o evangelho de João não é o do discípulo amado, apesar de ele se nomear assim. O discípulo amado não teria tantos erros ao descrever Quem ele acompanhava. Segunda: os evangelhos canônicos (Marcos, Lucas, Mateus) têm uma fonte comum em Marcos, que não concorda tanto com João. Entre duas testemunhas e sem outras evidências, não temos como julgar qual delas é a verdadeira.

Curiosamente, João e Marcos concordam muito ao serem os evangelistas que menos se dedicam a descrever Jesus ressuscitado. João encerra a narrativa dizendo que há muitas coisas a dizer (mas não diz nenhuma). Marcos apresenta um breve discurso onde Jesus investe de poderes os seus emissários e eleva-se aos Céus.

-------------------------------------

¹ O “gato de Schrödinger” é uma fábula da física quântica, atribuída ao físico Erwin Schrödinger (1887-1961). Ele propôs uma caixa impossível de abrir ou sondar dentro, onde há um gato e um vidro de veneno. Se o gato não tomar o veneno, está VIVO. Se tomar, está MORTO. A menos que possamos obter informações lá de dentro, somos obrigados a considerar o gato 50% vivo. No caso de Jesus, a menos que alguém possa voltar no tempo e observar a Ressurreição, tudo o que temos sobre ela são os 4 relatos (diferentes) dos evangelistas. Alguns fatos concordantes podem ser chamados de concretos, mas os discordantes caem nessa categoria de 75% certos e 25% errados.

-------------------------------------

ANOTADO NUM CANTINHO DO SEPULCRO

Ericson J, How many and who were the people the women found at Jesus' tomb?, hermeneutics.stackexchange.com, 2011
The skeptics annotated Bible, 402. How many women came to the sepulchre?
The skeptics annotated Bible, 404. Whom did the women see at the tomb?
Wallace JW, How many women visited the tomb of Jesus?, coldcasechristianity.com, 2017


Modelo tridimensional da tumba de Jesus, fornecida por José de Arimatéia (destacada no lado esquerdo, junto ao penhasco), o Gólgota ou Calvarium (onde estão as cruzes) e a muralha de Jerusalém, do tempo do 2º Templo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!