sábado, 1 de fevereiro de 2020

A Unção - estudo bíblico

Cena da Unção, pintada pelo famoso ilustrador Jacques-Joseph Tissot, 1836-1902

Nos Evangelhos, curiosamente são poucas as passagens contadas pelos 4 narradores Mateus, Marcos, Lucas e João. Embora suas estórias se cruzem e amarrem em muitos pontos, são raros os eventos da vida de Jesus com 4 testemunhos. Um desses eventos é a Unção, que aparece em Mateus 26, Marcos 14, Lucas 7 e João 12.

As diferenças nas narrações, e isso é o que nos interessa aqui, dizem um pouco sobre a composição do Novo Testamento.

COISAS QUE NÃO CONTAM SOBRE OS EVANGELHOS

Primeiro, não há certeza absoluta sobre a autoria de nenhum dos Evangelhos. Os títulos com os quais são designados nunca estiveram anotados neles e são fornecidos por antigas tradições religiosas. O de autoria mais "científica" é João: em seu texto, o evangelista diz ser o discípulo amado de Jesus, ao mesmo tempo em que deliberadamente esconde seu nome. Nos outros textos, a identidade dessa pessoa é sugerida pela proximidade entre Jesus e João.

Segundo, embora tratem-se de crônicas sobre a vida de Jesus desde seu nascimento até sua morte, ressurreição e ascenção aos céus, nenhum dos textos foi produzido junto com os acontecimentos que narram. Saber escrever era algo raro na época, um serviço geralmente pago, algo pouco acessível entre os pescadores pobres do lago/mar da Galiléia com os quais Jesus (um consertador-de-casas, carpinteiro ou pedreiro) andava. Temos indícios da época dos Evangelhos a partir de sua citação em outros textos, assim como eventos documentados dos quais eles falam. Felizmente, os Romanos eram cuidadosos em registrar acontecimentos, muito mais do que os Judeus.

O evangelho que foi escrito primeiro foi o de Marcos, provavelmente a pessoa denominada João Marcos que Pedro levou até o grupo de Paulo por volta do ano 40-45 d.C. Caso esse homem tenha visto Jesus (6 ou 3 a.C. a 30 d.C.), ele era uma criança ou adolescente na época. O mais demorado deles foi o de Mateus, do qual existem diversas "versões" anteriores a final, mostrando que foi editado pelas pessoas que guardavam o texto. Sua forma definitiva apareceu no início do séc. 2 d.C., aproveitando grande parte do texto de Marcos. Dessa forma, as cartas de Paulo (Romanos, Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, Tessalonicenses, Timóteo, Tito e Filemon) são obras anteriores aos Evangelhos, pois Paulo era um Grego-Romano-Judeu bem educado e escrevia aos seus seguidores.

Geralmente os 4 Evangelhos seguem 2 "tradições". Isto é, para cada cena da vida de Jesus, normalmente 2 ou 3 deles são semelhantes quanto ao que escrevem, enquanto 1 ou 2 não apresentam a cena ou a trazem bastante modificada. Os historiadores chamam isso de 2 narrativas, ou 2 tradições orais, pensando que foram estórias recontadas muitas vezes antes de serem escritas. Quais dos Evangelhos usam a narrativa A ou a narrativa B varia de cena para cena. Geralmente é João que apresenta a ausência da cena, o único testemunho ou a versão diferente. Para a Unção, entretanto, o diferente é Lucas.

Terceiro, os supostos autores não são geralmente apontados, pelos próprios textos, como participantes da narrativa. Mateus/Levi pode ser o publicano nomeado por Jesus e João pode ser João bar Zebedeu, irmão de Tiago [o grande] e um dos primeiros discípulos. Ele pode ser o profeta João que produziu o livro de Apocalipse. Marcos, porém, era integrante do grupo de Paulo e Lucas é apontado como médico do mesmo grupo, pessoa estudada, que teria também redigido o livro de Atos dos Apóstolos. O livro de Lucas, de fato, inicia-se com o autor contando que fez uma laboriosa pesquisa sobre os fatos que relata.

Quarto e último, tratam-se de textos muito antigos, com seus quase 2000 anos. Eles nos chegaram a partir de originais em hebraico antigo (língua difícil de traduzir, que não fazia uso de vogais, nem separação de palavras no texto, nem de pontuações) e grego, escritos por pessoas que assistiram a destruição da civilização 2 vezes (Jerusalém em 70 d.C. e Roma - a cidade - em 480 d.C.), com traduções em grego e latim que foram meticulosamente copiadas a mão durante muitos séculos antes de serem reunidas num livro, e por tantos outros depois. Com esse histórico, acredito que variações são bem aceitáveis.

A UNÇÃO

Trata-se de Jesus sendo perfumado com um óleo aromático, derramado por uma mulher. Esse texto geralmente é empregado em pregações sobre o reconhecimento da divindade de Jesus, a existência de ricos e pobres, o entendimento de falas do Rabi sobre sua morte que eram nebulosas para os discípulos, e também o pedido de perdão dos pecados. Erroneamente, também é empregado em falas sobre a prostituição feminina e sobre Maria Madalena - não há evidências de prostituição, nem tampouco a citação dessa personagem.

Os 4 relatos são suficientemente parecidos para que fique claro tratar-se do mesmo evento. No entanto, alguns teólogos falam em dois eventos distintos, duas unções diferentes. Assim como outras repetições dos Evangelhos e do Velho Testamento, é minha impressão (e de outros) que a repetição detalhada de narrativas como a ida de Moisés a caverna onde falou com Deus, a multiplicação dos pães por Jesus e a pesca milagrosa podem muito bem ser fruto da reunião de trechos para montar um texto maior, como os "copia e cola" tão comuns nos editores de texto atuais. A mesma narrativa pode ter sido inserida mais de uma vez no texto final. Interpretando literalmente o que fica escrito, acabamos com a impressão de uma cena que se repete nos menores detalhes.

MATEUS e MARCOS

Nessas duas versões, com poucas diferenças, Jesus é recebido na cidade de Betânia, na casa de Simão o leproso. Uma mulher (sem nome) quebra a tampa de um frasco de alabastro, derramando na cabeça de Jesus a essência aromática de nardo. Um dos convivas critica seu desperdício, pois aquele perfume deveria valer o salário de todo um ano (300 denários), dinheiro que poderia ser dado aos pobres. Jesus replica que eles sempre terão os pobres consigo, mas a mulher fazia preparativos para seu funeral, e onde fosse o evangelho, também chegaria a memória do seu ato.

A cena ganha importância porque, logo após, Judas Iscariotes vai até os sacerdotes combinar a traição de Jesus. 

JOÃO

Aqui alguns detalhes são acrescentados. Informa-se a data de 6 dias antes da Páscoa. O local é Betânia, mas a casa pertence aos irmãos Lázaro (aquele que foi ressuscitado), Marta¹ e Maria. Marta servia a mesa e Maria untou os pés de Jesus com nardo puro, limpando com os próprios cabelos. É Judas (chamado de ladrão) quem questiona porque não vender a preciosa essência.

LUCAS

Na versão desse cronista de Paulo, possivelmente um Romano, falta o nome da cidade. A casa é de Simão, um dos Fariseus. Uma mulher pecadora quebra o frasco e derrama seu perfume nos pés de Jesus junto com lágrimas, limpando com os cabelos. Um dos convivas questiona o contato de Jesus com essa mulher, ao que o Rabi conta sua parábola dos dois devedores, reclamando também dos maus modos de Simão para com seu convidado e perdoando os pecados da mulher, o que assombra a todos.

PENSANDO ESSA ESTÓRIA

A versão de Lucas parece mais uma junção de pedaços de outras estórias, como a parábola e os Fariseus questionando Jesus.

Mas há uma boa distância entre Simão, um Fariseu ex-leproso e Lázaro, amigo de Jesus. É possível que ambos fossem pessoas muito ricas na cena, que sempre cita convivas. Um perfume de 300 denários (algo como 20 a 40 mil reais, hoje), em frasco de alabastro (cristal de rocha polido), certamente era algo que poucas pessoas poderiam ter em casa.

A tradição dos Judeus ricos, herdada dos Gregos, era derramar óleo ou perfume sobre os cabelos de um viajante recém chegado, não os pés. Nos pés, após lavados, usava-se mirra. Esses bons modos, de cuja falta Jesus se queixa explicitamente na versão de Lucas, os Evangelhos de Mateus e Marcos contam como sendo realizados. Mas João e Lucas trazem uma unção dos pés, junto com lágrimas, um sinal de devoção. Dada a preciosidade do líquido, da qual todos falam, é pouco provável que fosse usado para fins comuns, então uma devoção a Jesus poderia sim justificar seu uso. Essa devoção escapa a Mateus e Marcos, que fazem a cena mais corriqueira.

Também, a versão de João fez supor um ambiente doméstico, ao contrário das demais. Ali estão Jesus, Judas, Lázaro e sua família, possivelmente João e outros do grupo do Nazareno. As demais versões não têm esse caráter familiar; não trazem nomes da maioria dos personagens, exceto de Simão, o Fariseu ou o leproso.

É curioso o valor que João dá a Lázaro, o ressuscitado. Esse milagre tão notório de reviver alguém é citado apenas por João, dentre os evangelistas. Mateus e Marcos nada dizem sobre Lázaro. Lucas fala de um outro personagem, numa parábola de Jesus, onde Lázaro é um mendigo (com feridas!). Mas João não apenas coloca a Unção em sua casa, como também o apresenta sendo um outro alvo do Sinédrio. Afinal, qual testemunho a favor de Jesus seria mais poderoso que o daquele homem ressuscitado por ele?

A atitude de adoração de Maria é condizente com o fato de ter ela sido quem viu, em primeira mão, Jesus chamar seu irmão de dentro de uma cova.

RELAÇÕES FAMILIARES

Mateus, Marcos e João trazem Jesus anunciando seu funeral, na Unção. Em especial, a mulher que Lhe derramou perfume é apontada em quase todas as versões como reservando aquele bálsamo para este funeral.

Quando amanheceu a Páscoa após a Crucificação, Mateus descreve o túmulo de Jesus sendo visitado por duas Marias: a Madalena e uma outra, não especificada. Marcos diz que eram 3 mulheres buscando o corpo de Jesus para o perfumarem: Madalena, a mãe de Tiago (bar Alfeu ou bar Zebedeu?) e Salomé. Lucas substitui Salomé por Joana (talvez para indicar a mãe de João). João deixa apenas Madalena e retira a(s) outra(s). Se tomarmos os 3 relatos mais próximos como base, no Sepulcro estavam Madalena e talvez uma Maria que era mãe de João e Tiago bar Zebedeu.

Trata-se apenas de uma conjectura, dentre as muitas possíveis nas 4 versões dos Evangelhos. A teoria se faz pensando na fala de Jesus sobre Maria, irmã de Lázaro, estar guardando aquela essência para Seu funeral. Essa Maria pode ser a mãe de João, por tabela sobrinho de Lázaro. Isso explicaria a intimidade Jesus-João-Lázaro e a importância única que esse evangelista deu a Lázaro, aquele que Jesus ressuscitou. E explicaria também o seu particular detalhamento da cena².

Dentre os evangelistas, aquele com maior probabilidade de ter acompanhado Jesus é João, que também foi o único na cena da Crucificação. Mateus, a outra possibilidade, como disse antes, traz um texto bastante editado, com variantes de diversas partes da Turquia e Síria. Isso nos revela João como talvez o único dos evangelistas a conhecer outros amigos de Jesus, como Lázaro e sua família. Ele também é o único a colocar Judas Iscariotes na cena da Unção.

Os Evangelhos nos sugerem que Jesus gostava de reuniões intimistas, como essa contada por João, mas também apreciava exposições públicas, onde fosse questionado pelas pessoas. Nas vezes em que anunciou claramente sua morte, contudo, Jesus estava sempre entre o grupo mais íntimo.

FINAL

Os Evangelhos são tudo o que temos sobre a vida e pregação de Jesus. O fato de terem sido compostos tardiamente, dentro de uma Igreja já funcionando, tira grande parte de seu caráter histórico. Isto é, os Evangelhos não são narrativas isentas de propósito, como os textos da biblioteca de Assuero, na Babilônia, ou as tabuletas de Amarna, no Egito. São obras de-e-para uma comunidade de devotos. Nas palavras de Leonardo Boff, não há como separar Jesus e o Cristo...

Assim, as variações de relatos dessa pequena estória já nos contam de pelo menos 3 comunidades trocando informações entre si, confabulando sobre Jesus a partir do testemunho de um patriarca que pode ser Mateus, Marcos, Lucas, João ou mesmo Pedro e Paulo.

É de minha opinião pessoal que o relato de João é, dentre todos, o mais rico, com nomes e a aparência das reuniões que Jesus frequentava. O discípulo amado, se for o principal autor do que seu livro traz, pode ter servido de fonte para os demais evangelistas e nos dar a intimidade necessária para apreciar as pessoas e locais como elas eram para o Mestre.

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¹ O nome Marta é malevolamente usado no seriado "The Handmaids Tale", de Bruce Miller e baseada talvez no romance "1984", de George Orwell. No seriado, "Marta" indica a casta das serviçais de uma comunidade religiosa e totalitária futurista.

² Uma tradição mais usada pela Igreja Católica coloca Maria Madalena como sendo a portadora da essência de nardo. Não há evidências de Madalena na cena da Unção, mas de fato ela é o único personagem comum em todos os relatos sobre a Ressurreição e combina com a "mulher pecadora", da qual Jesus havia expulsado 7 demônios. Um desses demônios, dos quais se falava na época de Jesus, era a lepra. Madalena também era alguém que fornecia bens materiais ao ministério de Jesus, indicando que tinha certa riqueza, além de ser amiga de uma Salomé, que aparece num dos relatos da Crucificação e da Ressurreição. Por isso, Madalena é muitas vezes entendida como sendo a Maria irmã de Lázaro. Como pontos contrários a essa especulação, temos a falta de ligação entre Lázaro e a cidade de Magdala, além da menção de Madalena por todos os evangelistas e de Lázaro apenas por João.

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OS APÓSTOLOS LARGARAM ISSO NA SALA

Anointing of Jesus - wikipedia
Chaignot MJ, The women who anointed Jesus, biblewise.com
Dods M, The anointing of Jesus, biblehub.com
Gospel of Matthew - wikipedia
John the Evangelist - wikipedia
Lutton C, The unnamed woman with the alabaster jar, cbeinternational.org, 10/jan/2017

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