terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Debatendo Jonas


Quadro do artista gráfico polonês Dawid Planeta, da série “Mini People in the Jungle”, de 2018.


Jonas foi um profeta cuja tradição aparece de forma problemática no Antigo Testamento. A importância mais recente do personagem vem da fala de Jesus e do nome atribuído a um de seus maiores divulgadores, Simão “filho de Jonas”.

Mateus, cap. 12
38. Então alguns escribas e fariseus tomaram a palavra: Mestre, quiséramos ver-te fazer um milagre. Respondeu-lhes Jesus: Esta geração adúltera e perversa pede um sinal, mas não lhe será dado outro sinal do que aquele do profeta Jonas: do mesmo modo que Jonas esteve três dias e três noites no ventre do peixe, assim o Filho do Homem ficará três dias e três noites no seio da terra. No dia do juízo, os ninivitas se levantarão com esta raça e a condenarão, porque fizeram penitência à voz de Jonas. Ora, aqui está quem é mais do que Jonas. No dia do juízo, a rainha do Sul se levantará com esta raça e a condenará, porque veio das extremidades da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. Ora, aqui está quem é mais do que Salomão.

Lucas, cap. 11
29. Afluía o povo e ele continuou: Esta geração é uma geração perversa; pede um sinal, mas não se lhe dará outro sinal senão o sinal do profeta Jonas. Pois, como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim o Filho do Homem o será para esta geração. A rainha do meio-dia levantar-se-á no dia do juízo para condenar os homens desta geração, porque ela veio dos confins da terra ouvir a sabedoria de Salomão! Ora, aqui está quem é mais que Salomão. Os ninivitas levantar-se-ão no dia do juízo para condenar os homens desta geração, porque fizeram penitência com a pregação de Jonas. Ora, aqui está quem é mais do que Jonas.

Afora a enigmática figura da rainha do Sul/do meio-dia (que parece ser a rainha de Sabá, na Etiópia), Jesus se refere a Jonas como tendo feito dois sinais: a pregação a Nínive e a estadia no peixe por 3 dias. A forma como esses dois "sinais" se conectam é no mínimo misteriosa.

O RELATO BÍBLICO

Existem livros nomeados como Jonas no Antigo Testamento e também no Alcorão. Como a estória de Jonas se passa longe de Israel, o relato Islâmico é bem importante.

Segundo a Bíblia, Jonas filho de Amitai foi convocado por Deus para pregar aos habitantes de Nínive, capital do Império Assírio até o final do séc. 7 a.C. Os Assírios foram uma potência militar no Oriente Médio até serem substituídos pelos Babilônicos, no séc. 6 a.C. Nos textos bíblicos, os Assírios ficaram registrados devido à invasão de Canaã no séc. 8 a.C., quando o Reino do Norte foi capturado (2ª Reis 17-18, 2ª Crônicas 32), e também devido ao equilíbrio de poderes com o Egito. Israel oscilava de aliança entre um e outro, de acordo com os interesses em cada momento.

O texto de Jonas conta sobre um profeta chamado a pregar no coração da Assíria, que fugiu de Jope (Líbano) para Társis, no outro extremo do Mediterrâneo. Nessa fuga, uma tempestade interrompeu o curso do barco e Jonas foi apontado pelos marinheiros (via um jogo de sorte) como causador da catástrofe. Jogado ao mar e engolido por uma baleia, Jonas ficou 3 dias no interior do "grande peixe", onde admitiu a soberania de Deus e assim foi devolvido à terra.

Na cena seguinte, Jonas está em Nínive e tenta converter a população. Por fim, a cidade toda se arrepende, o rei Assírio convoca um grande jejum, até dos animais, e a destruição de Nínive é impedida. Jonas no entanto esperava ver Nínive cair.. Ele senta-se sob um pé de mamona, que testemunha sua dor. Deus envia um verme que mata a planta e Jonas se lamenta por ela, ao que Deus lhe lembra da Sua piedade para com Nínive.

Detalhe: não fazemos a menor idéia de como Jonas chegou do Mediterrâneo até uma cidade nas margens do rio Tigre, que deságua no Golfo Pérsico, ligado ao Oceano Índico. É possível que o redator mais moderno dessa estória realmente não soubesse a distância enorme entre os dois locais. E, mais importante ainda, a completa falta de um relato da viagem (terrestre) entre os dois pontos distantes, entre os dois acontecimentos narrados, sugere que Jonas nunca fez esse caminho.

O RELATO JUDEU

Os Judeus mantém uma coleção de estórias orais repassadas pelos rabinos, principalmente entre os sécs. 5 e 11. Uma dessas obras, atribuída ao Rabbi Eliezer filho de Hyrcanus (porém sabidamente uma obra do séc. 8) traz uma versão mais "emocionante" de Jonas. Nela, Jonas foi enviado em 3 missões: restaurar as bordas de Israel (2ª Reis 14.25), anunciar a destruição de Jerusalém e depois a de Nínive.

O "grande peixe" era do tamanho de uma Sinagoga, com uma grande pérola dependurada na sua garganta, fornecendo luz, e os olhos do animal servindo de janelas. Por eles, Jonas viu o Sheol (mundo dos mortos), os filhos de Coré* e os subterrâneos do mundo, com 7 montanhas sustentando Jerusalém**. Jonas ameaçou e afastou o Leviatã, criatura das profundezas que tentou comer o peixe. Quando estava sob o Templo, ele fez seu pedido de retornar, que, ali, não seria negado por Deus¹.

Os marinheiros viram Jonas voltando, foram a Jope e circuncidaram-se.

A citação de 2ª Reis, que coloca Jonas como natural de Gate-Hefer - Galiléia, entre Nazaré e Caná, durante as lutas Judá/Samaria - é plausível. Além de uma breve citação, não há fala alguma do "Rabbi medieval" sobre Jonas em Nínive.

O RELATO ISLÂMICO

A literatura religiosa Islâmica é menos condensada que a Judaico-Cristã. Assim, temos um relato sobre Jonas bem sucinto no Alcorão e muitos Hadith ou tradições a respeito do que se sucedeu a Jonas.

Nesses textos tradicionais, Jonas é natural da Assíria. A cronologia também é outra: Jonas vai a Nínive pregar e, depois disso, fracassado, toma um barco, é jogado ao mar (ou rio) e engolido pela baleia. O motivo é o mesmo: Jonas seria a causa de uma tempestade. De dentro do "grande peixe", rodeado pela escuridão, Jonas clamou a Alláh, que o ouviu e deu ordens ao animal para devolver ele.

Jonas abriga-se sob uma vinha/aboboreira, que cresceu por ordem de Alláh. Então Nínive se arrepende e o castigo divino é suspenso. Jonas volta para sua casa.

Aqui, também são duas estórias que parecem mal-coladas: Jonas voltando do estômago da baleia e Jonas convertendo a cidade. Particularmente, a versão com Jonas sendo de Nínive parece mais plausível.

Sura 37, "Os enfileirados"
139. E também Jonas foi um dos mensageiros, o qual fugiu num navio carregado. E se lançou à deriva, e foi desafortunado. Uma baleia o engoliu, porque era repreensível. Se não se tivesse contado entre os glorificadores de Deus, teria permanecido em seu ventre até ao dia da Ressurreição. Nós o arranjamos, enfermo, em uma praia deserta, e fizemos crescer, ao lado dele, uma aboboreira. E o enviamos a cem mil (indivíduos) ou mais. Eles creram nele, e lhes permitimos deleitarem-se por algum tempo.

CONFABULANDO

As duas estórias (da baleia e da profecia em Nínive) são estranhamente pareadas tanto pela cultura Judaica quanto pela Islâmica. Apesar disso, cada um atribui a Jonas uma origem diferente e valoriza de forma diferente os elementos das estórias. Os Judeus e Islâmicos valorizam o episódio da baleia, pela submissão do profeta a Deus. Os Judeus colocam o episódio como um castigo divino, os Islâmicos não têm uma boa explicação.

Os Islâmicos valorizam também a pregação em Nínive (atual Mosul, Iraque), mas sem tantos detalhes como contam os Judeus. Na estória Judaica há um jejum imposto até aos animais (seriam pecadores?), além da piedade de Deus. Na versão Islâmica, há uma conversão em massa por medo do desastre. Sabemos (e o autor do texto Corânico também) que Nínive e a Assíria não aderiram ao culto Judeu, nem mesmo ao monoteísmo. Algo semelhante foi dito por Daniel com respeito a Nabucodonosor, que também nunca aderiu ao monoteísmo Judeu (apesar de Daniel 4.31-34).

Nínive/Ninua era uma cidade dedicada à deusa Ishtar, cujo nome até significava "casa da deusa". Os Judeus em geral associavam a cidade com o cativeiro dos habitantes de Israel/Efraim (os que estavam lá antes dos Samaritanos).

Naum, cap. 1 (séc. 7 a.C.)
1. Oráculo sobre Nínive. Livro da visão de Naum de Elcos. ... 8. Como um temporal violento ele [o Senhor] destruirá este lugar, e, mesmo nas trevas, acossará seus inimigos. ... 14. Quanto a ti, eis o que ordenou o Senhor: Descendência alguma levará teu nome. Farei desaparecer do templo de teus deuses as imagens esculpidas e as imagens fundidas. Vou preparar teu sepulcro, porque és pouca coisa. ... Cap. 2 - 14. Eis que venho agora contra ti - oráculo do Senhor dos exércitos - vou incendiar teus carros e reduzi-los a fumaça, a espada vai devorar os teus leõezinhos; porei fim às tuas rapinas na terra, não se ouvirá mais a voz dos teus mensageiros. Cap. 3 - 7. Todos os que te virem fugirão para longe de ti, dizendo: Nínive está arruinada! Quem se apiedará de ti?

O livro de Tobias (presente nas Bíblias Católicas, apenas) conta a estória de um Judeu de Nínive (como Jonas), expulso da cidade por não adotar os costumes Assírios. Quando Salmanasar V (pai de Sargão II) morre, ele volta para a cidade e seu pai Tobit fica cego. Tobias é buscado pelo anjo Raphael, que o envia para salvar uma certa Sarah, atormentada por um demônio. Depois das aventuras, o anjo ensina Tobias como curar seu pai e ambos fogem da cidade antes de a profecia se cumprir.

Trata-se de um texto ensinando costumes e moral Judaicas, além das tradicionais magias (presentes nos textos Haggadah também) e com chamativos à antiguidade do povo. Jonas, por outro lado, fala da intervenção divina e acontecimentos fantásticos, como muitas estórias do Oriente. Sendo ambos da mesma referência de local e tempo, Tobias e Jonas não parecem frutos do mesmo povo.

Nínive foi arrasada no começo do séc. 6 a.C., por uma união dos reis Cyaxares (Império Medo) e Nabopolassar (Império Persa, pai de Nabucodonosor II). A postura dos Judeus indicava que um parceiro melhor sempre foi o Egito, também alvo de profecias. Jonas representa um adiamento dessa vingança dos Judeus, talvez um resultado da longa permanência do Império Assírio.

Não há dúvidas que o nome de Jonas foi importante nas terras Assírias (um tanto "rio Tigre-acima" das terras Babilônicas). Talvez tenha sido um profeta Judeu importante - apesar de não ter convertido nenhum rei, até onde sabemos. Essa provavelmente foi a origem da estória sobre sua poderosa pregação em Nínive: simbolizar que Jonas tenha sido um profeta, responsável pela duração longa do Império Assírio.

Talvez ele fosse lembrado, entre outras coisas, por ter sido jogado de um barco e voltado. Se isso aconteceu em Nínive, devia tratar-se do enorme rio Tigre, famoso pela quantidade de grandes peixes (aliás, um deles é mencionado na estória de Tobias). É difícil pensar numa baleia adentrando o rio, mas até isso acontece em cursos d'água largos o suficiente. Talvez não fosse um fenômeno raro, embora espantoso sem dúvida, nos tempos da Assíria. De qualquer forma, o Jonas Islâmico foi cuspido pelo animal temente a Alláh numa ilha, além da foz do rio.

Alguns historiadores chegam a equiparar Jonas com o Jasão Grego, herói de mil aventuras, matador de monstros e favorecido da deusa Athena. Entre seus feitos de esperteza, Jasão derrotou um dragão esfregando nele uma poção de dormir. Noutra versão, o dragão é um monstro marinho que engole Jasão e o vomita. Curiosamente, uma poção para vomitar era feita da abóbora, mesma planta associada com Jonas. Não é impossível que as lendas de nomes parecidos tenham se enroscado.

No entanto, ao contrário do astuto guerreiro Jasão, nosso Jonas é jogado ao mar numa clara ocasião de sacrifício para aplacar a tempestade. Na mitologia da Suméria, onde Nínive ficava, as tempestades (no rio) eram produzidas por um grande dragão submerso. Jonas parece ter sido o sacrifício a essa criatura, e um que no entanto voltou para assombrar a todos.

A PODEROSA REFERÊNCIA CRISTÃ

Diversas estórias semitas, muitas envolvendo Elias ou Moisés, circulavam como tradições orais no tempo dos Romanos. Outras (sobre Jasão, quem sabe) haviam chegado com os Gregos. Algumas dessas estórias foram resgatadas por Jesus em suas andanças na Galiléia. Ditas pela boca de Jesus, tais fábulas, parábolas e ensinamentos foram preservadas também na Escritura do Cristianismo. E Jonas não deixou de ser citado pelo Messias.

Exceptuando-se as fontes sobrenaturais, há três modos de essa estória ter chegado ao mundo de Jesus. E chegou, pois os Judeus mantiveram um livro da Torá com a lenda de Jonas. Além da citação nominal do "sinal de Jonas", há uma "tumba de Jonas" na Galiléia e Pedro, salvo de dentro do lago tempestuoso, foi curiosamente referido como Simão filho de Jonas (Mateus 16.17).

A primeira via seria pelas caravanas entre a Assíria e o porto de Jope, passando pela Galiléia. Estórias envolvendo os Judeus de lugares distantes e lendários certamente eram bem recebidas.

A segunda seria a herança dos tempos de cativeiro Babilônico, tal como as aventuras de Daniel. A terceira, aparentada com a segunda, seria através dos Samaritanos retornados da Assíria, que não foram aceitos pelos Judeus como seus parentes. O Evangelho de João introduz muitos elementos Samaritanos na história de Jesus, que não podem ser simplesmente ignorados.

Por qualquer dessas rotas, Jesus, mesmo longe de ser alguém que retorna das águas, e mais longe ainda de ser um filho das águas do rio Tigre, nos pescou essa lembrança.

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NOTAS DOS PROFETAS

Ahadith.co.uk

Assyria - wikipedia

Battle of Nineveh (612 BCE) - wikipedia

Garcia B, Medusa, ancient.eu, 20/ago/2013

HAMEL, Gildas. Taking the Argo to Nineveh: Jonah and Jason in a Mediterranean context. Judaism, v. 44, n. 3, p. 341, 1995.

IBN KATHIR, Al-Imam. Stories of the Prophets, Ed. Darussalam, Arábia Saudita, 2003.

Jonas, o profeta, loungecba.blogspot.com, 19/abr/2014

List of burial places of biblical figures - wikipedia

Mark JJ, Nebuchadnezzar II. ancient.eu, 07/nov/2018

Mark JJ, Nineveh, ancient.eu, 06/mar/2011

Pirkei De Rabbi Eliezer, MIDRASH, cap. 8, Israel/Babilônia (aprox.630 - c.1030), Sefaria.org

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* Coré liderou uma rebelião contra o governo de Moisés e Arão, enquanto eram conduzidos pelo deserto. Após o extermínio de sua linhagem, dois que estavam distantes foram poupados e retornaram à obediência de Moisés.

Números, cap. 16
28. Moisés disse então: “Nisto conhecereis que o Senhor me enviou a fazer todas estas obras e que nada faço por mim mesmo. Se estes morrerem com a morte ordinária dos homens, e se a sua sorte for como a de todos, o Senhor não me enviou; mas se o Senhor fizer um novo prodígio e o solo abrindo a sua boca, os engolir com tudo o que lhes pertence, de sorte que desçam vivos à habitação dos mortos, então sabereis que estes homens desprezaram o Senhor.” Apenas acabou ele de falar, fendeu-se a terra debaixo de seus pés e, abrindo sua boca, os devorou com toda a sua família, todos os seus bens e todos os homens de Coré. Desceram vivos à morada dos mortos, eles e tudo o que possuíam; cobriu-os a terra, e desapareceram da assembléia.


** A profecia das Sete Montanhas é normalmente atribuída a Roma, que muitos textos antigos referem como "cidade das sete colinas". O autor (medieval) do texto aparentemente tentou jogar esse cenário profético para Jerusalém, colocando as montanhas "sob o solo".

Apocalipse, cap. 17
3. Transportou-me, então, em espírito ao deserto. Eu vi uma mulher assentada em cima de uma fera escarlate, cheia de nomes blasfematórios, com sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida de púrpura e escarlate, adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas. Tinha na mão uma taça de ouro, cheia de abominação e de imundície de sua prostituição. ... 7. Mas o anjo me disse: Por que te admiras? Eu mesmo te vou dizer o simbolismo da mulher e da Fera de sete cabeças e dez chifres que a carrega. ... 9. Aqui se requer uma inteligência penetrante. As sete cabeças são Sete Montanhas sobre as quais se assenta a mulher.

¹ A tradição de que orações feitas em um santuário são mais provavelmente atendidas é muito antiga. Lembremos a lenda de Medusa, que foi pedir proteção a Athena (contra Poseidon) dentro do seu templo. No mundo islâmico, o valor das orações é até contabilizado entre os diversos lugares sagrados (Hadith 1413, guardada por Anas bin Malik - Sunan Ibn Majah, cap. 7, The Chapters of establishing the prayer and the Sunnah regarding them). Meca é o principal deles, cada oração valendo por 100 mil daquelas feitas em casa. Em segundo lugar, ficam as feitas nas mesquitas do profeta ou em al-Aqsa, no monte do Templo, que valem por 50 mil orações feitas em casa.

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