sexta-feira, 26 de julho de 2019

O esquecido Reino de Deus


O reino é como o fermento que uma mulher coloca na massa” - pintura do estadounidense James B. (Jim) Janknegt

Um termo muito usado no Novo Testamento e possivelmente necessário para sua compreensão é Reino de Deus. Apesar de frequente, esse termo assume conotações diferentes no texto e sua interpretação pode ser ainda mais confusa.

Primeiro, é importante definir a palavra Reino. Na tradição européia que herdamos, reino é um lugar no espaço (ex. Reino Unido, Reino da Cornualha, Reino de Gondor). Na tradição hebraica anterior a 70 d.C., quando Jerusalém foi destruída, reino era um lugar no tempo (ex. Reino de Salomão, Reino de Josias)., quando as leis e até o calendário próprio de um rei estavam em uso. Dessa forma, Reino de Deus assume a conotação de um momento em que Deus governaria os corações dos homens, produzindo uma Era de bênçãos.

Segundo, é necessário entender que os textos do Novo Testamento, sejam os evangelhos ou as cartas, não são relatos históricos. Isto é, não são fragmentos do diário de apóstolos que por acaso continham a vida de Jesus e Seus ensinamentos. Todos eles são textos produzidos para serem lidos nas igrejas, com uma função explícita. Seja qual fosse sua forma original, esses textos dão mostras de muitas re-organizações: o livro de Mateus principalmente assemelha-se a uma coletânea de passagens ligadas posteriormente, o de João tem Jesus o tempo todo afirmando Sua divindade, coisa que nem aparece nos demais. Não há dúvidas que a comunidade religiosa do início do Cristianismo, lá pelo final do séc. 1, contribuiu ativamente na elaboração do que lemos sobre Jesus (muitos estudiosos até preferem a palavra Cristo - aquele em quem as pessoas acreditam, ao invés da figura física e histórica de Jesus). Cada comunidade fez isso a sua maneira, com o texto que tinha em mãos, e então lá pelo séc. 3, quando tudo foi reunido, havia diferentes ensinamentos e até diferentes histórias do mesmo Jesus. Alguns textos foram feitos para os judeus que esperavam a restauração do Reino de Davi, outros para os gentios, que esperavam pelo abraço de todas as nações sob Jesus.

REINO DE DAVI

Davi governou a Judéia no início do séc. 10 a.C. A tradição o coloca como um camponês ungido pelo profeta Samuel, do templo de Shiló, na terra de Efraim, ao norte de Jerusalém. Davi aparece no reinado de Saul, primeiro rei dos Judeus, em meio a uma disputa territorial com os Filisteus. Ungido pelo profeta, trabalhando como músico de Saul enquanto era atormentado por um espírito mal enviado por Deus, Davi ganha respeito como guerreiro e passa a dividir autoridade com Saul entre suas tropas. Protegido pelo príncipe Jônatas, Davi cresce em poder e substitui Saul após ele e seu herdeiro serem mortos pelos Filisteus. Embora não fosse um exemplo de bom comportamento, Davi era respeitoso a Deus, penitente e igualitário com seus homens, sendo chamado até de “homem segundo o coração de Deus”.

Embora tenha lidado com seus filhos matando uns ao outros e até tentando tomar-lhe o trono, Davi desfrutou a estabilidade de um reino em paz com o Egito e comercialmente próspero. Israel era caminho obrigatório das caravanas de incenso, ouro e tecidos indo e vindo entre a Europa e a China. Isso pagou a construção do grande Templo por seu herdeiro Salomão. O Templo foi, desde então, o pilar da monarquia de Israel.

Muito depois de Davi, o Templo foi destruído durante a invasão de Nabucodonosor II no início do séc. 6 a.C.. Depois foi reconstruído por Zerubbabel, Neemias (governadores) e Esdras (sacerdote) no final do séc. 6 a.C., quando os judeus foram libertados pelo rei Ciro, o Persa. No séc. 2 a.C., durante o domínio Grego na Judéia, o Templo foi seguidamente esvaziado e re-consagrado. Ao final do séc. 1 a.C., o rei Herodes o Grande, súdito de Júlio César, de Roma, reformou e ampliou o Templo.

Por isso, quando Jesus apareceu na Terra, o Templo não era mais de Salomão nem era a sede do governo; a Judéia era então uma província liberta dos gregos e agora dominada pelos romanos. No imaginário popular, o Reino de Deus seria a restauração da independência e poder monárquico que os judeus contavam a respeito de Davi, quando tanto o rei quanto seu povo seriam adoradores e beneficiados de Javé.

REINO NA TERRA

Jesus, apesar de inserido no mundo judaico do seu tempo (Ele não dá a entender sobre formas de governo melhores ou futuras), não assume para Si a restauração do Reino de Davi. Em muitas passagens, Jesus dá a entender que o Reino de Deus já começara com João Batista, estava ao alcance de todos e não era deste mundo (João 8.23-25).

Assim, o Reino também não era algo espiritual destinado aos mortos. Jesus até usa em uma parábola a descrição judaica do Seio de Abraão, um local no Sheol / Hades / mundo-dos-mortos destinado aos justos. Ele também usa a figura de uma “casa de Deus” onde os espíritos humanos poderiam habitar. Mas com referência ao Reino, Jesus dizia que ele pertencia às crianças, aos pobres, aos mansos de coração e aos injustiçados (Mateus 5). Para entrar no Reino não era necessário morrer, mas nascer de novo (João 3). Ao arrependimento pregado por João Batista nas margens do Jordão, Ele emendava uma mudança radical ainda em vida. Devia-se amar a todos, mesmo os inimigos, dar tudo aos que precisavam mais, tratar a todos com igualdade.

A essa imagem de um Reino na Terra, Jesus empresta parábolas como a da semente de mostarda que cresce para se tornar uma árvore, o fermento que se espalha pela massa, a pérola preciosa pela qual se dá todos os pertences (Mateus 13). O evangelho de Mateus registra tais falas como um imaginário rico do que os Cristãos pretendiam ser. Mateus fez seu texto para judeus lerem, até evitando o nome YHWH como era próprio da sua época, e por isso ele fala muito em Reino dos Céus. Já Marcos não evitava dizer Reino de Deus, quando escrevia para os gentios que encontrava em suas viagens com Paulo, Lucas, Silas e Barnabé.

REINO NOS CÉUS

Jesus quebrou a cosmogonia judaica, onde os espíritos dos mortos eram destinados a um mundo sem sensações abaixo da terra, com alívios no caso de serem justos (o Seio de Abraão) ou com labaredas no caso de não serem (o Seio de Lázaro) (Lucas 16.19-31). Provavelmente essa não era a crença de todos, pois havia dissidências entre Fariseus e Saduceus. No evangelho de João, Ele anuncia uma morada junto a Deus, mas não a nomeia como Reino (João 14.1-6). Apesar disso, em seu famoso exemplo de oração a Deus, ele diz “venha a nós o Vosso Reino, seja na Terra assim como é nos Céus” (Mateus 6.9-13, Lucas 11.2-4).

Essa visão de um Reino no além-vida popularizou-se nos primeiros séculos da Igreja, juntando-se a filosofias gregas sobre a imperfeição do mundo vs. a perfeição de Deus e mesmo ensinamentos judaicos do grupo dos Essênios, do qual viera João Batista. Em suma, isso criou a idéia de um corpo corrupto e mal (Paulo usa essa imagem, ao dizer que o Espírito luta contra a Carne - Gálatas 5.16-25), em um mundo também corrupto e mal, do qual o homem é liberto pela morte após uma vida justa. Santo Agostinho, influente teólogo e bispo de Hipona Régia (antigo reino de Cartago após o domínio romano, na costa norte da África, séc. 4) implantou essa idéia em toda a filosofia Cristã.

No Catolicismo, especialmente com a publicação da Divina Comédia (Dante Alighieri, início do séc. 14), a Igreja Católica estendeu o pós-morte a uma viagem das almas pelo Purgatório, de maneira que os vivos não apenas deviam ser justos, mas deviam pagar com sua boa conduta (e dinheiro) pelo pós-vida dos entes já falecidos.

REINO DO FIM DO MUNDO

Uma outra interpretação do Reino de Deus, amparada no Apocalipse ou Revelação de João e nas falas de Jesus, é a de que o Reino de Deus se consumará com o julgamento da Humanidade. No linguajar pitoresco de Jesus, serão separados os bodes e as ovelhas (Ezequiel 34.17, Mateus 25.31-34), o joio e o trigo (Mateus 13.36-42). Os primeiros serão destruídos no fogo ou nas trevas exteriores, os últimos terão seu lugar completamente sob a lei de Deus e habitarão uma nova Terra.

O Reino muitas vezes foi citado por Jesus como algo futuro, a ser estabelecido com o retorno Dele à Terra. Dessa forma os Cristãos se prepararam, desde a morte, ressurreição e ascensão de Jesus, para esse novo tempo, em que o Messias viria do céu, num momento em que Ele mesmo não saberia predizer. Obviamente, a instrução de pregar o Reino e a promessa de uma Consumação implicava a Igreja como construtora de tal Reino, de forma que o “proprietário” chegaria a qualquer momento para exigir a sua obra, em uma linguagem que foi muito utilizada nos sécs. 1 e 2 em livros como o Pastor de Hermas.

Mas o que caberia à Igreja fazer, exatamente, nesse tempo? Segundo Jesus, proteger as crianças, evitar divórcios, amar os inimigos, devolver o bem a quem faz o mal, dar tudo o que possui a quem precisar, ajudar os órfãos e as viúvas. Tais medidas seriam feitas a partir de um novo nascimento, algo que seria difícil aos ricos e atrairia muitos para o grupo.

EPÍLOGO

Certa vez ouvi um pastor dizer "O Brasil tem mais de 181 milhões de Cristãos. Não é possível que as coisas estejam ruins assim". Na verdade, a Igreja Cristã, definida como uma reunião organizada e administrada de pessoas, seja de qualquer denominação que caiba nas largas abrangências do Cristianismo, não teve sucesso em implantar o Reino de Deus definido por Jesus. Pelo menos a parte do Reino na Terra, que é a única cabível a nós. Não teve sucesso nos primeiros séculos do Cristianismo, nem em qualquer período posterior.

Já no séc. 2 a Igreja instituiu o batismo de crianças, o que vai diretamente contra o Reino ser algo ao qual as pessoas escolhem estar vinculados, e mais contra ainda o "nascer de novo" tanto pregado por Jesus a um certo nobre e fariseu chamado Nicodemus. A igreja também proibiu o divórcio exceto em casos de adultério (entre os judeus a prática era bastante comum, sendo suficiente a vontade do esposo), o que não é mais "tentar evitá-lo" do que colocar uma placa de "proibido pisar na grama". A Igreja também atacou (com força militar), matou, torturou e queimou vivos todos os dissidentes entre os sécs. 10 e 16 - isso incluiu outros sectos Cristãos, judeus e muçulmanos - o que também é uma versão bem estranha de "amai os próximo e a seu inimigo". Isso sem contar o extermínio dos inúmeros acusados de bruxaria, nas posses dos quais os religiosos estavam interessados. Desde que se aliou à monarquia romana no séc. 4, a Igreja reuniu grandes fortunas (seja como templos preciosos ou como ouro e fortunas bancárias) e apenas observou os miseráveis e milionários sob suas asas. Ao contrário da rejeição indicada por Jesus, os ricos e muito ricos se aliam e são beneficiados pela Igreja faz muuuuito tempo. Ela até acolheu, mas também usou como mão de obra os órfãos e viúvas nos sécs. 18 e 19, tendo feito bem pouco ou nada por eles antes disso.

A Igreja atraiu multidões desde os tempos de Jesus, mas os dissidentes (nomeados ateus e agnósticos, literalmente aqueles a quem a Igreja não atrai) se multiplicaram desde o séc. 16 na Europa e se concentram, dentro do mundo Cristão, sobretudo no Leste Europeu (por influência do Comunismo desde o início do séc. 20), mas também entre os países nórdicos (90% da população), França (60%) e Canadá (50%). No Brasil são pouco menos de 10%, porém crescendo entre as gerações mais novas.

Que o proprietário demore um tanto a voltar, ou terá um susto.

-----------------------------------

PAPÉIS LARGADOS NA FRONTEIRA DO REINO

Atheism History - wikipedia
Fairchild M, What is the kingdom of God?, Learnreligions.com, out/2018
Infant baptism - wikipedia
Kingdom of God - Gotquestions.org
Stein RH, Kingdom of God, Biblestudytools.com
Walvoord JF, Kingdom of God in the New Testament, jan/2008

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!