Esquerda: decapitação de São Justino em 165 d.C., mosaico na Igreja Monte das Beatitudes/Jerusalém; Centro: Santo Agostinho, pintura de Pietro di Giovanni D'Ambrogio/Itália, 1435; Direita: encontro entre o sultão Malek al-Kamil e Francisco de Assis, em 1219, no Egito - pintura do Frei Robert Lentz/EUA
Ver ações da Igreja Cristã em benefício de populações carentes talvez não seja vívido na memória dos mais novos como é, na dos mais velhos. Até os anos 1970, por exemplo, diversos países da América Latina, assolados por regimes ditatoriais ou a mais legítima exploração capitalista tiveram intervenções da Igreja Católica. Raramente essas intervenções assumiram um papel político, no entanto. Uma ação política significa mobilizar grupos sociais para desfazer esquemas de exploração dos mais fracos pelos mais poderosos. Isso pode descambar para movimentos revolucionários e rebeldias, o que jamais foi o objetivo da Igreja, sempre associando a palavra “revolução” com a guerra de Lúcifer*. Mas como desmontar um sistema social / econômico em que algumas pessoas ricas, favorecidas legal e politicamente, se beneficiam do sofrimento de outras, sem produzir uma revolução? Desde o século 1, esse tem sido o desafio de parte da Igreja.
JESUS
O ponto inicial desses movimentos religiosos foi o nascimento e convivência de Jesus entre os mais pobres. É difícil avaliar a posição social de Jesus a partir dos Evangelhos, mas a profissão do pai como carpinteiro, o nascimento em um lugar frequentado por pastores, a convivência com pescadores, a não menção de qualquer propriedade faz pensar que Jesus estava entre os mais pobres de sua gente, só acima dos inválidos e leprosos. Quando Ele ainda emenda a fala “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus" (Marcos 10.25), conclui-se imediatamente que Jesus não era rico.
Mas como Jesus via as pessoas com posses? Embora muitos sejam tentados a pensar logo no elogio da viúva pobre por doar “duas pequeninas moedas de cobre, de muito pouco valor” (Marcos 12.42), é importante ressaltar que se trata de uma fala sobre doação, antecedida por uma repreensão aos mestres da lei, que “devoram as casas das viúvas” (Marcos 12.40) e coroada por “deu tudo o que possuía para viver" (Marcos 12.44). O que Jesus acaba fazendo com seu exemplo é parear as condições “favorecido” e “ruim”. Mas isso não O impediu de se envolver com centuriões romanos e publicanos, até incluindo Mateus, um deles, entre o seu grupo de apóstolos (Mateus 10.2-4).
No episódio do jovem rico, anotado apenas por Lucas em sua pesquisa histórica, Jesus coloca como condição para ser salvo que ele “vendesse tudo o que possui e desse o dinheiro aos pobres, tendo então um tesouro nos céus" (Lucas 18.22). Embora essa passagem deixe dúvidas sobre a importância de livrar-se do dinheiro ou de dar o mesmo aos pobres, ela é bem semelhante à conversa de Jesus com o publicano Zaqueu:
“Olha, Senhor! Estou dando a metade dos meus bens aos pobres; e se de alguém extorqui alguma coisa, devolverei quatro vezes mais". Jesus lhe disse: "Hoje houve salvação nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão”. (Lucas 19.8,9)
Não se relata, curiosamente, um episódio semelhante com Mateus, também publicano, ou alguma evidência posterior com Paulo de Tarso, fariseu-romano bem abastado. De fato, a preocupação da Igreja Primitiva com as riquezas parece se resumir em as riquezas serem distrações que afastam de Deus, mais ou menos como os espinhos da Parábola do Semeador. É Tiago (irmão de Jesus) quem primeiro estrutura essa relação Cristã com os pobres, resgatando-a do profeta Isaías:
As suas mãos estão cheias de sangue! Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva. (Isaías 1.15-17)
A religião que Deus, o nosso Pai aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo. (Tiago 1:27)
IGREJA PRIMITIVA
A forma como o livro de Atos descreve a organização da Igreja Primitiva, isto é, com as pessoas vendendo suas posses e levando o dinheiro para repartir entre todos (Atos 2.44,45), conforme a necessidade de cada um, sugere ainda uma sociedade comunal. Podemos pensar que em tal sociedade inexistem riscos e pobres, nem uma classe privilegiada, mas as primeiras cartas apostólicas, relativas às igrejas nascentes, sugerem que não havia tal controle.
Quando vocês se reúnem, não é para comer a ceia do Senhor, porque cada um come sua própria ceia sem esperar pelos outros. Assim, enquanto um fica com fome, outro se embriaga. Será que vocês não têm casa onde comer e beber? Ou desprezam a igreja de Deus e humilham os que nada têm.. (1ª Coríntios 11.20-22)
Mas vocês têm desprezado o pobre. Não são os ricos que oprimem vocês? Não são eles os que os arrastam para os tribunais? (Tiago 2.6)
Seguindo o mandamento de Jesus quanto a “amar o próximo”, assim como Isaías e Tiago, vemos Paulo reunindo, em suas viagens, doações com as quais ajudava os crentes mais pobres:
Naqueles dias, crescendo o número de discípulos, os judeus de fala grega entre eles queixaram-se dos judeus de fala hebraica, porque suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária de alimento. Por isso os Doze reuniram todos os discípulos e disseram: "Não é certo negligenciarmos o ministério da palavra de Deus, a fim de servir às mesas. Irmãos, escolham entre vocês sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria. Passaremos a eles essa tarefa ..." Então escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, além de Filipe, Prócoro, Nicanor, Timom, Pármenas e Nicolau, um convertido ao judaísmo, proveniente de Antioquia. (Atos 6.1-5)
Agora, porém, estou de partida para Jerusalém, a serviço dos santos. Pois a Macedônia e a Acaia tiveram a alegria de contribuir para os pobres dentre os santos de Jerusalém. Eles tiveram prazer nisso, e de fato são devedores a eles. Pois se os gentios participaram das bênçãos espirituais dos judeus, devem também servir aos judeus com seus bens materiais. Assim, depois de completar essa tarefa e de ter a certeza de que eles receberam esse fruto, irei à Espanha e visitarei vocês [romanos] de passagem. (Romanos 15.2528)
Tiago, Pedro e João, tidos como colunas, ... somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o que me esforcei por fazer. (Gálatas 2.9,10)
Um relato do final do séc. 1 nos chega pela 1ª carta de Clemente, bispo de Roma, aos Coríntios (81-96 d.C.). Nessa carta, Clemente ressalta a natureza pobre e humilde de Jesus, diversas vezes evocando as passagens acima, de Isaías.
cap. 16 1. Cristo está entre os humildes, e não entre aqueles que se sobrepõem ao seu rebanho. 2. O Senhor Jesus Cristo, cetro da majestade de Deus, não veio, embora pudesse, no alarde da arrogância ou da soberba, mas humilde, conforme o Espírito Santo havida dito sobre ele.
Pouco à frente, o livro Pastor de Hermas (96-150 d.C.) também sugere a convivência de ricos e pobres nas igrejas, atribuindo aos ricos a função de cuidar dos pobres e aos pobres a função de orar pelos ricos, pois sua oração era ouvida pelo Senhor (Hermas 51.1-6). Cumprir essas obrigações (tanto os ricos quanto os pobres estavam comprometidos) era, segundo Hermas, condição para ser contado entre as “pedras brancas” que compunham sua torre símbolo do Reino de Deus.
Relatos do séc. 2 nos chegaram, também, por meio da Apologia de Justino**, uma carta ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César Augusto (governou de 138 a 161 d.C.), onde o teólogo judeu defende os Cristãos como cidadãos romanos que não deveriam ser tratados por inimigos. Em sua carta, Justino usa passagens de Isaías, Mateus e Clemente, apontando que os ritos dominicais (do dia de Sol, segundo ele) se destinavam a recolher doações para órfãos, viúvas, necessitados, prisioneiros e forasteiros.
5. .. Vem depois a distribuição e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos diáconos. 6. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provedor de todos os que se encontram em necessidade. (1ª Apologia 67.5-6)
ROMA
A transformação da Igreja em órgão político deu-se a partir do Incêndio de Roma em 64 d.C., seguida pela destruição de Jerusalém em 70 d.C. Com judeus e Cristãos transformados em párias da sociedade romana, sua organização em grupos onde cada protegesse os demais foi essencial para que sobrevivessem. As 1as dioceses (Roma, Alexandria, Síria, … ) já estabeleceram redes de proteção entre os Cristãos que culminaram, por exemplo, no estabelecimento de reinos como Axum na Etiópia, Hymiar no Iêmen depois Bizâncio na Turquia. O surgimento de uma classe rica e poderosa de Cristãos acabou por atrelar a Igreja ao governo imperial, a ponto de o rei Constantino I declarar o Cristianismo como fé do Império, no início do séc. 4. O que nos restou de tal época foram os documentos de definição da doutrina Cristã, litigiosos e militares, muito pouco atentos a questões sociais.
No séc. 5, Agostinho bispo de Hippona Regia, no norte da África gerenciado pela diocese de Cartago, escreveu sua obra “Cidade de Deus”. Agostinho provavelmente foi uma das pessoas mais influentes no Cristianismo romano e medieval (sécs. 4 a 16). No livro, ele descreve uma Roma se fragmentando, sendo invadida por estrangeiros e culpando os Cristãos pelos rumos tenebrosos do Império.
“Mas alguns homens bons e cristãos foram submetidos à tortura, para os forçar a entregarem seus bens ao inimigo. Eles não podiam entregar nem perder aquele bem que os tornava bons entre os homens. Se, no entanto, eles preferiam a tortura à rendição das riquezas, então eu digo que eles não eram bons homens. Antes, deveriam ser lembrados de que, se sofriam tão severamente por causa do dinheiro, deveriam suportar todo tormento por amor a Cristo. Que eles aprendam a amá-Lo antes, e saibam que Ele enriquece com felicidade eterna todos os que sofrem por Ele. Não o fazem a prata nem o ouro, pelos quais era lamentável sofrerem, quer os preservassem mentindo ou os perdessem dizendo a verdade.” (Cidade de Deus, cap. 10)
Agostinho compõe as imagens de uma “cidade dos homens” gerida por vícios e concupiscências, ou libertinagens, e uma “cidade de Deus” governada pela devoção e aperfeiçoamento dos homens, atrelando uma e outra aos acontecimentos da sua época e à longa história do Império. A divisão social dentro do Cristianismo fica evidente quando Agostinho cita, em sua obra, o grande valor das esmolas dadas pelos Cristãos ricos aos Cristãos pobres.
“... Ele pode assim mostrar a ineficácia da caridade para eliminar os pecados do passado. Tais pessoas que dão esmolas, ao invés de mudarem maus hábitos de vida por uns melhores, não podem ser ditas como fazendo obras de caridade. Pois este é o significado do ditado: se você não fez bem a um dos menores destes, você não fez bem para mim (Mateus 25:45). Eles não realizam ações de caridade mesmo quando pensam que estão fazendo isso. Pois, se dessem pão a um cristão faminto porque ele é cristão, certamente não negariam a si mesmos o pão da justiça, isto é, o próprio Cristo. Deus não considera a pessoa a quem o presente é feito, mas o espírito no qual ele é feito.” (Cidade de Deus, cap. 27)
Quando enalteceu uma vida simples e pobre (Agostinho foi um exemplo disso), ele de certa maneira definiu o que seria dos monges medievais: homens que abjuraram de suas posses, que entregaram tudo para entrar no Reino de Deus, para não serem desencaminhados pelas riquezas. A Igreja Cristã, enquanto isso, tornou-se a instituição recebedora dessas doações.
Em toda a Europa, à medida que o governo romano recuava e as terras ficaram reduzidas a pequenos reinos sem lei, sabemos que os mosteiros tiveram um forte papel educacional. Em seu círculo de monges pobres e auto-sustentantes (essa era a filosofia de São Benedito de Nursia, Itália - 480 a 547 d.C.), a Igreja se tornou o polo urbano e organizador da vida medieval no Ocidente.
No Oriente, a Igreja e o Império de Bizâncio/Constantinopla enriqueciam com o comércio de seda e incenso para Índia e Arábia, bloqueando a expansão do Islã com Cristãos, pela 1ª vez na história, treinados para a guerra..
IDADE MÉDIA
Esse período entre o desmantelamento de Roma Ocidental (aprox. 500 d.C.) e a destruição de Roma Oriental pelo Islã (1453) foi caracterizada por enormes contrastes entre os Cristianismos Ocidental e Oriental, a ponto de que ambos separaram-se oficialmente em 1054. O ano 1000 e a Grécia representavam fronteiras importantes no tempo e espaço da Idade Média.
No Oriente, falamos de Grécia, Turquia, Egito e Palestina. Toda essa região era controlada por Bizâncio/Roma Oriental, com capital em Constantinopla e usando o grego como idioma. Paulo chamava essa região de Galácia, por onde passavam as caravanas de seda, linho, incenso e pedras preciosas indo da China e Índia para o Iêmen e então para a Europa. Por isso Bizâncio enriqueceu e, como tinha a Igreja atrelada ao Estado, floresceram igrejas. Apesar disso, o modelo grego de Cristianismo era pouco centralizado, com muitos religiosos casados e cada comunidade cuidando de si própria, o que levou a uma separação definitiva do Ocidente em 1054 (no Ocidente ficaram os Católicos Romanos e, no Oriente, os Católicos Ortodoxos). O rico Estado/Igreja Bizantino manteve um equilíbrio fluido com o Islã, através de batalhas e acordos monetários com os povos vizinhos.
A população de Bizâncio era mais tradicional, instruída e urbana que a de Roma Ocidental, sendo formada por judeus, gregos e romanos abraçados pelo Cristianismo. Essa fusão produziu menos desigualdade social e mais abertura religiosa, além de as culturas grega e judaica favorecerem debates filosóficos. Como era uma rota comercial, Bizâncio oferecia muitos empregos aos pobres, seja nos mercados de todos os tipos, serviços portuários ou mesmo como ladrões de mercadorias. A aristocracia enquanto isso cuidava de barcos e remessas, ou de negócios e expedições militares contra o Islã, no Mediterrâneo e Mesopotâmia. Após o ano 1000, os favores imperiais por sucessos comerciais e militares faziam famílias inteiras ascenderem ou afundarem socialmente. A alta mortalidade por pragas do Oriente ou batalhas requeria uma ação social importante da Igreja na manutenção de asilos e orfanatos. A Igreja Ortodoxa, apesar de ligada ao Estado, sempre foi a responsável por manter as instituições de ajuda aos pobres, baseando-se sobretudo na pregação de João Crisóstomo (349-407 d.C.), bispo de Constantinopla e até hoje um ícone no Cristianismo Oriental.
"Privar é pegar o que pertence a outro. Por isso somos ensinados que quando não mostramos misericórdia, seremos punidos como aqueles que roubam. Porque o nosso dinheiro é do Senhor, no entanto, podemos tê-lo em mãos. Se fornecermos para os necessitados, obteremos grande abundância. É por isso que Deus permitiu que você tivesse mais: não para você desperdiçar prostitutas, bebidas, comidas chiques, roupas caras e todos os outros tipos de indulgência, mas distribuir para os necessitados. Um funcionário do tesouro imperial, quando se nega a distribuir o que é ordenado, mas em vez disso se dedica à sua própria indulgência, paga a multa e é condenado à morte. Assim também o rico é um tipo de mordomo do dinheiro para distribuição aos pobres. Ele é ordenado a distribuí-lo aos seus companheiros que estão em falta. Então, se ele gastar mais consigo mesmo do que sua necessidade exige, ele pagará a pena mais severa. Porque os seus próprios bens não são seus, mas pertencem aos seus conservos. Devemos usar nossos bens com parcimônia, como pertencentes a outros, para que eles possam se tornar nossos. Como devemos usá-los sendo pertencentes a outros? Quando não os gastamos além de nossas necessidades, e não gastamos apenas para as nossas necessidades, mas entregamos partes iguais às mãos dos pobres. Se você é rico, mas gasta mais do que precisa, você dará uma conta dos fundos que lhe foram confiados. Isso também acontece em grandes famílias. Muitas pessoas confiaram seus assuntos financeiros a seus empregados domésticos. Aqueles que receberam esta confiança guardam o que lhes foi dado, e não fazem mal uso do dinheiro, mas o distribuem onde e quando o seu mestre o orienta. Você também deve fazer isso. Pois você obteve mais do que os outros, não para gastá-lo por si mesmo, mas para se tornar um bom administrador" (João Crisóstomo)
"Privar é pegar o que pertence a outro. Por isso somos ensinados que quando não mostramos misericórdia, seremos punidos como aqueles que roubam. Porque o nosso dinheiro é do Senhor, no entanto, podemos tê-lo em mãos. Se fornecermos para os necessitados, obteremos grande abundância. É por isso que Deus permitiu que você tivesse mais: não para você desperdiçar prostitutas, bebidas, comidas chiques, roupas caras e todos os outros tipos de indulgência, mas distribuir para os necessitados. Um funcionário do tesouro imperial, quando se nega a distribuir o que é ordenado, mas em vez disso se dedica à sua própria indulgência, paga a multa e é condenado à morte. Assim também o rico é um tipo de mordomo do dinheiro para distribuição aos pobres. Ele é ordenado a distribuí-lo aos seus companheiros que estão em falta. Então, se ele gastar mais consigo mesmo do que sua necessidade exige, ele pagará a pena mais severa. Porque os seus próprios bens não são seus, mas pertencem aos seus conservos. Devemos usar nossos bens com parcimônia, como pertencentes a outros, para que eles possam se tornar nossos. Como devemos usá-los sendo pertencentes a outros? Quando não os gastamos além de nossas necessidades, e não gastamos apenas para as nossas necessidades, mas entregamos partes iguais às mãos dos pobres. Se você é rico, mas gasta mais do que precisa, você dará uma conta dos fundos que lhe foram confiados. Isso também acontece em grandes famílias. Muitas pessoas confiaram seus assuntos financeiros a seus empregados domésticos. Aqueles que receberam esta confiança guardam o que lhes foi dado, e não fazem mal uso do dinheiro, mas o distribuem onde e quando o seu mestre o orienta. Você também deve fazer isso. Pois você obteve mais do que os outros, não para gastá-lo por si mesmo, mas para se tornar um bom administrador" (João Crisóstomo)
No Ocidente, falamos da Europa entre Espanha e Turquia. A África fora perdida para o Islã, assim como parte da Espanha e França. Esse lado da Europa empobreceu e se fragmentou em inúmeros reinos sob autoridade de bárbaros - mais precisamente pagãos semi-convertidos ao Cristianismo. A vida dos pobres era regulada pela proteção e ataques militares das famílias ricas, que mantinham acordos diplomáticos com os mosteiros. Os nobres defendiam suas terras (contra outros nobres) e às vezes os mosteiros; os mosteiros negociavam acordos entre os nobres, além de ajudarem os pobres em épocas de crise. Não havia luxos ou uma “classe média”; as pessoas tinham seus destinos traçados ao nascer nobres (destinados ao serviço militar, por isso o nome “cavaleiros”) ou camponeses (literalmente destinados ao campo). Dependendo das colheitas boas ou não, os camponeses dependiam das esmolas coletadas pelos mosteiros.
Esmolas eram, como acusava Agostinho, a forma de famílias ricas comprarem a bênção Cristã. Uma marca dessa época é a titulação de nobres como “santos” e seu enterro dentro das igrejas. Também a Igreja era detentora de terras, criando uma teia de recolhimento de produtos onde muitas vezes os mosteiros e abadias acumulavam fortunas. Os mosteiros beneditinos, cujo lema era “trabalho e adoração”, tornaram-se centros educacionais (educação = ensino estórias bíblicas ou locais por pinturas nas paredes¹), médicos e sociais da população que vivia em chalés rústicos de madeira espalhados nos campos ou nas bordas das florestas. A educação religiosa fez os camponeses profundamente religiosos, regulando seu dia e calendário por significados Cristãos. Por outro lado, as famílias ricas vinham de clãs pagãos antigos e os pobres, sujeitos à imprevisibilidade das colheitas, cultuavam deuses agrícolas como Lug, Kernunos, Dagda, Thor, etc. Tal fusão cultural e o desuso de textos religiosos produziu tradições como a Páscoa (ressurreição de Cristo + ovos e animais no início da primavera), o dia de Finados (oração pelos mortos + Samhain ou dia dos mortos) e a Caça às bruxas (causas misteriosas de pestilências + encantamentos com ervas e animais).
Após o ano 1000, a Europa Ocidental voltou a receber linho, lã, medicamentos (ex.ópio) e incenso do Oriente, vindos por Bizâncio (Roma Oriental). Muitas famílias nobres se filiaram à Igreja na reconquista da Terra Santa, enquanto a Igreja sacralizou os direitos sobre as terras. Com menos conflitos na Europa e cavaleiros sendo sustentados, as vilas tornaram-se cidades dentro de fortalezas, onde se aninhavam as abadias. Muitos nobres e religiosos entraram no “exército celestial”, que combatia tempestades, doenças e as forças do mal formadas por demônios, bruxas e bestas. Os cuidados médicos nos mosteiros evoluíram para hospitais de leprosos e idosos (eram locais onde se mantinham os doentes longe da população, com alguém lhes fornecendo alimento), peregrinos (viajar para um local sagrado e fazer doações lá era um modo usual de obter perdão legal e religioso), doentes (os cuidados médicos da época não iam muito além de alimentação e dormitório para quem não conseguia trabalhar) e pobres (locais onde eram distribuídas doações da Igreja e dos nobres). Esses abrigados eram chamados de “irmãos e irmãs”, nomes que depois foram usados pelos religiosos, sendo sustentados principalmente pelo trabalho comunal junto com os religiosos, em terras da Igreja, ou por doações de rejeitos dos mercados.
Foi nessa situação que um mercador de tecidos da fronteira França/Itália chamado Peter Waldo assumiu um discurso religioso por volta de 1170. Ele declarou seus bens um fardo para seguir a Cristo (quem se lembra do jovem rico?) e diversos padres o seguiram. Seu grupo, “Os Pobres de Lyon/da Lombardia”, defendia a pobreza voluntária, inexistência do Purgatório (para o qual a Igreja coletava muitas doações), pregação leiga e a tradução da Bíblia para o Arpitan (dialeto Franco-Provençal). Foram até Roma defender-se perante o papa, acabando excomungados anos depois. Até o séc. 16 houve perseguição e morte de Waldenses, mas se descentralizaram e semearam movimentos por toda Itália e França. Em 1202, juntou-se a eles o jovem Giovanni di Pietro di Bernardone, também de uma rica família de comerciantes de tecidos, que voltava da guerra entre os reinos italianos de Perugia e Assis. Giovanni fez a sua versão do Waldensianismo menos rebelde às doutrinas, mas ainda clamando pela pobreza e cuidado com os pobres. Ordenado Francisco de Assis, ele seria a 3ª figura Cristã mais influente na Europa, atrás apenas de Jesus e Maria.
FRANCISCO
Já próximo ao final da Idade Média, o grupo dos “Irmãos Menores” de Francisco ficou famoso por sua defesa da humildade e pobreza perante o papa Inocente III, em 1209, conseguindo o que Peter Waldo não pode. Peregrinando entre o centro e o norte da Itália, eles conseguiram muitos adeptos em seu propósito de caridade, a ponto de que novas ordens mendicantes surgiram e Francisco foi ao Egito, 10 anos depois, como diplomata da Igreja junto ao sultão Malek al-Kamil. Grande parte do que se sabe dele foi escrito postumamente, especialmente na obra Fioretti (Pequenas Flores) de Frei Ugolino Brunforte, que conta sobre milagres e a transição de comando da ordem para Irmão Bernardo.
“Irmão Bernardo, fazendo o santo sinal da cruz, em nome da santa obediência, partiu para Bolonha. Mas quando chegou naquela cidade, as crianças viram que estava vestido estranhamente e mal, então riram e zombaram dele, tomando-o por louco. Todas estas provações ele aceitou pelo amor de Cristo, com grande paciência e alegria. Procurando ser ainda mais desprezado, foi ao mercado, onde, tendo se sentado, um grande número de crianças e homens se reuniu. Puxaram-no pelo capuz, jogando pedras e poeira. A tudo isso, Irmão Bernardo suportou em silêncio, com expressão de santa alegria no semblante, e por vários dias retornou ao mesmo lugar para receber os mesmos insultos. A paciência sendo uma obra de perfeição e prova de virtude, um doutor culto da lei, vendo tal virtude e constância nele, disse dentro de si : “Sem dúvida este homem deve ser um grande santo”. Indo até ele, ele perguntou quem ele era, e de onde vinha.” (Fioretti, cap. 5)
Fioretti parece resumir as estórias contadas localmente sobre Francisco de Assis e seu grupo, formando uma lenda onde o ponto central não estava tanto em ajudar os pobres, mas em destituir-se das riquezas como foi pedido ao jovem rico, para que não atrapalhem. Além disso, a imagem de Francisco que se construiu condiz muito com a idéia medieval de atrair a bênção divina suportando um sofrimento pessoal, mesmo causado por si mesmo e sem benefício de qualquer um.
AINDA NÃO É UMA CONCLUSÃO
Embora a ajuda aos órfãos e viúvas seja mandamento bíblico, as ações da Igreja no sentido de prover auxílio para os necessitados começou de forma pontual e pouco eficaz. Ela cresceu muito lentamente ao longo dos séculos, vinculada talvez mais a ações políticas do que religiosas (embora sempre ligada à Igreja), enquanto a estrutura religiosa do Cristianismo tornou-se exuberante.
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* A batalha de Lúcifer contra Deus, curiosamente, é em grande parte uma construção imaginativa. Citada de forma profética e nebulosa em um trecho do Apocalipse, ela ganhou o imaginário ocidental pela obra Paraíso Perdido, de John Milton (1667). O livro, escrito em forma de poema pelas filhas de um autor cego, e depois ilustrado pelo artista Gustave Doré (que ilustrava Bíblias) em 1866, foi tão impactante que mais ou menos se tornou o ensino religioso sobre a Criação.
** Justino defendeu os Cristãos mas acabou, depois de confrontar o filósofo Crescens em Roma, sendo acusado de ser Cristão. Julgado com mais 6 alunos seus perante um tribunal, ele e os demais se recusaram a fazer sacrifício aos deuses romanos e foram decapitados.
¹ Existe até hoje uma expressão européia para os vitrais e pinturas na igrejas: “Bíblia do homem pobre”.
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LEIA QUEM FOR LEITOR
Estamos divulgando aqui as obras contidas no site Apologistas Católicos, onde se pode encontrar diversas obras do início da Igreja Cristã. Vale a pena conhecer.
Apologia de Justino, séc. 2
Augustino de Hippona, City of God, séc. 5
Byzantine Empire - wikipedia
Cartright M, Society in the Byzantine Empire, Ancient History Encyclopedia, ancient.eu, abr/2018
Crisótomo J, 2º sermão sobre Lázaro e o homem rico
Cristãos do norte, loungecba.blogspot.com, set/2016
Cristãos do norte, loungecba.blogspot.com, set/2016
Francis of Assisi - wikipedia
Geary P. J., Peasant religion in medieval Europe, Cahiers d'Extrême-Asie, 185-209, 2001
Mark JJ, Silk Road, Ancient History Encyclopedia, ancient.eu, mai/2018
Pastor de Hermas, séc. 2
Sweetinburgh S., The hospital experience in medieval England, Historyextra.com/BBC, mar/2016
Ugolino Brunforte, Little flowers of St. Francis of Assisi (Fioretti), séc. 14
Waldensians - wikipedia
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