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sábado, 21 de março de 2020

Carlos Magno, rei dos Cristãos

Mort de Roland, na obra Grandes Chroniques de France, ilustrada por Jean Fouquet (1455-1460). Na pintura, Baudouin se lamenta pela morte do príncipe no ataque dos Bascos.

O rei Carlos Magno viveu entre 742 e 814 d.C., período que repartiu a Idade Média na Europa. Para o Cristianismo, foi um espaço entre quase desaparecer no Ocidente e se tornar uma força modeladora do mundo.

ALTA IDADE MÉDIA

A Antiguidade da Europa terminou com a fragmentação de Roma Ocidental. Desde uns 500 a.C. até por volta do séc. 4 d.C., quando abraçou o Cristianismo, Roma cresceu e modelou todas as terras ao redor da Itália. Conquistou toda volta do Mediterrâneo, incluindo as briguentas filiais de Cartago, no norte da África; avançou para o norte até as ilhas Britânicas; dominou a Grécia e atual Turquia. Roma construiu estradas ligando as cidades comerciais, levantou pontes e cidades de pedra esculpida que os Europeus demoraram a reproduzir. Fez alianças entre povos variados e inimigos, todos com reis educados por famílias Romanas, instalou governadores e legiões para impedir guerras e rebeliões, definiu o latim como idioma oficial ou mundial dos governos. Roma tornou-se tão grande que foi preciso ter dois imperadores a fim de governar seu imenso território. Mesmo a China chegou a receber legiões.

O período Romano da Europa terminou com o fortalecimento de impérios rivais. No norte, os Saxões começaram a invadir as ilhas Britânicas, Dinamarca, Germânia, Holanda, norte da França. Ali até se dividiram, formando o povo Franco, que se espalhou pelo norte da Espanha e Portugal. No sul, os Godos aprenderam as lutas a cavalo dos Bérberes na África, tornaram-se guerreiros hábeis e cruzaram o Mediterrâneo para atacar a antiga Roma. Logo surgiu o Islã, um conjunto de califados ligados pela religião e descendência de Maomé, que tomou o Oriente Médio, Egito, juntou-se aos Godos no norte da África e sul da Espanha. Do leste, começaram a chegar as tribos guerreiras de Hunos vindos da China e Rússia, que atacavam as terras agrícolas e tornaram absolutamente necessário viver sob a proteção de grandes muralhas. Nessa época, todo o centro da Europa era ocupada por uma grande floresta, da qual a principal sobrevivente, hoje, é a Floresta Negra, na Alemanha.

Nas cidades Européias margeando os rios e planícies, o que era um grande reino se acabou ao longo de três gerações. As rotas de comércio mudaram. Antes, as caravanas vinham da China para a Índia, seguiram para o Iêmen por barco, dali para a Palestina através do Mar Vermelho, e depois pelo Mediterrâneo até Roma e o sul da Espanha. Até a Inglaterra recebia materiais vindos da Índia e China.

Com o erguimento de Constantinopla e os conflitos por terras no Oeste, as caravanas passaram a terminar na Grécia e toda a Europa empobreceu. Desapareceram as porcelanas, os tecidos finos e as tintas para escrever e pintar. Com a fuga dos Romanos, a cultura dos povos dominados voltou a seu estágio pré-Roma, mas agora com as pessoas vivendo nos escombros das grandes cidades de pedras. Era nas muralhas dessas cidades que elas se protegiam contra ataques dos Hunos, Francos, Godos e Mouros. Era ali que um pequeno reino se protegida dos soldados de outro pequeno reino, pois não havia mais um grande rei para submeter a todos. Sem o latim usado para os inúmeros registros do governo imperial, rarearam e até desapareceram as pessoas com conhecimento da escrita. O nome "Idade das Trevas" é usado hoje, com sentido pejorativo, para uma época sobre a qual simplesmente faltam documentos.

A Alta Idade Média surgiu na Europa com o desaparecimento do governo Romano. Não foi do dia para a noite. Aos poucos, não havia mais legiões guardando as fronteiras, nem impostos a pagar, nem leis de um Imperador. Para o Cristianismo, foi um período de grandes perdas: a Igreja havia se enlaçado com o governo imperial e, sem um, o outro também se quebrou. Ainda havia um papa em Roma, mas nada que forçasse os reinos a segui-lo: os movimentos Cristãos se reduziram a mosteiros e missões enviadas de Roma ou de Constantinopla para evangelizar povos pagãos em reinos pagãos.

Grande parte dos novos reis baseava suas ações nas previsões astronômicas ou divinatórias de magos, que para eles não eram tão diferentes do que foram Samuel e Elias no Velho Testamento. Algumas missões Cristãs, no entanto, como na Irlanda e na Inglaterra, foram promissoras. Em outros locais, as ruínas Romanas e os resquícios de Igrejas deram origem a santos misturando bem os milagres do Novo Testamento com os poderes sobre a Natureza dos deuses pagãos. São Patrício, por exemplo, foi um missionário Irlandês a que se credita o banimento de todas as serpentes da ilha.

MUDANDO O MUNDO MEDIEVAL

Uns 100 anos antes de Carlos Magno nascer, os Francos haviam iniciado sua expansão/centralização. Esse processo começou com o rei Clóvis I (466 - 509 d.C.), conquistador guerreiro de vários pequenos reinos Francos, que aderiu ao Cristianismo no final de sua vida. Os motivos dessa adesão são misteriosos: vários historiadores falam sobre a influência da esposa, que era Cristã. Outros (e acredito estarem certos) falam sobre a possibilidade de, assim, ele contar com o apoio militar dos Cristãos no sul da França, de forma a ter um exército superior ao dos outros reis. Boa parte da atual França havia aderido ao Cristianismo nos tempos de Roma, então o apoio da Igreja, mesmo repartida em abadias e mosteiros, daria a Clóvis uma força com o qual outros reis Francos não contavam.

No Natal de 508 d.C., o rei Clóvis foi batizado Cristão. Como previsto, essa medida logo deu-lhe influência sobre toda a terra entre a Espanha e a Alemanha. Foi uma questão de tempo até estabelecer tratados e se tornar o primeiro imperador desde a queda de Roma.

A linhagem de Clóvis, apesar do sucesso em unir as terras ocidentais, não foi próspera em manter-se no poder. Acabaram por delegar a autoridade sobre suas muitas terras a famílias administradoras que, como os generais de Alexandre, em breve decidiram sentar elas mesmas no trono. O grande golpe aconteceu quando o 1º ministro Pippin o Pequeno solicitou ao papa Zacarias (741 - 752 d.C.), em Roma, que ele apoiasse a tomada do trono Franco. A semelhança do nome com o personagem de Senhor dos Anéis não é casual. Acreditando no retorno da Igreja ao poder imperial, o que de fato estava em curso, o papa deu seu aval para uma nova dinastia na Europa. Assinando documentos forjados de Roma, em troca da Coroa, o novo rei Pippin assumia-se arrendatário de terras que por direito eram de Cristo e, portanto, da Igreja.

UM REI E SEUS ADVERSÁRIOS

Carlos I era filho de Pippin e assumiu um trono Cristão poderoso em 771 d.C., já então sendo famoso como conquistador, após 3 anos repartindo o governo com seu irmão. Além dos reinos Francos e Germânicos menores, que ele anexava continuamente no seu reino "Francia", Carlos tinha como inimigos poderosos os Mouros a oeste, os Lombardos ao sul, os Saxões ao norte e os Eslavos a leste². Alternando entre guerras no sul e no norte, ele acabou conquistando os Lombardos e os anexando a seu reino em 774. Os Saxões, por outro lado, eram ferozes: Carlos I promoveu massacres de milhares de Saxões capturados nas cidades que conquistava. Apesar do banho de sangue, os Saxões jamais se renderam².

Um dos grandes objetivos de Carlos I era muito alinhado com Roma: destruir os cultos não-Cristãos na Europa, que tinham se expandido desde a destruição do Império Ocidental. A maneira de fazê-lo, entretanto, era a conquista militar e não a pregação do Evangelho. Em 772, uma das expedições de Carlos I contra os Saxões destruiu um dos Irminsul, ou árvore sagrada, que conectava o mundo dos deuses e dos homens. Dez anos depois, ao sufocar uma rebelião nas montanhas Süntel, ele perdeu a captura de Widukind, um grande líder Saxão. Como resposta ao fracasso, o rei Franco-lombardo ordenou na cidade de Verden que 4500 prisioneiros fossem decapitados; supostamente os responsáveis pelo levante. Carlos I considerava-se o rei da "Nova Israel" e não faltou ao extermínio de raças rebeldes, como os Amalequitas e Moabitas do Velho Testamento. Muito mais tarde, em 1935, sua decisão quanto ao genocídio seria lembrada pelo Partido Nazista³.

As investidas de Carlos I contra os Mouros também não foram tão afortunadas. Numa delas, até perdeu um de seus generais, e também sobrinho, no episódio que foi "pintado" no mais típico estilo medieval na Canção de Rolando. O enredo desta canção de gesta (narrativa poética de fatos) fala da batalha de Roncesvales (ano de 778). O exército Franco havia ido a Saragoça para intervir numa negociação entre líderes Mouros. Após estabelecer acordos, o exército de Carlos I iniciou seu retorno para Francia. Os Cristãos da região, duvidando da lealdade dos Francos, num ataque súbito, dizimaram sua retaguarda, matando Rolando, sobrinho de Carlos I. Enquanto isso, no Oriente, emissários do rei faziam acordos com o califa de Bagdá, Harum al-Rachid: a idéia de Cruzada contra o Islã não era do tempo se Carlos I. Aparentemente, o rei tratava suas batalhas com os Mouros como negócios e disputas entre governantes, tal como fazia com os demais líderes Francos*.

Contra os Eslavos, Carlos I foi exemplar como candidato a Imperador. Os Eslavos haviam estado sob o comando dos Ávaros, descendentes dos Hunos, desde o séc. 5, mantendo inclusive a capital de Átila, chamada "O Anel", provavelmente perto da cidade de Craiova, na atual Romênia. No séc. 8, entretanto, os Ávaros haviam enfraquecido por suas muitas batalhas perdidas contra Bizâncio. Dessa forma, os Eslavos eram governados por príncipes que duelavam entre si e não mais um grande rei. Incapaz de esmagar seus inimigos, que lutavam muito bem sobre cavalos em meio a montanhas e florestas, Carlos impediu que desenvolvessem agricultura ou caça, sufocando-os pela fome. Em alguns anos, as guerras irromperam entre os príncipes Eslavos e um acordo de paz foi conseguido após a captura do Anel por um dos príncipes de Carlos I e a entrega de 15 carroças de ouro (grande parte tesouros tomados dos Germânicos e Lombardos), em 795. Claro que esse acordo não contou com apoio de todos os príncipes, o que reiniciou as guerras e terminou com a destruição do Anel em 799.

REI DO MUNDO

Em 800 d.C., os nobres de Roma tentaram remover o Papa de sua posição imperial e ele buscou auxílio do grande rei Franco. Carlos I foi convidado a Roma. No Natal daquele ano, o papa Leão III (795-816) o coroou como Carlos Magno, Imperador do Mundo (ou, mais propriamente, da nova Roma Ocidental). Fundava-se, assim, o Sacro Império Romano-germânico. Além da extensão territorial que lembrava a antiga Roma, indo do leste da Turquia até o oeste de Portugal e do sul da Itália até o norte da Alemanha, esse novo reino investia Carlos Magno e seus descendentes do poder concedido "por Cristo" para reger as vidas de todos os homens. O imperador ocupava, assim, a função que fora de Augusto e seus inimigos seriam inimigos de Deus, sua saúde a saúde de todas as terras.

O rei assumiu prontamente seus novos poderes: estabilizou as famílias nobres de suas terras por juramentos de lealdade feitos pessoalmente a ele e em presença do Papa, reorganizou a Igreja promovendo a educação e ordenação oficial do Clero, ordenou a "cristianização" de todos os povos submissos. Boa parte da organização medieval de poderes se desenvolveu a partir de seu reinado, com hierarquias como bispo e abade incorporadas ao governo e religiosos destacados para essas posições políticas.

Além disso, os muitos pequenos principados cercados de muralhas que fazem nosso imaginário sobre a Idade Média mudaram. Reinos foram unidos, os grandes países que formam a Europa atual começaram a ser desenhados. O comércio foi aos poucos restabelecido e engatilharam-se as mudanças tecnológicas (ex. na agricultura e no sistema de trabalho) que caracterizam a Baixa Idade Média. As escolas Carolíngeas, embora direcionadas ao Clero, tornaram-se compiladoras de muitos textos antigos - não necessariamente religiosos - dos quais as únicas cópias atuais vieram desse período.

NOVOS RUMOS PARA A IGREJA

Carlos morreu de causas naturais no ano de 814. Sua última obra foi coroar um dos filhos, Luis o Piedoso, em 813. No entanto, os reis Saxões do norte fortaleceram-se, dando origem aos reinos de Dinamarca, Noruega e Suécia. Eles desenvolveram um poderoso sistema de batalhas, em que hordas diferentes convergiam sobre as mesmas cidades. A partir de 820, os Vikings choveram sobre o norte da França e as ilhas Britânicas, conquistando mesmo Paris e Londres.

O levante dos reinos Francos e Germânicos contra os ataques Vikings deu poder militar a muitos clãs nobres que, após o reinado de Luis, repartiram as terras e fundaram seus próprios reinos. Com sua divisão, os Eslavos, agora Cristãos, gradativamente se aliaram ao Império Bizantino. Eles fortaleceram uma Igreja Oriental que se distanciava de Roma e terminaria por fundar o Catolicismo Ortodoxo, após as Cruzadas.

Os Vikings queriam, mais ainda que ouro, terras aráveis onde plantar e criar animais (a imigração maciça para a Groenlandia - descrita erroneamente como Green Land ou "Terra Verde" - mostra isso). As invasões só acabaram, tanto na França quanto na Inglaterra, com a concessão de territórios a eles. Em ambas as terras, ganharam o nome de Normandos (literalmente, Homens do Norte). A Igreja Ocidental manteve-se, a partir de Carlos Magno, como validadora e responsável pela coroação dos reis Europeus.

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¹ MOUROS: reis/califas Islâmicos, em geral negros, que conquistaram o sul da Espanha (Califado de Córdoba) a partir da atual Mauritânia e Marrocos, no séc. 7. Foram conhecidos por sua riqueza e forte comércio de ouro, além das inovações em criação de cavalos, medicina, astronomia e arquitetura que trouxeram diretamente do mundo Árabe para a Europa. LOMBARDOS: foram um povo nórdico que usava runas para c escrita. Atravessaram a Alemanha no séc. 1 d.C., depois Áustria e foram residir no norte da Itália pelo séc. 6, que estava despovoada depois das guerras entre Roma e os Godos. Eles habitaram as ruínas das cidades romanas, usando os amplos salões sem teto como pastos e os templos como currais. SAXÕES: foram um povo nórdico, mais antigo que os Lombardos e a partir do qual esses vieram. Os Saxões eram famosos por sua escrita em runas, produção de cerveja, fabricação de escudos e barcos resistentes, e uso de pesados machados em batalha. Apesar da defasagem em técnicas agrícolas (comparados aos Romanos), eram grandes navegadores e povoadores de regiões inóspitas, hábeis em estruturar uma hierarquia militar de governo, onde raramente um líder se revelava contra seu senhor. ESLAVOS: os Romanos descreveram esse povo como inicialmente formado de duas tribos, os Scytios e os Sarmatianos, que vieram do Iran e se uniram no centro da Europa. Segundo os historiadores Romanos, eram bárbaros numerosos, capazes de habitar e prosperar mesmo em pântanos e florestas impenetráveis. Lutavam contra as legiões nus e portando machados. No séc. 5, a chegada dos Hunos na Europa fez os Eslavos, nômades, se deslocarem para dentro do território Romano, onde hoje ficam os países do Leste Europeu. Lá, estabeleceram grandes terras agrícolas. Pela proximidade com Bizâncio, os Eslavos acabaram adotando o Cristianismo Ortodoxo.

² Os Saxões aparecem na História como guerreiros por natureza. De fato, na Cosmogonia deles, a única forma de ascender a terra dos deuses era morrendo em batalha. Acredita-se que as estórias sobre Arthur, na Inglaterra, sejam na verdade reflexos de um líder pós-romano combatendo contra a invasão dos Saxões em sua ilha. Mais tardiamente, após Carlos Magno, os Saxões reaparecem sob o nome de piratas Vikings que trouxeram terror as ilhas Britânicas e ao norte da França.

³ Os Nazistas eram muito orgulhosos de seu poderio de conquista. Eles acreditavam na superioridade genética de uma raça com grande estatura, pele clara e olhos verdes, a qual emendavam inteligência maior. Traçavam mesmo uma descendência entre os governos que unificaram toda a Europa sob um único trono: Roma (1º Reich ou Reino), Carlos Magno (2º Reich) e a Alemanha Nazista (3º Reich). Felizmente, a vitória dos Aliados (França, Inglaterra e EUA) e Soviéticos na 2ª Guerra impediu a criação do sonhado 3º Reich.

* A Canção de Rolando foi escrita pelo menos uns 200 anos após os fatos que narra. Excetuando-se alguns nomes próprios e de lugares e o malogro da expedição, tudo o mais é fictício. Ela traz um Carlos I Imperador do Mundo (esse título ele só ganharia uns 20 anos após Roncesvales), Francos e Mouros conversando sem problemas linguísticos, comandando exércitos com armas que ainda não existiam, os Francos lutando contra os Mouros com a obstinação de destruir inimigos de Deus, nas Cruzadas.

Entre os sertanejos do Nordeste Brasileiro, é curiosa a menção aos heróis de Roncesvales, lembrança que os Portugueses trouxeram para cá. E que aqui ficou como cultura popular, tendo desaparecido mesmo na França. Há um distrito denominado Roldão, no município de Morada Nova, Ceará. Os soldados da escolta pessoal do falso monge José Maria, da guerra do Contestado (1912-1914), eram “Os doze pares de França” (exatamente assim se chamavam os cavaleiros de Rolando, enviados com ele por Carlos I), embora no Contestado fossem 24 homens, e não 12 como os originais. Seu líder, não podia se chamar menos que Roldão. Na festa da Cavalhada de Maceió, representação de uma batalha medieval, o Partido do Encarnado é chefiado por Roldão, o Partido Azul por Oliveiros (na época de Roncesvales, Portugal era território Franco, em guerra contra o sul da Espanha, que era Mouro).

Acredita-se que a história do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França nos chegou de Lisboa no séc. 18, traduzida por Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor do Algarve, que fez releituras de várias obras do séc. 16 como "Orlando enamorado", "Orlando furioso" e "História del Emperador Carlomagno y de los Doce Pares de Francia e de la cruda batalla que hubo Oliverios con Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del Almirante Balan". A forma definitiva dessas estórias, semelhantes à lenda de Arthur, foi alcançada no séc. 19, quando virou a fonte principal das cantorias e cordéis nordestinos.

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BORDADOS NA TAPEÇARIA ANTIGA

Avars - wikipédia
Avar-Khaganate - wikipédia
Charlemagne - Religious reform, Enciclopedia Britannica, britannica.com
Clovis I - wikipédia
Irminsul - wikipédia
Lombards - wikipédia
Mark JJ, Charlemagne, Ancient History Encyclopedia, 2019
Marton F, Saiba quem foi St. Patrick e por que ele ganhou uma data comemorativa, Aventuras na História, 2019
Morris C, Charlemagne and the Avars, Historical Tales vol. 6, 1893
Sarmatian people, Enciclopedia Britannica, britannica.com
Slavs - wikipédia

sábado, 28 de julho de 2018

Idarte Média

Quadro Accolade, de Edmund Leghton, 1901. Essa imagem retrata uma visão romântica da Idade Média, com votos de fidelidade (que eram reais), títulos de nobreza concedidos mediante façanhas militares e reis/rainhas adorados pelos seu povo. Não era raro que princesas e rainhas fossem governantes, pois a mortandade entre os nobres era alta, geralmente envolvidos em peregrinações e batalhas. As cidades muradas da Idade Média também eram a única proteção dos camponeses contra um rei invasor, o que frequentemente levava a massacres antes que todos pudessem se abrigar ou como resultado do cerco de uma cidade. Se a cidade não pudesse se defender, o cerco podia matar de fome e sede todos ali dentro.

A Idade Média (mais ou menos 500-1500 d.C., na Europa) foi quando o Cristianismo se espalhou pelo Velho Mundo. Quando Roma oficializou a nova religião, houve um significativo embrace pelas altas classes, que responde pela difusão no Leste Europeu e na Ásia Menor. Mas no norte da África e na Europa, que mais tarde seriam centros difusores, o crescimento inicial do Cristianismo se deu justamente nas classes mais baixas, num período marcado por misticismo.

Chamamos de Idade Média o tempo entre a desconstrução do Mundo Antigo e a construção do Novo. Tanto uma Era como outra têm a extensão e o fluxo das rotas comerciais como maior símbolo da civilização e estabilidade. Por isso, o apogeu do Mundo Antigo, para a Europa, foi a unificação de todos os reinos sob Alexandre da Macedônia (330 a.C.) e depois Roma (50 a.C.). Isso fez com que sedas e incenso chegassem da distante Índia (com a qual Alexandre estabeleceu tratados políticos, e onde o apóstolo Tomé fundou uma comunidade Cristã) até as ilhas Britânicas (de onde supostamente saiu o cavaleiro denominado Saint Georges, símbolo das Cruzadas). Metais e grãos seguiam na direção contrária. O Mundo Moderno nasceu em aproximadamente 1500, com a re-criação dessas rotas comerciais. Elas assumiram sua forma mais poderosa com as Companhias das Índias (Orientais e Ocidentais), que novamente iam até a China e as Américas buscando especiarias, sedas, porcelanas, ouro, frutas, etc e os levavam por todo mundo em grandes caravelas.

AS VARIADAS IDADES MÉDIAS

Embora fixemos datas de começo e fim da Idade Média, foram séculos para um e para outro. A própria Idade Média foi diferente em cada lugar. No contexto europeu, o começo se deu com a desintegração ou recuo do Estado Romano Ocidental, a partir de 450 d.C. Roma estava repartida em dois impérios irmãos desde 400 d.C., por ter se tornado grande demais. Roma Ocidental (ou apenas Roma) recuou seguidamente frente ao fortalecimento de reinos guerreiros, até desintegrar-se por completo em 500 d.C. Já Roma Oriental (ou Bizâncio) enriqueceu enormemente com o comércio entre os reinos no Mediterrâneo e no Golfo Pérsico. Por isso, a Idade Média teve significados muito diferentes no Ocidente (Europa) e no Oriente (Grécia, Romênia e Turquia). E foi mais diferente ainda na África, que finalmente teve suas portas abertas desde a expansão do Islã.

A imagem mais popular é a do Ocidente, com cidades romanas reduzidas a ruínas, habitadas por povos misturando a magia pagã com o Cristianismo, vivendo com situação sanitária precária em minusculas vilas, sem sistemas legais, basicamente defendendo-se uns dos outros com espadas e armaduras. Mas Oriente romano, esse mesmo período foi marcado pela construção de castelos e igrejas fabulosos, grande evolução nas artes e na música, tecnologia naval, peregrinações suntuosas da realeza e emprego simultâneo de várias línguas em manuscritos e documentos. Muito do material que foi escolhido para ser parte da Bíblia foi preservado como literatura religiosa de Roma Oriental, mais conhecida pelo nome de sua capital Bizâncio (no original) ou Constantinopla (após Constantino I o Grande). Aliás, foi Constantino I quem autorizou a propagação do Cristianismo em Roma.

No Oriente Médio, os tempos medievais representaram a expansão do Islã desde a Arábia até a Índia, Ásia Menor, Síria, Norte da África e Espanha. Foi um período de unificações, grandes Califas, comércio, navegações, batalhas históricas e riqueza para o Islã. Nesse tempo, muitas mesquitas absorveram a arte hindu e passaram a ter portas lembrando um coração invertido. As artes islâmicas e tecnologia evoluíram sobremaneira, assim como o uso de animais para cavalaria e peregrinações.

Enquanto o território de Roma Ocidental regredia a uma rede de vilas isoladas, muradas e cultuando as pinturas dos prédios romanos invadidos pela vegetação, o Islã florescia com astronomia, veleiros cruzando o oceano Índico, cirurgias com ópio indiano como anestésico e poesia histórica. Roma Oriental não ficava por menos, ostentando linhagens centenárias de papas e reis, exércitos com armaduras decoradas, arquitetura grega em escala nunca vista nas cidades, aquedutos e piscinas públicas, teatro, missas e canto gregoriano. Esse reinado de luxúria só terminou justamente devido à expansão islâmica, com o sultão Mehmed o Conquistador e seus navios de guerra batendo às portas de Constantinopla, em 1492. Mesmo assim, no séc. 10, tanto o imperador de Bizâncio quanto o patriarca de Constantinopla (equivalente grego do Papa ocidental) reconheceram a autoridade política e religiosa de Simão I da Bulgária, que oficializaria a linhagem dos Czares (repare a semelhança fonética com César), garantindo um braço de Roma Oriental na atual Rússia. Os Czares levaram tanto o Cristianismo medieval quanto a escrita grega tradicional até meados do séc. 20.

ARTE SACRA

Páginas do livro de Kells. Confeccionado no séc. 8, o livro recuperado da Abadia de Kells, Irlanda, é talvez o mais belo exemplo de arte medieval. Trata-se de uma composição de 340 folhas de pele de carneiro, contendo os 4 Evangelhos e ricamente ilustrado. Além dos corantes caríssimos para a época, boa parte das letras e gravuras foi feita com fios de ouro. O livro portava, originalmente, uma capa de ouro e pedras, que fez com que fosse roubado num ataque viking, em 1007. No séc. 12, o livro voltou à abadia, mas foi tomado pelas forças republicanas do séc. 17. Desde então, ele permanece no Trinity College em Dublin, Irlanda. Outro detalhe fantástico é que, embora trate-se de um texto Cristão, todo o estilo das figuras e mesmo das letras é tipicamente Celta, mostrando a fusão de culturas que ocorreu no norte da Europa. Como não era o estilo dos monges Beneditinos incorporar culturas, cogita-se que as missões Cristãs nessa parte do mundo sejam anteriores à desintegração de Roma, quando Alexandria era um centro importante de formação de missionários. Retirado de en.wikipedia.org

A maior parte do que conhecemos da arte medieval é do tipo sacro, ou seja, voltada a um ambiente religioso. Isso não quer dizer que os homens medievais fossem extremamente religiosos, mas que as pessoas com habilidade para produzir arte eram, em geral, religiosos. Os camponeses estavam bastante ocupados com lavouras e desconheciam a cultura romana. Os nobres em geral estavam ocupados com atividades militares. Restava, então, aos religiosos a educação, dinheiro e tempo necessários a produzir pinturas e esculturas que eram usados figurativamente nas missas. O livro de Kells é um grande exemplo disso: embora muito tempo tenha sido usado em produzir pinturas traçadas/costuradas quase fio a fio, o texto contém muito erros, sugerindo que não era realmente um objeto de leitura. Nas igrejas medievais sem bancos e com missas em latim, sem bíblias, exibir imagens nas paredes ou em um enorme e fabuloso livro dourado era uma forma extravagante de conduzir os serviços religiosos. Era também como contar estórias para uma criança apontando as figuras no livro.

Mas o livro de Kells também nos conta um pouco da história da arte religiosa: quem produziu o livro deixou marcas do seu trabalho. As ovelhas usadas foram criadas entre a Irlanda e a Escócia, o couro foi trabalhosamente refinado, carvão, nozes e cascas de árvores foram usadas para desenhar as letras, bile, clara de ovo, cola e mel foram usados para fixar os corantes e até pão foi usado para limpar partes das páginas. Apesar de trabalhoso, esse era um modo artesanal de produzir: no séc. 13 surgiriam monges copistas profissionais capazes de trabalhar rapidamente e apenas com tintas. Até as letras seriam simplificadas em favor da velocidade de produção.

Da Roma Ocidental e seus paganismos nos chegaram misturas bem elaboradas da cultura Cristã e dos imaginários Celta e Nórdico/Germânico. São dragões, unicórnios, mandrágoras mágicas e grifos. O universo medieval sempre assombrou com seus monstros, mas eles não eram apenas para assustar: num tempo onde o alfabeto romano foi preservado apenas por religiosos e magos, as gravuras de monstros e heróis ensinavam através das histórias que se contavam a partir delas. Impunham preconceitos e hierarquias sociais, ou inspiravam momentos ​​de empatia. Eram a propaganda da ciência, arte, teologia e ética, tudo de uma só vez.

Até a palavra “monstro” traz sérios problemas de entendimento. O verbo latino “monstrare” significa literalmente “mostrar”, mas ao longo dos séculos, “monstrum” passou a significar um presságio - talvez bom, talvez ruim. Em francês ou inglês antigo, “monstre” servia para criaturas maravilhosas ou de alguma forma diferentes. No séc. 14, finalmente passou a significar um ser aterrorizante e fantástico.

Henry VI (1420-1471). A Europa foi rica em reis e nobres ostentando nomeações pela Igreja, alguns sendo até consagrados como santos. Apesar disso, havia bem pouco Cristianismo na forma como os reis combatiam entre si ou até como lidavam com seu povo. A coroa, como usada por Henry, é um objeto que ficou famoso em todo mundo por ser ostentado na cabeça dos reis. Esse formato de coroa é uma herança dos reis romanos que cultuavam o Sol Invictus, do séc. 3 em diante. Retirado de themorgan.org

A figura acima mostra Henry VI da Inglaterra em pé sobre um grande monstro manchado com olhos perversos e avermelhados. O monstro é chamado - no texto - de antílope, embora tenha pouco em comum com o assustadiço animal das savanas (mas lembremos que a África ficou fechada aos europeus por toda idade Média). Além dos chifres afiados (que, conta-se, cortavam árvores), e cauda demoníaca bifurcada, nessa ilustração ele ganha até marfins de javali. Mas é apenas um indicativo do poder de Henry: o medo do antílope e do rei se misturam.

Página de um Livro das Horas - esse tipo de livro era uma ferramenta dos monges Beneditinos* para ensinar a administração do tempo. Em geral muito ilustrados, eles lembravam os Almanaques que circularam no Brasil e outros países do início do séc. 20 até os anos 1980. Traziam um calendário com ênfase nos dias sagrados, festas, dias de plantio e colheita, passagens dos Evangelhos, salmos penitenciais (6, 31, 37, 50, 101, 129) e orações dedicadas a certos santos Católicos como Santa Bárbara, Santa Margarete de Antioquia, Santo Antônio e São Sebastião. Retirado de amphilsoc.org

Esses monstros surpreendentes existem, pelo menos em parte, porque fazer as imagens era um processo lento e cuidadoso. Os artistas tinham bastante tempo para refletir sobre os significados de seu trabalho. No antigo território de Roma Ocidental, o fim das rotas comerciais tornou os pigmentos muito raros: enquanto o negro podia ser feito de carvão e o ocre vermelho de argila, outros, como o azul marinho, só chegavam à Europa através das perigosas e abandonadas estradas até o Oriente Médio. Usar ouro nas ilustrações também era comum, e produzir uma única cópia ilustrada do Livro das Horas, um dos mais populares devocionais Cristãos da Idade Média, com anjos e a Virgem Maria portando luminosas capas azuis, podia significar muito. Era o resultado de uma viagem de anos, um preço considerável e ainda um trabalho minucioso de muitos dias ou meses do artesão. Nesse meio tempo pessoas poderosas se tornavam gigantes, assim como personagens pavorosos ganhavam mais dentes, chifres e força descomunal.

O HILÁRIO MUNDO DOS MONSTROS

Livro das Horas, séc. 15. A princesa atrás das montanhas, como se fosse um gigante, é a governante de Trebizonde, um reino Cristão ao sul do Mar Negro. Esse reino foi fundado por cavaleiros da 4ª Cruzada, reunidos de toda Europa e enviados para reconquistar Jerusalém. O reino ficava no litoral de onde hoje é a Turquia e se desligou de Bizâncio após a tomada de Constantinopla. Essa figura retrata bem as peregrinações envolvidas nos tempos das Cruzadas contra os reinos não-Cristãos: Saint Georges é supostamente um cavaleiro inglês (não há qualquer registro sobre ele além da tradição), que viajou pela Bélgica, Bizâncio e Turquia. Retirado de pinterest.co.uk

Examinando uma das ilustrações de um Livro das Horas belga do século 15, você pode ver quanto amor e cuidado os artistas medievais colocavam em seus monstros. A cena - uma das mais emblemáticas do Cristianismo - mostra Saint Georges perfurando com a lança a cabeça de um dragão. Para os olhos do séc. 21, o heroísmo de Georges pode parecer um pouco cômico - o dragão é do tamanho de um cachorro, parece deitado de barriga para cima e ainda está sendo pisado pelo cavalo. No entanto, o olhar do artista para os detalhes atordoa mais de 500 anos depois: você ainda pode distinguir as escamas na cauda do monstro e as expressão em seus olhos redondos. Não pela primeira ou última vez, o vilão fraco faz o herói parecer quase humorístico.

Livro das Horas de Henry VIII, França. O Tarasque era um monstro que habitava a margem do rio Reno, com cabeça de dragão, carapaça de tartaruga e cauda de escorpião, que incendiava tudo em que tocava. Sua destruição marca, supostamente, o começo da habitação humana naquelas terras. Abaixo está Marta, pregando aos habitantes da região, que assumiram o Cristianismo após ver seu milagre. Retirado de themorgan.org

Noutra cena fantástica, o Tarasque é trazido para fora de sua caverna por uma Santa Marta medieval, embora seu culto a identifique com a Marta em cuja casa Jesus encontrou Lázaro e sua outra irmã Maria. A tradição explica que Marta, Maria e Lázaro seguiram até a Europa de barco, após a ascensão de Jesus. Mas a região do rio Reno, na verdade, não possui montanhas ou cavernas. O Tarasque, nalgumas pinturas, também é pequeno como o dragão de Saint Georges. Na lenda, a santa serve de atrativo e distrai o monstro para que os cavaleiros o matem. Nessa pintura, em especial, ele lembra por demais um cão obediente, com olhar de são bernardo, sendo puxado por sua dona. O monstro obediente simboliza o triunfo sem batalha do bem (civilização) contra o mal (vida selvagem), bem no sentido inverso das lendas de Grimm, onde lobos se fantasiam de homens para enganar crianças.

XENOFOBIAS

Judeu de Bern, provavelmente a origem da lenda germano-brasileira sobre o “homem do saco”. Trata-se de uma peça de madeira esculpida em 1546. Embora tenha sido muito usada como representação para assustar crianças desobedientes, o chapéu judeu da criatura é bem característico. Retirada de slate.com

Mas nem todos os monstros medievais eram tão carismáticos. Muitos foram inspirados em mesquinhez e violência. O anti-semitismo - que poderia ser plausivelmente definido como a representação de judeus como monstros - era indiscutivelmente central para a cultura européia da época. Ogros judeus sedentos de sangue serviram como personagens em inúmeras peças, histórias e poemas. Como na época do Nazismo, os judeus eram obrigados a usar um chapéu amarelo ou listrado pontiagudo. No meio da cidade suíça de Bern, a escultura de uma fonte ainda traz um desses pavorosos judeus-monstro simplesmente tirando crianças de um saco para as devorar. Em nenhuma prática judaica já foi documentado semelhante coisa, então somos levados a pensar na disposição do artista e autoridades da época em criar uma imagem que justificasse as ações de Cristãos contra os judeus.

Talvez o exemplo mais famoso desse tipo de história esteja na coleção The Canterbury Tales, do poeta inglês Geoffrey Chaucer. Nessa obra, um judeu mata uma criança Cristã e joga seu corpo em um monte de lixo. Quase tão famosa é a lenda do judeu de Bourges, que queima seu próprio filho, mais ou menos como nos ritos de Moloque, que os judeus nos contaram a respeito dos povos Cananeus. Uma ilustração francesa do início do século 14 retrata o judeu de Bourges com grandes olhos revirados e um nariz de porco enquanto empurra seu filho para uma fornalha. A imagem, em toda sua histeria racista e sentimentalismo grotesco, não é tão diferente das charges antissemitas que Julius Streicher publicou no auge do Terceiro Reich de Adolf Hitler. Outras caricaturas da Idade Média incluem muçulmanos, mulheres, pobres e doentes mentais. Essas imagens, vistas hoje, parecem ressaltar as poucas diferenças genuínas entre Cristãos e pagãos quanto a seu trato com “o diferente”.

MONSTROS SANTÍSSIMOS

Martírio de São Bartolomeu. Existem pelo menos 4 versões sobre a morte do apóstolo às vezes nomeado como Bartolomeu, às vezes como Natanael. Numa versão da Armênia, ele foi flexado e depois decapitado. Noutra, a mais popular, ele foi crucificado de cabeça para baixo, como Pedro. Ainda noutra, retratada aqui, ele batizou o rei Polymius, sendo então torturado e morto pelo irmão do rei. Numa última versão, possivelmente a mais verdadeira, Bartolomeu navegou até a Índia, talvez na mesma missão de Tomé, onde morreu na cidade de Kalyan. Retirado de br.pinterest.com

Uma ironia ainda maior das imagens de monstros medievais é que piedosas figuras bíblicas - mártires, discípulos de Cristo e até mesmo o próprio Cristo - eram retratadas como monstruosas. As histórias sangrentas de São Bartolomeu sendo esfolado vivo e de São Denis ou São Firmino, que dizem terem carregado suas próprias cabeças depois de cortadas, inspiraram infinitas obras religiosas. Uma representação húngara do martírio de Bartolomeu, do século 14, mostra o santo com sua pele meio removida, a boca presa em um sorriso de gato do País das Maravilhas. Ainda mais estranho é uma versão do artista do século 12 da Santíssima Trindade como um mutante de quatro olhos e três cabeças. Imagens como essas - não menos do que as dos dragões ou judeus matadores de crianças - procuram aterrorizar, mas por uma razão diferente: sugerir que o medo é parte da fé religiosa.

O EXÓTICO CRISTIANISMO

Por fim, é preciso dizer que boa parte do espanto com a arte Cristã medieval se dá porque a cultura Cristã da época nos parece muito exótica, 5 séculos depois. Sem dúvida o Cristianismo mudou muito nesse tempo. Duas influências grandes sobre a arte Cristã foram as Cruzadas (séc. 11 a 14) - que encheram o imaginário europeu com monstros e coisas terríveis dos Mouros - e a Peste Negra (metade do séc. 14). A Peste originou-se no Mar Cáspio e espalhou-se rapidamente pela Europa, seguindo o litoral e a rota das embarcações. A quantidade de mortos, a deformidade dos corpos e o sofrimento dos contagiados invadiu o imaginário popular com imagens de demônios em forma de cadáveres e atormentando os moribundos. Isso acabou desembocando em uma série de obras Cristãs conhecidas como Ars Moriendi, ou Arte de Morrer.

Ars Moriendi, Holanda, 1460. Nessa gravura do livro, um moribundo é tentado por várias coroas relativas às riquezas, orgulho, poder, etc. Enquanto o moribundo parece extremamente confortável em sua cama, aparecem diversos demônios risíveis ao seu redor. Tais figuras lembram bastante os desenhos de Pieter Bruegel sobre monstros, demônios e a loucura. Retirado de en.wikipedia.org

Essas obras dispunham sobre a forma correta de um Cristão morrer, de maneira a escapar dos tormentos de demônios. Na versão mais longa que foi preservada, aparecem ilustrações de demônios que lembram muito os anões da Branca de Neve, alguns com longas orelhas de coelho, ou línguas enormes, chapéus longos com as pontas enroladas, etc. Eles carregam as tentações que levam ao pecado e sua aparência bizarra, parecendo cruzamentos de humanos com animais que estão sem saber o que fazer pelo mundo, de fato fazem uma referência cruel aos doentes mentais. Levar-se pelo pecado é um símbolo de deficiência. Os moribundos, por outro lado, são explicitamente instruídos a manter uma aparência serena. Não apenas no Ars Moriendi, mas em toda a arte medieval, as pessoas parecem morrer completamente desinteressadas e passivas. Mesmo que isso seja sob apedrejamento, devorados por feras, perfurados por lanças ou decapitados. A face serena era, segundo o Ars Moriendi, uma forma de manter longe os demônios.

ÍCONES

Mas talvez a maior representação da arte medieval seja os ícones. Trata-se de pinturas ou esculturas religiosas que são, elas próprias, canais de comunicação com o divino. A Cristandade romana encheu a Europa, Ásia menor e norte da África com imagens de cenas bíblicas, mártires, reis, papas e patriarcas. Como no caso dos gregos que adoraram como deuses novos as estátuas quebradas nas ilhas que povoavam, civilização após civilização, os homens medievais encontraram essas obras de artes de homens antigos, de um reino antigo, e lhes atribuíram o papel de mensageiros divinos. Pinturas romanas deram origem a santos e, mais do que isso, as próprias pinturas foram tidas como sagradas, lugares para onde as pessoas peregrinavam em busca de cura, iluminação ou por subserviência. A Igreja Oriental até mesmo formulou uma teologia para explicar o poder das imagens: assim como Deus assumiu a forma humana em Cristo, Ele poderia assumir a forma material de pinturas e esculturas.

Imagem de Nossa Senhora da Conceição, cultuada em todo Brasil e que favoreceu a proclamação da Independência por fazer com que, na colônia, se desenvolvesse um importante centro Católico. Em 1978, a imagem (esquerda) foi destruída em um atentado religioso, produzindo mais de 200 fragmentos que foram cuidadosamente colados no Museu de Arte de São Paulo (MASP) (direita). A coloração original era clara, com pinturas em dourado, azul e vermelho, como era o estilo do escultor. Hoje ela é castanho escuro, acumulando uma camada de cera e fuligem do templo. Nos sécs. 8 e 9, um movimento iconoclasta dentro da Igreja Católica destruiu boa parte dos ícones, com exceção dos ossos e resquícios de santos. Retirado de padrerodrigomaria.com.br

Além do papel evangelizador que tiveram numa época onde a escrita se tornou raramente usada, essas obras religiosas foram a representação material e poderosa de Deus, como a Arca da Aliança levada nos conflitos entre judeus e filisteus. No Brasil, um exemplo tardio dos ícones foi a imagem de Aparecida. Obra de um monge escultor do século 17**, a estatueta com cabeça quebrada foi recuperada de um rio e venerada como a própria Virgem, ganhando um santuário que hoje é o segundo maior templo católico em atividade no mundo.

Como na Rússia dos Czares, a Idade Média de algum modo se estendeu para além do seu tempo devido à falta de contato tecnológico entre o Brasil-colônia e o restante do mundo. Isso para não falar nos livros e filmes que, desde o séc. 19, encantam o imaginário de adultos e crianças desagradados com a mesmice da ciência racional e um Estado estável.

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* Os monges Beneditinos foram uma força poderosa da civilização durante a Idade Média. Afora o caráter evangelizador de suas missões na Europa, os Beneditinos seguiam uma organização quase militar de delimitação de territórios e propagação da cultura romana. Quando chegavam a uma localidade, os monges tratavam de cercar um território para o mosteiro (às vezes até usavam de nobres armados para isso) e organizavam meticulosamente seu dia sobre os princípios de trabalho e culto coletivo. Assim, enquanto alguns monges entoavam por horas a fio um canto de homenagem a Deus ou algum santo, outros trabalhavam na horta e outros na construção do prédio. Em horários específicos as equipes trocavam suas tarefas. Esses mosteiros foram centros de alfabetização e educação na Idade Média, além de manterem viva a ideia de um Estado que ia além das pequenas vilas, mesmo sendo a distante autoridade de um abade ou bispo em Roma ou outra cidade papal.

** Uma análise meticulosa do estilo usado na imagem de Aparecida atribuiu sua origem ao paulista Frei Agostinho de Jesus, famoso produtor de estátuas sacras. Trata-se de uma estátua de barro. Aparentemente, a cabeça da imagem quebrou-se e, segundo a tradição, a mesma foi jogada no rio, onde permaneceu tempo suficiente embaixo d’água para que sua pintura fosse quase totalmente removida. Desde sua descoberta no rio Paraíba do Sul, em Guaratinguetá/SP, diversos milagres e estórias fabulosas foram-lhe atribuídos, como uma pesca milagrosa e a estátua ter ficado tão pesada que os pescadores não puderam carregá-la.

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EM LETRAS PINTADAS COM OURO

Ars moriendi - wikipedia
Book of Kells - wikipedia
Medieval monsters: terrors, aliens, wonders, apollo-magazine.com, 8jun2018
Mark JJ, Book of Kells, ancient.eu, 30jan2018
Tsar - wikipedia

quinta-feira, 19 de junho de 2014

O que é Deus

Ramon Lull, antes da invenção dos balõezinhos

_ Senhor Eremita, saberíeis dizer-me o que é Deus? … Senhor, um homem encontrou uma pedra preciosa que valia mil souls, a qual vendeu por dinheiro a um homem que conhecia bem a pedra e da qual obteve mil souls. Portanto peço a vós, senhor, se sabeis o que é Deus o digais, para que eu de acordo com o que Deus é, saiba amá-Lo e conhecê-Lo. E se não sabei o que é Deus, é um grande assombro como o podeis amar tanto sem o conhecimento, e como podeis suportar vida tão áspera neste eremitério de Deus. Parece-me que se não sabeis o que é Deus, por qualquer motivo O desprezais, como fez o homem com a pedra que não conhecia, trocando-a por um dinheiro que conhecia. Pelo conhecimento que tinha do dinheiro e pela ignorância que tinha da virtude da pedra, ele amou mais o dinheiro que a pedra.

_ Belo filho, disse o Eremita, um rei tinha uma mulher que era muito bela e boa, ele muito a amava. Aquela rainha também amava o rei muito fortemente, e pelo grande amor lhe que tinha, sentia ciúmes do rei e de uma donzela sua, com quem o rei gostava de conversar, pelas agradáveis palavras que a donzela dizia. Aquela rainha estava todos os dias em grande tristeza, e nada que o rei lhe dissesse ou fizesse a alegrava, coisa que assombrava o rei. Muito se esforçou o rei, tanto quanto pode, para satisfazer a rainha. Por fim, quando viu que não podia alegrá-la, suspeitou da rainha, e pensou que ela fizera algo contra a honestidade de sua pessoa.

Quando o rei ficou com ciúmes e suspeitou de sua mulher, começou a desamar a rainha, e por causa da rainha desamou a donzela. Muito tempo esteve o rei sem falar com a donzela, a rainha começou a se alegrar, pela qual alegria o rei muito se assombrou. Pois antes, quando concedia à rainha todos os prazeres que podia, não conseguia alegrá-la. E depois, quando largou aqueles prazeres, a rainha demonstrou um amor muito maior ao rei, amor com o qual ele não estava acostumado. Ele deixou-se amar pela rainha, para que ela estivesse contente e satisfeita com seu amor.

Assim, quando os homens desse mundo têm prazeres nos deleites temporais, mas não amam estes deleites pelo Criador que os criou para que com eles e neles saibam amá-Lo e conhecê-Lo, Deus se distancia daqueles homens, e por esse distanciamento os homens não podem ter conhecimento de Deus, nem em Deus podem ter o deleite que teriam se O conhecessem. Porém, quando os homens deixam de amar os deleites deste mundo, usando dos deleites e do mundo para amar a Deus, então os deleites e o mundo interrogam o homem, e lhe ensinam o modo de amar e ter conhecimento de Deus.

Por isso, belo filho, disse o Eremita, podeis ter nesse mundo o conhecimento do que é Deus. Se amardes o mundo por ele mesmo, Deus fará que o mundo vos afaste do amor a Ele; se amardes o mundo para conhecer e amar a Deus, Ele fará que o mundo vos signifique Deus.

(Ramon Lull, Félix o El Libre de meravelles, 1288)

segunda-feira, 7 de março de 2011

Uma outra Idade Média?




texto de Sinclair Ferguson

Embora tenha sido provocada pelas indulgências vendidas por Johannes Tetzel, a primeira proposição que Lutero ofereceu para debate público, em suas Noventa e Nove Teses, pôs o machado à raiz da árvore teológica da Idade Média. A primeira proposição afirmava: “Quando nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, disse: ‘Arrependei-vos’, Ele pretendia dizer que toda a vida do crente deve ser caracterizada por arrependimento”. Fundamentado no Novo Testamento Grego editado por Erasmo, Lutero chegou à compreensão de que a tradução penitentiam agite (“fazei penitência”), da Vulgata Latina, em Mateus 4.17, interpretava de maneira completamente errada o significado das palavras de Jesus.

"Desde então começou Jesus a pregar, e a dizer: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus."

O evangelho não exige penitência, e sim uma mudança radical na maneira de pensar e uma profunda transformação de vida. Mais tarde, Lutero escreveria para Staupitz a respeito desta brilhante descoberta: “Eu me arrisco a dizer que estão errados aqueles indivíduos que tornam mais importante a ação proposta pelo latim do que a mudança de coração transmitida pelo grego”.

Não é verdade que temos perdido de vista esta nota que era tão proeminente na teologia reformada? Faremos muito bem se resgatarmos o conceito teológico de Lutero. Por muitas razões importantes, os evangélicos precisam reconsiderar a centralidade do arrependimento em nossa maneira de pensar a respeito do evangelho, da igreja e da vida cristã.

Uma de nossas grandes necessidades é a habilidade de perceber algumas das direções às quais o evangelicalismo está se encaminhando ou talvez, mais exatamente, se desintegrando. Precisamos desesperadamente da perspectiva que a História da Igreja nos proporciona.

Mesmo no período de minha própria vida cristã - no espaço de tempo entre a minha adolescência, na década de 1960, e os meus quarenta anos, na década de 1990 - houve uma ampla mudança no evangelicalismo. Muitas “posições doutrinárias” que constituíam o ensino evangélico padrão, depois de somente três décadas, são consideradas como reacionárias ou mesmo antiquadas.

Se levarmos em conta a perspectiva da História, encaramos a possibilidade alarmante de que trevas medievais podem estar se avultando no evangelicalismo. Seremos capazes de detectar, pelo menos como uma tendência, atividades no meio do evangelicalismo que se assemelham à vida da igreja medieval? A possibilidade de uma Nova Babilônia ou (mais exatamente, nas palavras de Lutero) do Cativeiro Pagão da Igreja se mostra mais perto do que podemos crer.

Considere estas cinco características da igreja medieval que, em vários graus, estão evidentes no evangelicalismo contemporâneo.

1. Arrependimento

O arrependimento tem sido considerado, de maneira cada vez mais crescente, como um ato único, divorciado de uma restauração da piedade que se estende por toda a vida do crente.

Existem razões complexas para isso - nem todas desta época - que não podem ser exploradas neste breve artigo. Entretanto, isto é evidente: considerar o arrependimento como um ato isolado e completo, no início da vida cristã, tem sido um dos princípios mais importantes do evangelicalismo moderno. Infelizmente, os crentes têm desprezado a teologia das igrejas que possuem uma confissão de fé histórica. Essa atitude tem produzido uma geração que olha para trás e vê a base da sua salvação em um ato único, separado de suas conseqüências. Assim, hoje, a chamada para “vir à frente” assumiu o lugar do antigo sacramento da penitência. Deste modo, o arrependimento tem sido divorciado da regeneração verdadeira, e a santificação está separada da justificação.

2. Misticismo

O cânon da vida cristã tem sido procurado, de maneira crescente, em uma voz viva “inspirada pelo Espírito Santo”, na igreja, ao invés de ser buscado na voz do Espírito ouvida nas Escrituras. O que antes era apenas uma tendência mística se tornou um dilúvio. Mas qual a relação disso com a igreja da Idade Média? Apenas esta: toda a igreja medieval agia com base nesse mesmo princípio, embora eles o expressassem de maneira diferente - o Espírito Santo fala além das Escrituras; o crente não pode conhecer a orientação detalhada da parte de Deus, se tentar depender exclusivamente de sua própria Bíblia.

E isso não é tudo. Uma vez que a doutrina da “voz viva” do Espírito Santo é introduzida, ela é seguida inevitavelmente como sendo o cânon da vida cristã.

Este ponto de vista (a Palavra inspirada + uma voz viva = revelação divina) se encontrava no âmago do tatear na escuridão da igreja medieval em busca do poder do evangelho. Ora, no final do segundo milênio, estamos à beira - e talvez mais do que à beira - de sermos dominados por um fenômeno semelhante. Naquela época, o resultado foi uma fome por ouvir e entender a Palavra de Deus; e tudo foi realizado sob o pretexto de buscar aquilo que o Espírito Santo estava realmente dizendo à igreja. E o que podemos dizer sobre os nossos dias?

3. Poderes Sagrados

A presença divina era trazida à igreja através de um indivíduo com poderes sagrados, depositados em sua pessoa e transmitidos por meios físicos. Hoje, o correspondente de tal indivíduo pode ser visto em todos os lugares onde as pessoas assistem televisão. Temos de reconhecer que não é Jesus que está sendo oferecido por meio das mãos de um sacerdote; é o Espírito Santo quem está sendo outorgado por meios físicos (aparentemente, à vontade), pela instrumentalidade de um novo sacerdote evangélico. A santidade não é mais confirmada pela beleza do fruto do Espírito, e sim pelos sinais que são predominantemente físicos.

O que deveríamos achar alarmante a respeito do evangelicalismo contemporâneo é a amplitude com que somos impressionados pelo bom desempenho de tais sacerdotes, ao invés de sermos impressionados por sua piedade. Os reformadores estavam familiarizados com fenômenos semelhantes a este. Na verdade, uma das principais acusações feitas contra os reformadores pela Igreja Católica Romana era que eles não tinham realmente o evangelho, pois lhes faltava os milagres físicos.

4. Espectadores

A adoração a Deus é apresentada, cada vez mais, como um evento das capacidades sensoriais e visuais, e não como um acontecimento caracterizado por palavras, através do qual nos envolvemos em um profundo diálogo da alma com o Deus triúno.

A atitude predominante do evangelicalismo contemporâneo consiste em focalizar a centralidade daquilo que “acontece” no espetáculo de adoração, ao invés de focalizar aquilo que se escuta na adoração. A estética, quer seja musical, quer seja artística, recebe prioridade acima da santidade. Mais e mais é visto, menos e menos é ouvido. Acontece uma festa dos sentidos, mas existe uma fome do ouvir. O profissionalismo na adoração se tornou um substituto barato e cheio de falhas para o genuíno acesso ao céu. A dramatização, ao invés da pregação da Palavra, se tornou o “Didaquê” da escolha.

Houve um tempo em que apenas quatro palavras causariam arrepios em nossos avós: “Vamos adorar a Deus”. Isto não pode ser dito a respeito dos evangélicos contemporâneos. Agora, tem de haver cores, movimento, efeitos áudio-visuais, etc., pois, de modo contrário, Deus não pode ser conhecido, amado, adorado e crido.

5. Maior significa melhor?

O sucesso do ministério é medido pelas multidões e pelos templos enormes, ao invés de ser avaliado por meio da pregação da cruz e da qualidade da vida dos crentes.

Foram os líderes da Igreja Medieval - bispos, arcebispos, cardeais e papas - que construíram as grandes igrejas, ostentando o lema Soli Deo Gloria (só a Deus a glória). Tudo isso foi realizado em detrimento da proclamação do evangelho, da vida do corpo de Cristo como um todo, das necessidades dos pobres e da evangelização do mundo. Por conseguinte, as mega-igrejas não constituem um fenômeno moderno, e sim um fenômeno da Idade Média.

Felizmente, o tamanho ideal de uma igreja e a arquitetura eclesiástica específica são questões irrelevantes. Essa não é realmente a principal preocupação neste artigo. Pelo contrário, nossa principal preocupação é a tendência quase endêmica do evangelicalismo contemporâneo em utilizar tamanho e números como um indicativo de sucesso do “meu ministério” - uma expressão que pode ser admiravelmente contraditória. Temos de suscitar a questão da realidade, da profundidade e da integridade na vida da igreja e do ministério cristão. O intenso desejo por “coisas maiores” nos torna vulneráveis na área material e financeira; e o que é pior: nos torna espiritualmente vulneráveis. Pois dificilmente poderemos declarar àqueles dos quais dependemos materialmente: “Quando o Senhor Jesus disse: ‘Arrependei-vos’, isto significava que toda a vida cristã é uma vida de arrependimento”.