Quadro Accolade, de Edmund Leghton, 1901. Essa imagem retrata uma visão romântica da Idade Média, com votos de fidelidade (que eram reais), títulos de nobreza concedidos mediante façanhas militares e reis/rainhas adorados pelos seu povo. Não era raro que princesas e rainhas fossem governantes, pois a mortandade entre os nobres era alta, geralmente envolvidos em peregrinações e batalhas. As cidades muradas da Idade Média também eram a única proteção dos camponeses contra um rei invasor, o que frequentemente levava a massacres antes que todos pudessem se abrigar ou como resultado do cerco de uma cidade. Se a cidade não pudesse se defender, o cerco podia matar de fome e sede todos ali dentro.
A Idade Média (mais ou menos 500-1500 d.C., na Europa) foi quando o Cristianismo se espalhou pelo Velho Mundo. Quando Roma oficializou a nova religião, houve um significativo embrace pelas altas classes, que responde pela difusão no Leste Europeu e na Ásia Menor. Mas no norte da África e na Europa, que mais tarde seriam centros difusores, o crescimento inicial do Cristianismo se deu justamente nas classes mais baixas, num período marcado por misticismo.
Chamamos de Idade Média o tempo entre a desconstrução do Mundo Antigo e a construção do Novo. Tanto uma Era como outra têm a extensão e o fluxo das rotas comerciais como maior símbolo da civilização e estabilidade. Por isso, o apogeu do Mundo Antigo, para a Europa, foi a unificação de todos os reinos sob Alexandre da Macedônia (330 a.C.) e depois Roma (50 a.C.). Isso fez com que sedas e incenso chegassem da distante Índia (com a qual Alexandre estabeleceu tratados políticos, e onde o apóstolo Tomé fundou uma comunidade Cristã) até as ilhas Britânicas (de onde supostamente saiu o cavaleiro denominado Saint Georges, símbolo das Cruzadas). Metais e grãos seguiam na direção contrária. O Mundo Moderno nasceu em aproximadamente 1500, com a re-criação dessas rotas comerciais. Elas assumiram sua forma mais poderosa com as Companhias das Índias (Orientais e Ocidentais), que novamente iam até a China e as Américas buscando especiarias, sedas, porcelanas, ouro, frutas, etc e os levavam por todo mundo em grandes caravelas.
AS VARIADAS IDADES MÉDIAS
Embora fixemos datas de começo e fim da Idade Média, foram séculos para um e para outro. A própria Idade Média foi diferente em cada lugar. No contexto europeu, o começo se deu com a desintegração ou recuo do Estado Romano Ocidental, a partir de 450 d.C. Roma estava repartida em dois impérios irmãos desde 400 d.C., por ter se tornado grande demais. Roma Ocidental (ou apenas Roma) recuou seguidamente frente ao fortalecimento de reinos guerreiros, até desintegrar-se por completo em 500 d.C. Já Roma Oriental (ou Bizâncio) enriqueceu enormemente com o comércio entre os reinos no Mediterrâneo e no Golfo Pérsico. Por isso, a Idade Média teve significados muito diferentes no Ocidente (Europa) e no Oriente (Grécia, Romênia e Turquia). E foi mais diferente ainda na África, que finalmente teve suas portas abertas desde a expansão do Islã.
A imagem mais popular é a do Ocidente, com cidades romanas reduzidas a ruínas, habitadas por povos misturando a magia pagã com o Cristianismo, vivendo com situação sanitária precária em minusculas vilas, sem sistemas legais, basicamente defendendo-se uns dos outros com espadas e armaduras. Mas Oriente romano, esse mesmo período foi marcado pela construção de castelos e igrejas fabulosos, grande evolução nas artes e na música, tecnologia naval, peregrinações suntuosas da realeza e emprego simultâneo de várias línguas em manuscritos e documentos. Muito do material que foi escolhido para ser parte da Bíblia foi preservado como literatura religiosa de Roma Oriental, mais conhecida pelo nome de sua capital Bizâncio (no original) ou Constantinopla (após Constantino I o Grande). Aliás, foi Constantino I quem autorizou a propagação do Cristianismo em Roma.
No Oriente Médio, os tempos medievais representaram a expansão do Islã desde a Arábia até a Índia, Ásia Menor, Síria, Norte da África e Espanha. Foi um período de unificações, grandes Califas, comércio, navegações, batalhas históricas e riqueza para o Islã. Nesse tempo, muitas mesquitas absorveram a arte hindu e passaram a ter portas lembrando um coração invertido. As artes islâmicas e tecnologia evoluíram sobremaneira, assim como o uso de animais para cavalaria e peregrinações.
Enquanto o território de Roma Ocidental regredia a uma rede de vilas isoladas, muradas e cultuando as pinturas dos prédios romanos invadidos pela vegetação, o Islã florescia com astronomia, veleiros cruzando o oceano Índico, cirurgias com ópio indiano como anestésico e poesia histórica. Roma Oriental não ficava por menos, ostentando linhagens centenárias de papas e reis, exércitos com armaduras decoradas, arquitetura grega em escala nunca vista nas cidades, aquedutos e piscinas públicas, teatro, missas e canto gregoriano. Esse reinado de luxúria só terminou justamente devido à expansão islâmica, com o sultão Mehmed o Conquistador e seus navios de guerra batendo às portas de Constantinopla, em 1492. Mesmo assim, no séc. 10, tanto o imperador de Bizâncio quanto o patriarca de Constantinopla (equivalente grego do Papa ocidental) reconheceram a autoridade política e religiosa de Simão I da Bulgária, que oficializaria a linhagem dos Czares (repare a semelhança fonética com César), garantindo um braço de Roma Oriental na atual Rússia. Os Czares levaram tanto o Cristianismo medieval quanto a escrita grega tradicional até meados do séc. 20.
ARTE SACRA
Páginas do livro de Kells. Confeccionado no séc. 8, o livro recuperado da Abadia de Kells, Irlanda, é talvez o mais belo exemplo de arte medieval. Trata-se de uma composição de 340 folhas de pele de carneiro, contendo os 4 Evangelhos e ricamente ilustrado. Além dos corantes caríssimos para a época, boa parte das letras e gravuras foi feita com fios de ouro. O livro portava, originalmente, uma capa de ouro e pedras, que fez com que fosse roubado num ataque viking, em 1007. No séc. 12, o livro voltou à abadia, mas foi tomado pelas forças republicanas do séc. 17. Desde então, ele permanece no Trinity College em Dublin, Irlanda. Outro detalhe fantástico é que, embora trate-se de um texto Cristão, todo o estilo das figuras e mesmo das letras é tipicamente Celta, mostrando a fusão de culturas que ocorreu no norte da Europa. Como não era o estilo dos monges Beneditinos incorporar culturas, cogita-se que as missões Cristãs nessa parte do mundo sejam anteriores à desintegração de Roma, quando Alexandria era um centro importante de formação de missionários. Retirado de en.wikipedia.org
A maior parte do que conhecemos da arte medieval é do tipo sacro, ou seja, voltada a um ambiente religioso. Isso não quer dizer que os homens medievais fossem extremamente religiosos, mas que as pessoas com habilidade para produzir arte eram, em geral, religiosos. Os camponeses estavam bastante ocupados com lavouras e desconheciam a cultura romana. Os nobres em geral estavam ocupados com atividades militares. Restava, então, aos religiosos a educação, dinheiro e tempo necessários a produzir pinturas e esculturas que eram usados figurativamente nas missas. O livro de Kells é um grande exemplo disso: embora muito tempo tenha sido usado em produzir pinturas traçadas/costuradas quase fio a fio, o texto contém muito erros, sugerindo que não era realmente um objeto de leitura. Nas igrejas medievais sem bancos e com missas em latim, sem bíblias, exibir imagens nas paredes ou em um enorme e fabuloso livro dourado era uma forma extravagante de conduzir os serviços religiosos. Era também como contar estórias para uma criança apontando as figuras no livro.
Mas o livro de Kells também nos conta um pouco da história da arte religiosa: quem produziu o livro deixou marcas do seu trabalho. As ovelhas usadas foram criadas entre a Irlanda e a Escócia, o couro foi trabalhosamente refinado, carvão, nozes e cascas de árvores foram usadas para desenhar as letras, bile, clara de ovo, cola e mel foram usados para fixar os corantes e até pão foi usado para limpar partes das páginas. Apesar de trabalhoso, esse era um modo artesanal de produzir: no séc. 13 surgiriam monges copistas profissionais capazes de trabalhar rapidamente e apenas com tintas. Até as letras seriam simplificadas em favor da velocidade de produção.
Mas o livro de Kells também nos conta um pouco da história da arte religiosa: quem produziu o livro deixou marcas do seu trabalho. As ovelhas usadas foram criadas entre a Irlanda e a Escócia, o couro foi trabalhosamente refinado, carvão, nozes e cascas de árvores foram usadas para desenhar as letras, bile, clara de ovo, cola e mel foram usados para fixar os corantes e até pão foi usado para limpar partes das páginas. Apesar de trabalhoso, esse era um modo artesanal de produzir: no séc. 13 surgiriam monges copistas profissionais capazes de trabalhar rapidamente e apenas com tintas. Até as letras seriam simplificadas em favor da velocidade de produção.
Da Roma Ocidental e seus paganismos nos chegaram misturas bem elaboradas da cultura Cristã e dos imaginários Celta e Nórdico/Germânico. São dragões, unicórnios, mandrágoras mágicas e grifos. O universo medieval sempre assombrou com seus monstros, mas eles não eram apenas para assustar: num tempo onde o alfabeto romano foi preservado apenas por religiosos e magos, as gravuras de monstros e heróis ensinavam através das histórias que se contavam a partir delas. Impunham preconceitos e hierarquias sociais, ou inspiravam momentos de empatia. Eram a propaganda da ciência, arte, teologia e ética, tudo de uma só vez.
Até a palavra “monstro” traz sérios problemas de entendimento. O verbo latino “monstrare” significa literalmente “mostrar”, mas ao longo dos séculos, “monstrum” passou a significar um presságio - talvez bom, talvez ruim. Em francês ou inglês antigo, “monstre” servia para criaturas maravilhosas ou de alguma forma diferentes. No séc. 14, finalmente passou a significar um ser aterrorizante e fantástico.
Henry VI (1420-1471). A Europa foi rica em reis e nobres ostentando nomeações pela Igreja, alguns sendo até consagrados como santos. Apesar disso, havia bem pouco Cristianismo na forma como os reis combatiam entre si ou até como lidavam com seu povo. A coroa, como usada por Henry, é um objeto que ficou famoso em todo mundo por ser ostentado na cabeça dos reis. Esse formato de coroa é uma herança dos reis romanos que cultuavam o Sol Invictus, do séc. 3 em diante. Retirado de themorgan.org
A figura acima mostra Henry VI da Inglaterra em pé sobre um grande monstro manchado com olhos perversos e avermelhados. O monstro é chamado - no texto - de antílope, embora tenha pouco em comum com o assustadiço animal das savanas (mas lembremos que a África ficou fechada aos europeus por toda idade Média). Além dos chifres afiados (que, conta-se, cortavam árvores), e cauda demoníaca bifurcada, nessa ilustração ele ganha até marfins de javali. Mas é apenas um indicativo do poder de Henry: o medo do antílope e do rei se misturam.
Página de um Livro das Horas - esse tipo de livro era uma ferramenta dos monges Beneditinos* para ensinar a administração do tempo. Em geral muito ilustrados, eles lembravam os Almanaques que circularam no Brasil e outros países do início do séc. 20 até os anos 1980. Traziam um calendário com ênfase nos dias sagrados, festas, dias de plantio e colheita, passagens dos Evangelhos, salmos penitenciais (6, 31, 37, 50, 101, 129) e orações dedicadas a certos santos Católicos como Santa Bárbara, Santa Margarete de Antioquia, Santo Antônio e São Sebastião. Retirado de amphilsoc.org
Esses monstros surpreendentes existem, pelo menos em parte, porque fazer as imagens era um processo lento e cuidadoso. Os artistas tinham bastante tempo para refletir sobre os significados de seu trabalho. No antigo território de Roma Ocidental, o fim das rotas comerciais tornou os pigmentos muito raros: enquanto o negro podia ser feito de carvão e o ocre vermelho de argila, outros, como o azul marinho, só chegavam à Europa através das perigosas e abandonadas estradas até o Oriente Médio. Usar ouro nas ilustrações também era comum, e produzir uma única cópia ilustrada do Livro das Horas, um dos mais populares devocionais Cristãos da Idade Média, com anjos e a Virgem Maria portando luminosas capas azuis, podia significar muito. Era o resultado de uma viagem de anos, um preço considerável e ainda um trabalho minucioso de muitos dias ou meses do artesão. Nesse meio tempo pessoas poderosas se tornavam gigantes, assim como personagens pavorosos ganhavam mais dentes, chifres e força descomunal.
O HILÁRIO MUNDO DOS MONSTROS
Livro das Horas, séc. 15. A princesa atrás das montanhas, como se fosse um gigante, é a governante de Trebizonde, um reino Cristão ao sul do Mar Negro. Esse reino foi fundado por cavaleiros da 4ª Cruzada, reunidos de toda Europa e enviados para reconquistar Jerusalém. O reino ficava no litoral de onde hoje é a Turquia e se desligou de Bizâncio após a tomada de Constantinopla. Essa figura retrata bem as peregrinações envolvidas nos tempos das Cruzadas contra os reinos não-Cristãos: Saint Georges é supostamente um cavaleiro inglês (não há qualquer registro sobre ele além da tradição), que viajou pela Bélgica, Bizâncio e Turquia. Retirado de pinterest.co.uk
Examinando uma das ilustrações de um Livro das Horas belga do século 15, você pode ver quanto amor e cuidado os artistas medievais colocavam em seus monstros. A cena - uma das mais emblemáticas do Cristianismo - mostra Saint Georges perfurando com a lança a cabeça de um dragão. Para os olhos do séc. 21, o heroísmo de Georges pode parecer um pouco cômico - o dragão é do tamanho de um cachorro, parece deitado de barriga para cima e ainda está sendo pisado pelo cavalo. No entanto, o olhar do artista para os detalhes atordoa mais de 500 anos depois: você ainda pode distinguir as escamas na cauda do monstro e as expressão em seus olhos redondos. Não pela primeira ou última vez, o vilão fraco faz o herói parecer quase humorístico.
Livro das Horas de Henry VIII, França. O Tarasque era um monstro que habitava a margem do rio Reno, com cabeça de dragão, carapaça de tartaruga e cauda de escorpião, que incendiava tudo em que tocava. Sua destruição marca, supostamente, o começo da habitação humana naquelas terras. Abaixo está Marta, pregando aos habitantes da região, que assumiram o Cristianismo após ver seu milagre. Retirado de themorgan.org
Noutra cena fantástica, o Tarasque é trazido para fora de sua caverna por uma Santa Marta medieval, embora seu culto a identifique com a Marta em cuja casa Jesus encontrou Lázaro e sua outra irmã Maria. A tradição explica que Marta, Maria e Lázaro seguiram até a Europa de barco, após a ascensão de Jesus. Mas a região do rio Reno, na verdade, não possui montanhas ou cavernas. O Tarasque, nalgumas pinturas, também é pequeno como o dragão de Saint Georges. Na lenda, a santa serve de atrativo e distrai o monstro para que os cavaleiros o matem. Nessa pintura, em especial, ele lembra por demais um cão obediente, com olhar de são bernardo, sendo puxado por sua dona. O monstro obediente simboliza o triunfo sem batalha do bem (civilização) contra o mal (vida selvagem), bem no sentido inverso das lendas de Grimm, onde lobos se fantasiam de homens para enganar crianças.
XENOFOBIAS
Judeu de Bern, provavelmente a origem da lenda germano-brasileira sobre o “homem do saco”. Trata-se de uma peça de madeira esculpida em 1546. Embora tenha sido muito usada como representação para assustar crianças desobedientes, o chapéu judeu da criatura é bem característico. Retirada de slate.com
Mas nem todos os monstros medievais eram tão carismáticos. Muitos foram inspirados em mesquinhez e violência. O anti-semitismo - que poderia ser plausivelmente definido como a representação de judeus como monstros - era indiscutivelmente central para a cultura européia da época. Ogros judeus sedentos de sangue serviram como personagens em inúmeras peças, histórias e poemas. Como na época do Nazismo, os judeus eram obrigados a usar um chapéu amarelo ou listrado pontiagudo. No meio da cidade suíça de Bern, a escultura de uma fonte ainda traz um desses pavorosos judeus-monstro simplesmente tirando crianças de um saco para as devorar. Em nenhuma prática judaica já foi documentado semelhante coisa, então somos levados a pensar na disposição do artista e autoridades da época em criar uma imagem que justificasse as ações de Cristãos contra os judeus.
Talvez o exemplo mais famoso desse tipo de história esteja na coleção The Canterbury Tales, do poeta inglês Geoffrey Chaucer. Nessa obra, um judeu mata uma criança Cristã e joga seu corpo em um monte de lixo. Quase tão famosa é a lenda do judeu de Bourges, que queima seu próprio filho, mais ou menos como nos ritos de Moloque, que os judeus nos contaram a respeito dos povos Cananeus. Uma ilustração francesa do início do século 14 retrata o judeu de Bourges com grandes olhos revirados e um nariz de porco enquanto empurra seu filho para uma fornalha. A imagem, em toda sua histeria racista e sentimentalismo grotesco, não é tão diferente das charges antissemitas que Julius Streicher publicou no auge do Terceiro Reich de Adolf Hitler. Outras caricaturas da Idade Média incluem muçulmanos, mulheres, pobres e doentes mentais. Essas imagens, vistas hoje, parecem ressaltar as poucas diferenças genuínas entre Cristãos e pagãos quanto a seu trato com “o diferente”.
MONSTROS SANTÍSSIMOS
Martírio de São Bartolomeu. Existem pelo menos 4 versões sobre a morte do apóstolo às vezes nomeado como Bartolomeu, às vezes como Natanael. Numa versão da Armênia, ele foi flexado e depois decapitado. Noutra, a mais popular, ele foi crucificado de cabeça para baixo, como Pedro. Ainda noutra, retratada aqui, ele batizou o rei Polymius, sendo então torturado e morto pelo irmão do rei. Numa última versão, possivelmente a mais verdadeira, Bartolomeu navegou até a Índia, talvez na mesma missão de Tomé, onde morreu na cidade de Kalyan. Retirado de br.pinterest.com
Uma ironia ainda maior das imagens de monstros medievais é que piedosas figuras bíblicas - mártires, discípulos de Cristo e até mesmo o próprio Cristo - eram retratadas como monstruosas. As histórias sangrentas de São Bartolomeu sendo esfolado vivo e de São Denis ou São Firmino, que dizem terem carregado suas próprias cabeças depois de cortadas, inspiraram infinitas obras religiosas. Uma representação húngara do martírio de Bartolomeu, do século 14, mostra o santo com sua pele meio removida, a boca presa em um sorriso de gato do País das Maravilhas. Ainda mais estranho é uma versão do artista do século 12 da Santíssima Trindade como um mutante de quatro olhos e três cabeças. Imagens como essas - não menos do que as dos dragões ou judeus matadores de crianças - procuram aterrorizar, mas por uma razão diferente: sugerir que o medo é parte da fé religiosa.
O EXÓTICO CRISTIANISMO
Por fim, é preciso dizer que boa parte do espanto com a arte Cristã medieval se dá porque a cultura Cristã da época nos parece muito exótica, 5 séculos depois. Sem dúvida o Cristianismo mudou muito nesse tempo. Duas influências grandes sobre a arte Cristã foram as Cruzadas (séc. 11 a 14) - que encheram o imaginário europeu com monstros e coisas terríveis dos Mouros - e a Peste Negra (metade do séc. 14). A Peste originou-se no Mar Cáspio e espalhou-se rapidamente pela Europa, seguindo o litoral e a rota das embarcações. A quantidade de mortos, a deformidade dos corpos e o sofrimento dos contagiados invadiu o imaginário popular com imagens de demônios em forma de cadáveres e atormentando os moribundos. Isso acabou desembocando em uma série de obras Cristãs conhecidas como Ars Moriendi, ou Arte de Morrer.
Ars Moriendi, Holanda, 1460. Nessa gravura do livro, um moribundo é tentado por várias coroas relativas às riquezas, orgulho, poder, etc. Enquanto o moribundo parece extremamente confortável em sua cama, aparecem diversos demônios risíveis ao seu redor. Tais figuras lembram bastante os desenhos de Pieter Bruegel sobre monstros, demônios e a loucura. Retirado de en.wikipedia.org
Essas obras dispunham sobre a forma correta de um Cristão morrer, de maneira a escapar dos tormentos de demônios. Na versão mais longa que foi preservada, aparecem ilustrações de demônios que lembram muito os anões da Branca de Neve, alguns com longas orelhas de coelho, ou línguas enormes, chapéus longos com as pontas enroladas, etc. Eles carregam as tentações que levam ao pecado e sua aparência bizarra, parecendo cruzamentos de humanos com animais que estão sem saber o que fazer pelo mundo, de fato fazem uma referência cruel aos doentes mentais. Levar-se pelo pecado é um símbolo de deficiência. Os moribundos, por outro lado, são explicitamente instruídos a manter uma aparência serena. Não apenas no Ars Moriendi, mas em toda a arte medieval, as pessoas parecem morrer completamente desinteressadas e passivas. Mesmo que isso seja sob apedrejamento, devorados por feras, perfurados por lanças ou decapitados. A face serena era, segundo o Ars Moriendi, uma forma de manter longe os demônios.
ÍCONES
Mas talvez a maior representação da arte medieval seja os ícones. Trata-se de pinturas ou esculturas religiosas que são, elas próprias, canais de comunicação com o divino. A Cristandade romana encheu a Europa, Ásia menor e norte da África com imagens de cenas bíblicas, mártires, reis, papas e patriarcas. Como no caso dos gregos que adoraram como deuses novos as estátuas quebradas nas ilhas que povoavam, civilização após civilização, os homens medievais encontraram essas obras de artes de homens antigos, de um reino antigo, e lhes atribuíram o papel de mensageiros divinos. Pinturas romanas deram origem a santos e, mais do que isso, as próprias pinturas foram tidas como sagradas, lugares para onde as pessoas peregrinavam em busca de cura, iluminação ou por subserviência. A Igreja Oriental até mesmo formulou uma teologia para explicar o poder das imagens: assim como Deus assumiu a forma humana em Cristo, Ele poderia assumir a forma material de pinturas e esculturas.
Imagem de Nossa Senhora da Conceição, cultuada em todo Brasil e que favoreceu a proclamação da Independência por fazer com que, na colônia, se desenvolvesse um importante centro Católico. Em 1978, a imagem (esquerda) foi destruída em um atentado religioso, produzindo mais de 200 fragmentos que foram cuidadosamente colados no Museu de Arte de São Paulo (MASP) (direita). A coloração original era clara, com pinturas em dourado, azul e vermelho, como era o estilo do escultor. Hoje ela é castanho escuro, acumulando uma camada de cera e fuligem do templo. Nos sécs. 8 e 9, um movimento iconoclasta dentro da Igreja Católica destruiu boa parte dos ícones, com exceção dos ossos e resquícios de santos. Retirado de padrerodrigomaria.com.br
Além do papel evangelizador que tiveram numa época onde a escrita se tornou raramente usada, essas obras religiosas foram a representação material e poderosa de Deus, como a Arca da Aliança levada nos conflitos entre judeus e filisteus. No Brasil, um exemplo tardio dos ícones foi a imagem de Aparecida. Obra de um monge escultor do século 17**, a estatueta com cabeça quebrada foi recuperada de um rio e venerada como a própria Virgem, ganhando um santuário que hoje é o segundo maior templo católico em atividade no mundo.
Como na Rússia dos Czares, a Idade Média de algum modo se estendeu para além do seu tempo devido à falta de contato tecnológico entre o Brasil-colônia e o restante do mundo. Isso para não falar nos livros e filmes que, desde o séc. 19, encantam o imaginário de adultos e crianças desagradados com a mesmice da ciência racional e um Estado estável.
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* Os monges Beneditinos foram uma força poderosa da civilização durante a Idade Média. Afora o caráter evangelizador de suas missões na Europa, os Beneditinos seguiam uma organização quase militar de delimitação de territórios e propagação da cultura romana. Quando chegavam a uma localidade, os monges tratavam de cercar um território para o mosteiro (às vezes até usavam de nobres armados para isso) e organizavam meticulosamente seu dia sobre os princípios de trabalho e culto coletivo. Assim, enquanto alguns monges entoavam por horas a fio um canto de homenagem a Deus ou algum santo, outros trabalhavam na horta e outros na construção do prédio. Em horários específicos as equipes trocavam suas tarefas. Esses mosteiros foram centros de alfabetização e educação na Idade Média, além de manterem viva a ideia de um Estado que ia além das pequenas vilas, mesmo sendo a distante autoridade de um abade ou bispo em Roma ou outra cidade papal.
** Uma análise meticulosa do estilo usado na imagem de Aparecida atribuiu sua origem ao paulista Frei Agostinho de Jesus, famoso produtor de estátuas sacras. Trata-se de uma estátua de barro. Aparentemente, a cabeça da imagem quebrou-se e, segundo a tradição, a mesma foi jogada no rio, onde permaneceu tempo suficiente embaixo d’água para que sua pintura fosse quase totalmente removida. Desde sua descoberta no rio Paraíba do Sul, em Guaratinguetá/SP, diversos milagres e estórias fabulosas foram-lhe atribuídos, como uma pesca milagrosa e a estátua ter ficado tão pesada que os pescadores não puderam carregá-la.
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EM LETRAS PINTADAS COM OURO
Arn J, The symbols of prejudice hidden in medieval art, artsy.net, 11jul2018
Ars moriendi - wikipedia
Book of Kells - wikipedia
Medieval monsters: terrors, aliens, wonders, apollo-magazine.com, 8jun2018
Mark JJ, Book of Kells, ancient.eu, 30jan2018
Mark JJ, Book of Kells, ancient.eu, 30jan2018
Nossa Senhora da Conceição Aparecida - wikipedia
Tsar - wikipedia
Varella P, 8 tendencias de arte estranhas que aconteceram através da historia, arteref.com, 22jul2018
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