domingo, 23 de junho de 2013

O caso Naamã - até onde Deus chega

Eliseu recusa o pagamento de Naamã - Pieter de Grebber

Um ponto importante no Cristianismo hoje parece ser a identificação com a comunidade religiosa. Por todo canto, católicos colocam imagens de N. Senhora nas camisas, evangélicos adesivam os carros com peixes, outros até com logos de suas denominações. Os ateus lançam ônibus para circular com mensagens de “Deus não existe”, laçam livros sobre o assunto, e por aí vai. Embora essa energia toda em “defender a sua fé” não seja nociva, ela por vezes pode fazer com que uma comunidade ou até uma pessoa se sinta “detentor de toda verdade” ou, em termos mais filosóficos, da “verdade das verdades”. E se tomarmos à risca a fala de Jesus – “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida” (Jo 14.6) – talvez cheguemos à fantástica conclusão que cada secto cristão possui um Cristo particular.

Será que isso é parte da mensagem que Deus confiou, que cada grupo tenha sua versão própria Dele? Será que o Espírito Santo é capaz de vazar através dos NOSSOS templos (e mesmo os nossos corações) para penetrar os templos de outros, para produzir amor entre aqueles de quem discordamos, ou nem reconhecemos como irmãos?

A história de Naamã talvez nos forneça alguns indícios sobre isso. Ela aparece detalhadamente no 2º Livro dos Reis, cap. 5, por isso vamos esperar que você a leia na sua Bíblia, antes de continuar.

------ AGUARDAREMOS SUA LEITURA ------

Já leste? Para resumir, Naamã era um alto oficial do exército arameu / sírio, atormentado pela lepra. Seu rei mandou-o até Israel, para que fosse curado. Depois de conseguir mais do que fora buscar, Naamã confessa ao profeta Eliseu que reconhecia o Senhor como deus. E então ele lhe pede permissão para continuar a freqüentar o templo de Rimom*, onde acompanhava o seu rei. Isso incluía curvar-se ao ídolo de Rimom, coisa que os profetas de Israel abominavam, sobretudo Elias, que fora mestre de Eliseu. Mas Eliseu disse que ele fosse em paz, ao invés de dizer-lhe que não fizesse isso, que enfrentasse a todos, etc.

NAAMÃ, O ARAMEU

 mapa de Israel em 830 a.C.
(clique para ampliar)

Pela indicação de que havia paz entre a Síria (Aram) e Israel, não é difícil localizar na história a passagem bíblica. Aram ficava do lado leste do rio Jordão, ao norte do reino de Amon e ao sul da Assíria. Do lado oeste estava Israel, então repartida em dois reinos: Israel / Samaria / Efraim ao norte e Judá ao sul. Sempre foram comuns as guerras na região, mas o texto bíblico diz que “Naamã era capitão do exército do rei da Síria, era um grande homem diante do seu SENHOR, e de muito respeito; porque por ele o SENHOR dera livramento aos sírios” (2Rs 5.1). Em 853 a.C. houvera uma guerra entre arameus e assírios, na qual os arameus saíram vitoriosos**. Provavelmente Naamã era um herói dessa batalha – afinal, por ele o Senhor dera livramento - e dessa forma se tornara predileto do rei Be-Hadad II. Era uma situação semelhante ao que aconteceria em Judá muitos anos mais tarde, quando Davi se tornaria predileto do rei Saul após derrotar os filisteus.

Vemos a importância de Naamã quando esse vai ao rei de Aram e consegue que ele mande uma carta de apresentação ao rei de Israel, junto com um suntuoso presente de dez talentos de prata (340 Kg), seis mil siclos de ouro (70 Kg) e dez mudas de roupas (2Rs 5.5). Esse presente, fosse da parte do capitão ou do próprio rei de Aram, era sem dúvida a apresentação de um nobre.

Apesar de seus feitos em batalha e sua importância no reino, a história começa nos dizendo que Naamã era leproso.

A LEPRA NOS TEMPOS ANTIGOS

A lepra sempre foi considerada uma doença terrível nos tempos bíblicos. Era considerada o castigo divino para os impuros. Normalmente os leprosos eram banidos das cidades, pois tratava-se de uma doença contagiosa. Atualmente a doença é chamada de hanseníase (ou mal de Hansen), sendo causada por duas bactérias chamadas Mycobacterium leprae e Mycobacterium lepromatosis, que infectam a pele e principalmente os nervos. Ambas são transmitidas por roedores que vivem nas cidades, que se proliferam em condições de pouca higiene ou super-população... Elas destroem as terminações nervosas e inflamam terrivelmente a pele, causando ulcerações e inchaços desfigurantes.

Curiosamente, a doença que a Idade Média chamou de lepra não tem os mesmos sintomas descritos por Moisés em Levítico cap. 13, como manchas brancas profundas e pelos descorados. A lepra parece ter se originado na China por volta de 4000 a.C., daí se espelhando para a Índia. Documentos sumérios e babilônicos de 3000 a.C. falam de pústulas na pele, perda de coloração e um odor pútrido. Os papiros egípcios de 2700 a.C. (como o tratado médico de Ebers) falam de uma doença semelhante. Entre 700 e 250 a.C. a doença aparece nos manuscritos gregos, mas os primeiros sinais da doença que conhecemos como “lepra” apareceram na Europa com os soldados de Alexandre retornando da Índia por volta de 320 a.C., ou seja, milênios após a vida de Moisés. Dessa forma, há uma certa controvérsia quanto ao significado da moléstia que aparece no hebraico original com o nome de sara’at ou tzara.

Os gregos Heródoto (484 - 420 a.C.) e Hipócrates (460 – 370 a.C.), considerados os fundadores da medicina, traduziram sara’at como leuke ou leucoderma (pele branca), de onde vem o nome “lepra”. Já Cláudio Galeno (130 – 200 d.C.) usou o termo elephas ou elefantíase para indicar o inchaço da pele produzido por uma doença que ele observava entre os gregos, e que possuía o caráter contagioso apontado no livro de Levítico. Popularmente, a elefantíase é associada com um inchaço fabuloso dos membros, mas a maioria dos casos na verdade se manifesta com a obstrução de pequenos vasos sangüíneos ou linfáticos por bactérias e o surgimento de várias pequenas regiões inchadas, além de brancas pela falta de irrigação.

Os sintomas do livro de Levítico em sua maioria estão mais ligados a formas de elefantíase e outras parasitoses de pele, como carbúnculo, furúnculo ou impetigo (infecção com bactérias do gênero Staphylococcus ou Streptococcus). Um dos sinais de que não se trata da hanseníase é o fato de que não são mencionados sinais aberrantes da doença como a contratura dos músculos, úlceras na pele, odor pútrido, febre e perda de sensibilidade. Ainda, a lepra e a elefantíase não atingem o corpo todo, como é mencionado em Levítivo ou no caso do servo Geazi (2Rs 5.20-27). A descrição da doença nesse caso parece mais o que chamamos hoje de psoríase, que é uma doença auto-imune. Também há semelhança com a dermatofitose, que é uma infecção da pele por fungos transmitidos a partir de cabras ou ovelhas.

Na falta de condições para tratar a lepra ou a elefantíase, Moisés implantou uma reforma sanitária entre os hebreus que consistia em tirar das cidades os indivíduos doentes, assim como abandonar as casas onde eles habitavam. A denominação “impuro” servia como forma de impedir que as pessoas tocassem nos infectados, mas assumiu um papel de “impureza perante Deus”. Apenas lembrando, o próprio Moisés havia sido vítima dessa doença (Ex 4.6). Quando Jesus curou um leproso e mandou-o apresentar-se ao sacerdote (Lc 5.12-15), vemos que a função sacerdotal como “vigilante” de pessoas leprosas na sociedade continuava em prática muito tempo após Moisés.

No tempo de Naamã, portanto, a “lepra bíblica” era motivo de exclusão social. Não temos uma “bíblia” que nos conte sobre como os arameus tratavam os leprosos, mas é possível que as medidas sanitária não fossem muito diferentes. Afinal, a língua dos arameus permaneceu falada no norte de Israel até os dias de Jesus. Havia um prejuízo social (ou Naamã não se encaminharia ao reino vizinho para obter tratamento) mas talvez sem a exclusão a que os judeus leprosos estavam condenados.

Quando Geazi pecou contra Eliseu, buscando Naamã para pedir seus tesouros em nome do mestre, o papel da lepra como “castigo divino” se mostrou novamente. Geazi estabeleceu um contraponto a Naamã, querendo lucrar com a obra de Deus e mentindo a todos. Como está escrito, Eliseu jogou sobre ele esta maldição:

... a lepra de Naamã se pegará a ti e à tua descendência para sempre. Então saiu de diante dele leproso, branco como a neve. (2Rs 5.27)

A TERRA DE ISRAEL

Um ponto interessante na história de Naamã foi a forma como ele se tornou crente, tendo toda a sua concepção de fé derrubada. Primeiro, Naamã se concebia como alguém digno de toda atenção, de forma que se revoltou quando Eliseu nem ao menos foi vê-lo, simplesmente mandando um mensageiro. Ele, que carregava o presente de um rei!

Segundo, Naamã via Eliseu como um curandeiro cujos poderes pessoais lhe trariam a cura. Havia recebido esse testemunho de uma escrava israelita que mantinha em casa. Mas Eliseu não orou junto a ele, nem sequer o tocou. Na verdade, Eliseu não podia fazer nada por Naamã: isso seria obra de Deus, quando Naamã tivesse mais fé Nele do que em si mesmo.

Não são porventura Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as águas de Israel? Não me poderia eu lavar neles, e ficar purificado?” (2Rs 5.12). Agora, segundo a mente de Naamã, o poder de cura estava no rio. Esse conceito também precisava ser quebrado, antes que Deus agisse. Apenas quando Naamã simplesmente seguiu as ordens do profeta foi que se curou, e assim ele reconheceu o poder do Senhor: “Eis que agora sei que em toda a terra não há Deus, senão em Israel” (2Rs 5.15).

Sendo curado, Naamã percebeu que precisava servir ao “Deus de Israel”, mas como fazê-lo, na Síria? Para os povos pagãos (dos quais fazia parte), seus deuses estavam vinculados não às pessoas, mas à terra e ao lugar onde viviam. O “Deus de Israel”, portanto, estava ligado à terra de Israel. E Naamã solucionou o problema levando Israel consigo: “... dê-se a este teu servo uma carga de terra que baste para carregar duas mulas; porque nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão ao SENHOR.” (2Rs 5.17).

Isso bastou para que Eliseu o reconhecesse como servo do Senhor. Naamã teve sua terra, e sua bênção. Ele foi abençoado mesmo dizendo que iria ao templo de Rimom com seu rei, servindo de apoio para o mesmo. Sendo um alto oficial como era, Naamã era observado pelo rei e seguido por muitos: não ir ao templo com o rei o condenaria talvez à morte, e era preciso que outros na Síria soubessem o que o “Deus de Israel” fazia e chegassem ao Senhor (esse plano começara com a improvável vitória dos Sírios sobre a Assíria). Desde sua cura, Naamã seria um crente no templo pagão, e não mais um pagão ali.

CONCLUSÃO

As histórias de Naamã e Geazi fazem parte dos contos moralistas da Bíblia, ou seja, que expressam mais do que um relato histórico. Naamã cai de seu pedestal próprio ao ficar leproso, sendo restaurado por Deus quando expressa humildade. Geazi cede à tentação dos tesouro, mente e obtém lucro com a obra de Deus, sendo condenado – junto com sua descendência.

O ponto que eu gostaria de deixar aqui é justamente a humildade que expressamos quanto ao conhecimento de Deus. Os fariseus nos tempos de Jesus gabavam-se de sua posição social (mantida por Deus, segundo eles) e sua pureza, não podendo jamais aceitar um Messias que tocava em leprosos, que comia com publicanos e tomava vinho (Mt 11.19). Eles foram severamente criticados por Jesus.

E [Jesus] disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus. (Mt 18.3-4)

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* Rimom era o deus da tempestade arameu. Na Bíblia, a passagem sobre Naamã é a única citação dele, embora a palavra Rimom fosse usada para a árvore que produz romãs e também para uma rocha nas proximidades de Gibeá.

** A batalha de Qarqar, em 853 a.C., ficou conhecida como a maior guerra já travada até então. Nessa batalha, o império assírio governado por Salmaneser III invadiu o território de Aram com cerca de 100 000 soldados e foi confrontado por 12 reis (incluindo o rei Acabe de Israel), que somaram mais de 60 000 homens. As perdas do lado assírio foram tantas que o império recuou, mas as perdas de Aram também foram tantas que alguns anos mais tarde outro ataque colocou Aram sob o domínio assírio.

O REI SÍRIO MANDOU LER

Batle of Qarqar – wikipédia
Cochrane RG - Biblical Leprosy: A Suggested Interpretation
Leprosy – wikipédia

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