segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Congo 1900 - a lembrança de uma barbárie que os livros apagaram

Vítimas do Estado Livre do Congo e os ingleses que denunciaram Leopold II. Estas não são as piores imagens da época, que incluem soldados belgas enforcando crianças e pais chorando ao lado de partes dos seus filhos esquartejados.

Muitos experimentos antropológicos e psicológicos feitos no pós-2ª Guerra mostraram como pessoas comuns, educadas segundo os valores tradicionais de cultura e religião, podiam ser levadas a reproduzir as crueldades perpetradas contra os Judeus se estivessem imersas no ambiente adequado. Especialmente com os facilitadores e pressionadores sociais voltados para que tais atrocidades fossem premiadas e a hesitação ao fazê-las, punida.

Estamos novamente em tempos nos quais a Igreja brasileira (e não só aqui) se volta para favorecer uma organização de cima para baixo, hierárquica, quase militar de atuação. Por isso, tendo passado recentemente talvez um dos últimos feriados da Consciência Negra, trago aqui o lembrete de uma atuação particularmente nefasta de homens brancos e negros, guiados por essa frutífera organização vertical de poder, sobre uma região particularmente castigada da raça humana, o Congo. Como a nossa Educação despreza por completo a África e o Oriente Médio, provavelmente você jamais ouviu falar da terrível história do Congo. Talvez nem sequer saiba onde fica essa região e as almas que vivem lá. Geograficamente, trata-se de uma grande planície da África Ocidental bem na mesma latitude que o estado do Amapá, ao redor do rio Congo, onde hoje se encontram a República Democrática do Congo, o Congo, República Centro-africana e Guiné. Historicamente, ali floresceram os povos negros Kongo e Hausa na antiguidade, os 1os colonizados por Portugal e os últimos pelo Islã, que chegou através das caravanas do Saara e pelos Malí.

No séc. 16, o reino Kongo era bem pouco urbanizado, em comparação com outros reinos da África Ocidental. Havia uma capital na margem sul do rio, muitos quilômetros acima do litoral, com cerca de 100 mil habitantes e fartas áreas agrícolas ao redor. O rei (Manikongo) Nzinga foi levado a conhecer Portugal e retornou chamando-se João I, convertido ao Cristianismo Católico e junto com vários religiosos. Ele e seu sucessor, Afonso I, criaram uma versão sincrética do Catolicismo misturado à religião animista tradicional (resultando algo parecido com a Umbanda brasileira e a Santeria caribeña). Havia terrenos sagrados, como o cemitério dos reis, e a palavra para Bíblia era nkanda ukisi, algo como livro-amuleto. Essa religião (os grupos se auto-denominam Católicos, apesar da vertente afro) permanece muito disseminada no Congo até hoje.

Longe da capital, a população do Congo estava organizada em aldeias agrícolas de uma centena de pessoas próximas aos afluentes do grande rio. Os missionários Católicos e Protestantes contribuíram na interiorização da região pelos europeus a partir de 1850; as missões, além de evangelistas, abriram caminho para as empresas colonizadoras estabelecerem postos comerciais. Longe de serem postos de desenvolvimento, tais instalações direcionavam os produtos extrativistas (marfins, como se isso significasse fazer uma colheita) para os portos no Atlântico em troca de pagamentos mínimos à população ou, ainda, apenas ao governante local, muitos estabelecidos à força de armas pelos colonizadores. Graças a uma miríade de tratos comerciais, de empobrecimento de algumas nações e enriquecimento de outras, ao final do séc. 19 o Congo era habitado por cerca de 20 milhões de pessoas, metade delas Cristãos, repartido entre a Bélgica e a Inglaterra.

A DENÚNCIA

Foi Joseph Conrad, o escritor inglês e aventureiro, quem primeiro descreveu as condições de ocupação do Congo em 1889, quando esteve na África. Seu famoso livro Heart of Darkness (O Coração das Trevas) refletia as próprias experiências. Tendo navegado para o interior do Congo em um barco a vapor, ele ouviu pessoas e testemunhou abominações que chocaram a Europa. Ele descreveu como até mesmo as mentes mais bem intencionadas, encapsuladas na figura fictícia do agente de marfim Kurtz, poderiam afundar nas profundezas da depravação, insanidade e maldade, ante a disponibilidade de riquezas e ausência de restrições morais. E estamos falando aqui de europeus Cristãos, que aprenderam sobre “amai-vos uns aos outros”...

Na década de 1880, dezenas de europeus aventureiros ou com apetite por riqueza rápidas desembarcaram no Congo em resposta ao chamado colonial de "civilizar e desenvolver”. Isso literalmente significava participar de uma empresa de comércio ou posto do governo cuja principal obra era extrair o máximo de marfim possível (quem precisa dos elefantes que Deus criou?). Havia uma pressão enorme, desde o rei belga Leopold II até o gerente mais humilde, para obter esse marfim a qualquer custo. Além disso, disputavam espaço a noção de que os africanos deviam conhecer a Cristo e a noção de que simplesmente não eram humanos, e portanto não valiam mais do que a caça. Enquanto na América os escravos eram chicoteados até certo ponto para que não morressem, pois eram caros, no Congo esses “animais” eram gratuitos, disponíveis aos montes em cada aldeia.

A fartura de marfim no Congo e a disponibilidade de escravos para coletá-lo logo fizeram a região ganhar notório interesse da coroa Belga. Ao invés de estabelecer o Congo como uma colônia tradicional, o rei Leopold II usou de todas as artimanhas legais para propagandear a necessidade iminente de desenvolver e cristianizar a região, trazendo-a para a luz da civilização, para o que precisava ter o Congo como sua propriedade particular, sem interferência do Estado. Sua petição foi baseada na expedição de Henry Morton Stanley, famoso por ter encontrado o missionário Britânico David Livingstone em 1871 (descrito em seu livro “Through the Dark Continent”). Não conseguindo atrair o interesse Britânico para a região do Congo, Stanley começou a trabalhar para o rei Leopold, organizando a construção de uma estrada. Enquanto percorria as aldeias, Stanley estabeleceu tratados com os chefes locais onde nenhum deles tinham idéia de que assinando um papel estavam transferindo suas terras ao rei Belga. Na Conferência de Berlim em 1885, Leopold II apresentou seu planos de banir o tráfico de escravos na região, combatendo mercadores árabes do Zanzibar como Hamad bin Muhammad bin Juma bin Rajab el Murjeb (conhecido por Tippu Tip). As reivindicações e documentos trazidos pelo rei Belga foram tidas em grande honra e uma pequena parte da região ficou sob administração conjunta dos parlamentos Inglês e Belga, enquanto a maior parte das terras foi atribuída ao rei como seu direito privado, o que ficou conhecido como Estado Livre do Congo. Mas as alegações de Leopold II não podiam ser mais falsas...

BORRACHA

A descoberta de látex no Congo mudou todo o curso da história.. Conrad retrata o que viu em Heart of Darkness quando seu protagonista, Marlow, descreve a chegada de alguns infelizes que haviam trabalhado até a morte e foram abandonados, como se fossem animais dispensáveis.

Formas negras agachadas ou deitadas, sentadas entre as árvores, encostadas nos troncos, agarradas à terra, meio que saindo, meio apagadas na penumbra, em todas as atitudes de dor, abandono e desespero... Estavam morrendo lentamente - era muito claro. Eles não eram inimigos, não eram criminosos, não eram nada terreno agora - nada além de sombras negras de doença e fome, confusos na escuridão esverdeada. Trazidos de todos os recessos da costa em toda a legalidade dos contratos, perdidos em ambientes incontestáveis, alimentados com comida desconhecida, eles adoeceram, tornaram-se ineficientes, e então foram autorizados a rastejar para longe e descansar para sempre…” (Conrad J, Heart of Darkness)

Esses primeiros rumores da máquina de exploração do rei Leopold II não eram nada comparados com o que viria a seguir. Apesar dos esforços da administração colonial para aumentar a produção, os lucros do comércio de marfim não conseguiam acompanhar os custos de urbanizar a Bélgica com obras portentosas. Leopold, cada vez mais desesperado à medida que as dívidas se acumulavam, teria que encontrar outra maneira de garantir sua fortuna. A inocente criação, por volta de 1888, do primeiro pneu inflável pelo inventor escocês John Boyd Dunlop (então usado somente em bicicletas) sem querer deu um passo gigantesco rumo à industrialização do transporte. O próprio Dunlop começou a fabricar pneus em 1890, sendo seguido por uma legião de empreendedores.

As vendas de látex decolaram. Quase da noite para o dia, a borracha bruta tinha a lucratividade do ouro e vários países no mundo se dedicaram a sua produção. Brasil, Indonésia e o Congo despontaram entre os grandes produtores de borracha para a indústria européia. Diferentemente das árvores seringueiras que eram plantadas em todo entorno da Amazônia no Brasil, a borracha do Congo vinha de videiras ou trepadeiras nativas (Landolphia owariensis gentilii), espalhadas por toda a mata da região. Retirar o látex geralmente significava rasgar a planta com uma faca. E o lucro fabuloso que o mercado de borracha oferecia (algo da ordem de 10 000%) dependia basicamente da colheita dessas trepadeiras e de levá-las ao mercado em quantidade máxima, com a máxima rapidez e eficiência. Por isso foram feitos acordos com companhias de exploração, distribuídas concessões territoriais e facilitada a criação de uma força de trabalho massiva. Essas companhias eram projetadas para levar os congoleses a produzir borracha implacavelmente, num período que ficaria conhecido como o "Terror da Borracha".

ABIR

A história de apenas uma dessas empresas já lança muita luz sobre a natureza do empreendimento. A Anglo Belgian India Rubber (Empresa Anglo-Belga de Borracha da Índia, ou ABIR), foi criada em 1882 pelo coronel britânico John Thomas North, que fez uma fortuna especular extraindo salitre no Chile. Ele reuniu investimentos Ingleses e Belgas, recebendo de Leopold II a concessão exclusiva de exploração no norte do Congo em 1892. Essa exploração era feita taxando os habitantes como num sistema feudal, isto é, cada aldeia e cada pessoa devia entregar semanalmente uma quantidade de látex à empresa colonial, pelo direito de habitar as terras que anteriormente eram dos seus ancestrais. Mas sair da terras também não era uma opção.. O sistema de coleta da borracha girava em torno dos “postos de desenvolvimento” ao longo dos dois principais rios da concessão. Cada posto era comandado por um agente europeu e tinha guarnições armadas para impor pagamentos e punir os rebeldes.

A ABIR aproveitou bem o “boom” do preço do látex no final da década de 1890, vendendo 1 Kg de borracha na Europa por até 10 francos, o que lhes custara apenas 1,35 francos para coletar e transportar. Esse dinheiro, ainda, eram os gastos em munição dos agentes, não o que era pago aos congoleses. Estes eram ameaçados com prisão, flagelação e outras punições corporais. Como a coleta destruía as trepadeiras de onde o látex era extraído, o processo de extração fazia elas se tornarem cada vez mais escassas e, em 1904, os lucros começaram a cair. Durante o início do século XX, a fome e a “doença do sono” se espalharam pela concessão, um desastre considerado “natural”. Os anos 1900 viram revoltas generalizadas contra o domínio de ABIR e tentativas de migração em massa para o Congo Francês ou para o sul. Esses eventos normalmente resultavam em a ABIR mobilizar um exército para “restaurar a ordem”.

Esse exército eram 50-100 “sentinelas armadas” por posto, na maioria das vezes unidades da Force Publique de Leopold II, mas também poderia significar ex-escravos, ex-prisioneiros ou aldeões locais mais egoístas, ansiosos por serem elevado ao status de "policiais" (recusar o recrutamento era punido com a morte). Esses Askaris ou recrutas andavam armados com fuzis e chicotes, sendo regularmente enviados pela ABIR contra as aldeias para disciplinar e punir. Homens, mulheres e crianças deviam se esforçar até a morte para conseguir a cota de látex exigida, abandonando plantações e a própria alimentação, pelo que apenas o líder da aldeia recebia, quando muito, algumas quinquilharias.

ATROCIDADES

Ao contrário da obra de Joseph Conrad, no Congo de 1900 não havia apenas um “Kurtz” descontrolado em sua ambição, mas havia muitos “Kurtz's” em altos postos da ABIR e também na Force Publique. Mais recentemente, outro livro que abordou essa tragédia humana foi “The King Leopold’s Ghost” (O Fantasma do Rei Leopold), de Adam Hochschild, um historiador que decifrou Kurtz como possivelmente um Belga de nome Leon Rom. Este era um um rapaz de pouca instrução que se juntou ao exército com 16 anos em 1880 e, aos 25, estava servindo no Congo, em busca de aventuras. Ele tornou-se comissário de distrito em Matadi e mais tarde foi encarregado das tropas Askari. A brutalidade de Rom não conheceu limites. Era tal que até os brancos servindo junto a ele ficaram chocados.

"Quando Rom era chefe de estação em Stanley Falls", revela Hochshild, "o governador-geral enviou um relatório a Bruxelas sobre alguns agentes reputados por ter matado massas de pessoas por razões mesquinhas". Ele menciona o notório canteiro de flores de Rom, enfeitado com cabeças humanas, e acrescenta: "Ele mantém uma forca permanentemente erguida em frente à estação".

Enquanto o sistema feudal se estendia pelo Congo como uma praga, a resistência naturalmente aumentava. Muitos congoleses fugiam para dentro das florestas ou através das fronteiras, alguns até contra-atacando, outros arrancando as trepadeiras de onde vinha o látex. Para enfrentar essa resistência, os agentes da ABIR simplesmente aumentaram suas crueldades na forma de ataques punitivos em aldeias. Foram feitos muitos massacres para servir de exemplo a outras aldeias. Os congoleses capturados eram chicoteados, espancados e mutilados, especialmente as mulheres e crianças, pois os homens eram mão de obra necessária à colheita do látex.

Como o Congo oferecia muita caça, especialmente aos mercadores de pele e marfim, Leopold II criou uma legislação que dava poder de matar aos oficiais que soubessem do desperdício de balas. Desperdiçar balas significava atirar em animais, não em seres humanos: o Congo recebia, mensalmente, carregamentos fartos de munição. Para cada cartucho disparado, os soldados da Force Publique deviam entregar a mão direita do homem que tivessem matado, como prova de que fizeram “bom uso” da munição. Mas ao invés de coibir a caça “ilegal”, qualquer soldado que atirasse em um animal passou a simplesmente decepar a mão direita do primeiro aldeão que encontrasse. Estabeleceu-se, até, um comércio de cestos cheios de mãos humanas recolhidas pelos Askari e usadas como moeda de troca por marfins e peles. Embora os livros de história não contem, essa prática de decepar mãos também foi usada por Cristóvão Colombo na ilha caribenha de Hispaniola (Haiti+ República Dominicana), onde ele e seus oficiais massacraram o povo nativo Taino para cumprissem suas pesadas cotas de ouro e algodão.

Mas voltemos a um exemplo mais detalhado de como outro "Kurtz", o comissário distrital Leon Fievez, reforçou o Terror da Borracha no Congo, novamente citando o livro de Hochshild. Um padre católico que registrou histórias orais meio século depois cita um homem, Tswambe, falando de um oficial do estado particularmente odiado chamado Fievez, que aterrorizou um distrito ao longo do rio 300 Km ao norte de Stanley Pool:

Todos os negros viram este homem como o diabo... De todos os corpos mortos no campo, você tinha que cortar as mãos. Ele queria ver o número de mãos cortadas por cada soldado, que tinha que trazê-las em cestas... Uma vila que se recusasse a fornecer borracha seria completamente limpa. Quando jovem, eu vi o soldado Molili [de Fievez], então guardando a aldeia de Boyeka, pegar uma rede grande de pesca, colocar 10 homens presos nela, amarrar em grandes pedras e jogar no rio. A borracha causou tormentos; é por isso que não queremos mais ouvir o seu nome. Soldados fizeram homens jovens matarem ou estuprarem suas próprias mães e irmãs.

Um oficial da Force Publique que passou pelo posto de Fievez em 1894 cita o próprio Fievez descrevendo o que ele fez quando as aldeias vizinhas não conseguiram abastecer suas tropas com o peixe e a mandioca que ele havia exigido: “Eu fiz guerra contra eles. Um exemplo foi o suficiente. Uma centena de cabeças foi cortada, e desde então há muitos suprimentos na estação. Meu objetivo é basicamente humanitário. Eu matei cem pessoas... mas isso permitiu que outras quinhentas pessoas vivessem.

Reparemos, como Cristãos, que esse modo de pensar de Fievez é pior do que a concupiscência ou lascividade bíblica. É se perdoar o mal pela simples possibilidade de fazer mais mal ainda. Está registrado que esse auto-descrito "humanitário" Fievez, "matou cerca de 1.300 congoleses, queimou 162 aldeias, cortou plantações e destruiu hortas - levando indiretamente a inúmeras outras mortes pela fome". O incentivo para os congoleses desafiarem a floresta em busca de látex não eram os pequenos pagamentos, mas o medo da punição. Se um homem não cumprisse sua cota, sua família poderia ser tomada como refém pela ABIR. Se a aldeia não cumpresse sua cota, o chefe seria preso. Em julho de 1902, um dos registros apontava que havia 44 chefes de aldeias nas prisões de Bongandanga e Mompono. Um documento semelhante, de 1899, revelava as condições das mesmas prisões: de 3 a 10 prisioneiros morriam nelas, todos os dias.

Os congoleses que resistissem às imposições da ABIR eram levados para campos de trabalhos forçados. Havia pelo menos três desses campos, um em Lireko, um no alto rio Maringa e um no alto rio Lopori. Além do encarceramento, havia seções de até 200 chicotadas. Quando os coletores de látex desapareciam nas matas, mulheres e crianças da comunidade seriam mantidas como reféns até que voltassem. Se não voltavam, elas eram transportadas para a costa e vendidas. Um missionário sueco descreveu ver “um grupo de 700 mulheres acorrentadas e transportadas”, a caminho de serem vendidas como escravas.O notável relato do cônsul britânico Roger Casement, que abriu caminho para as intervenções humanitárias no Congo, descreveu a passagem de um oficial belga pelo rio:

... chegaram em canoas em uma aldeia, ... Eles atacaram os nativos até conseguirem apoderar-se de suas mulheres; essas mulheres foram mantidas como reféns até que o chefe do distrito trouxe o número exigido de quilos de borracha. Tendo a borracha sido trazida, as mulheres foram vendidas de volta a seus homens por um par de cabras cada uma, e assim ele continuou de aldeia em aldeia até que a quantidade necessária de borracha fosse coletada.

Desnecessário dizer que muitas dessas esposas presas foram estupradas e abusadas pelos guardas, conforme documentado por missionários e outros durante o Terror de Borracha. Assim, a humilhação sexual foi acumulada sobre as mutilações, morte sem fim e a vasta injustiça contra os nativos do Estado Livre do Congo. O Terror só diminuiu quando metade da população havia sido dizimada pela fome, “doença do sono” (parente mais agressiva da nossa “doença de Chagas”), e as barbaridades praticadas pelo sistema de Leopold II. Entre os sobreviventes, um sem número de pessoas mutiladas e violentadas. A partir da denúncia feita pelo cônsul britânico Roger Casement em 1904, iniciou-se um movimento internacional de direitos humanos para retirar a posse do território de Leopold II e entregá-la ao parlamento Belga.

Nas palavras de Roger Casement:

Na aldeias S., depois que a confiança em nós foi restaurada e os fugitivos começaram a sair da floresta onde eles haviam se escondido, eu vi mulheres carregando seus bebês, seus utensílios domésticos, e até a comida que haviam arrebatado às pressas. Quando me aproximava, elas disseram, sorrindo: ‘Nós pensamos que você era Bula Matadi’ (isto é, "homens do governo"). Um medo desse tipo era anteriormente desconhecido no Alto Congo; há muitos anos, o povo vinha de todos os lados para saudar um estranho branco. Mas hoje a aparição de um barco a vapor era o sinal para fugirem.

Dois casos chegaram ao meu conhecimento quando eu estava no lago. Um homem jovem, cujas duas mãos haviam sido cortadas com as lâminas dos fuzis contra uma árvore, o outro, um garoto de 11 ou 12 anos de idade, cuja mão direita fora decepada no pulso. Esse garoto descreveu as circunstâncias de sua mutilação e, em resposta a minha pergunta, disse que, embora ferido, ele estava perfeitamente consciente quando arrancaram-lhe a mão, mas fingiu estar morto porque temia que, se se movesse, o matariam. Em ambos os casos, os soldados do governo [Askaris] estavam acompanhados por oficiais brancos cujos nomes foram dados a mim. De 6 nativos (um menina, três meninos, um jovem e uma velha) que haviam sido mutilados dessa maneira durante o regime de borracha, todos, exceto um, estavam mortos quando voltei ao lugar tempos depois. A velha tinha morrido no começo deste ano e sua sobrinha me contou como se dera sua mutilação.

As multas infligidas às aldeias por delitos insignificantes eram assustadoras: o oficial impusera como punição uma multa de 55.000 barras de latão (2.750 francos ou 110 libras). Essa quantia eles tinham sido forçados a pagar e, como não tinham meio de levantar uma soma tão grande, foram obrigados a vender seus filhos e suas esposas. Não vi nenhum tipo de criação de animais na aldeia W. - salvo pouquíssimas aves - possivelmente uma dúzia - e parecia, de fato, como essas pessoas afirmavam, que tivessem grande dificuldade em garantir seus suprimentos. Um pai e uma mãe saíram e disseram que tinham sido forçados a vender seu filho, um garotinho chamado F., por mil barras de latão, para cobrir sua parte na multa. Uma viúva veio e declarou que tinha sido obrigada, a fim de cumprir sua parte na multa, a vender sua filha G., uma menininha que, segundo sua descrição, julgava ter 10 anos de idade.

Isso foi o que um deles me relatou. ‘Costumava demorar dez dias para encher as vinte cestas de borracha necessárias - estávamos sempre na floresta e, quando nos atrasávamos, éramos mortos. Tínhamos que ir cada vez mais longe na floresta para encontrar as trepadeiras, ficávamos sem comida e nossas mulheres tinham que abandonar os campos e os jardins. Então nós passamos fome. Os leopardos da floresta mataram alguns de nós quando estávamos trabalhando, outros se perderam ou morreram de fome. Imploramos aos homens brancos que nos deixassem em paz, dizendo que não conseguiríamos mais borracha, mas os eles e seus soldados disseram: ‘Vocês são apenas bestas; você é nyama (carne).’ Nós tentamos, sempre indo mais longe na floresta, e quando nós falhávamos e havia pouca borracha, os soldados vinham para nossas cidades e nos matavam. Muitos foram baleados, alguns tiveram suas orelhas cortadas; outros foram amarrados pelos pescoços e levados embora. Os homens brancos nos postos às vezes não sabiam das coisas ruins que os soldados faziam a nós, mas eram eles que enviavam os soldados para nos punir.’

Embora as repercussões do relato de Roger Casement tenham sido imensas, houve um movimento do governo Britânico (sem falar do governo Belga) para silenciá-lo. Após os desenvolvimentos que terminaram com a retirada da posse de Leopold II sobre o Congo, o cônsul Casement foi afastado de suas funções e até incriminado como traidor da coroa. Apesar disso, aliados seus fizeram questão de incluir partes do relato de Casement em obras literárias, para que suas palavras chegassem ao público. Um desses divulgadores, amigo pessoal de Casement, foi o célebre Sir. Arthur Conan Doyle, autor das popularíssimas obras sobre o detetive Sherlock Holmes. Uma parte significativa do documento de Casement foi copiado na íntegra em seu livro “The Crime of the Congo”, em 1909, de forma a alarmar toda a população européia que falasse inglês sobre o que estava acontecendo na África. Doyle ainda frisava a falta de atuação da Igreja contra os massacres da população africana:

A organização da Igreja Católica é mais disciplinada e menos individualista que os órgãos religiosos defensores de direitos no Congo. Os sacerdotes estavam, sem dúvida, tão horrorizados quanto todos os outros, mas os meios de expressão lhes eram negados. M. Colfs, ele próprio Católico, disse na Câmara Belga: ‘Nossos missionários têm menos liberdade do que os missionários estrangeiros. Eles são ordenados a manter silêncio .... Há uma mordaça colocada na boca dos missionários Belgas’".

Deve-se admitir que a Igreja Católica Romana, como um corpo organizado, não levantou a voz na questão do Congo. ... Falamos com orgulho daquela igreja que, nos dias sombrios da história do homem, era a força que permanecia entre o opressor e o oprimido. Esta nobre tradição foi tristemente esquecida no Congo, onde as missões têm, como eu entendo, feito excelente trabalho, mas onde o poder da Igreja nunca foi invocado contra as barbaridades do Estado. Os principais estabelecimentos Católicos estão rio [Congo] abaixo e longe das zonas de borracha. … mais que uma disputa entre credos rivais, há realmente uma disputa entre humanidade e civilização de um lado e cruel ganância do outro.

Leopold II conseguiu silenciar os missionários católicos Belgas. Boatos circulavam para desacreditá-los como se fossem dissidentes da Igreja; editores foram subornados; críticos foram acusados ​​de realizar campanhas secretas para promover as ambições coloniais de outros países. Até mesmo os relatos de missionários como William Henry Sheppard foram rejeitados como tentativas dos Protestantes para difamar os padres Católicos. Por pelo menos uma década, as críticas ao Estado Livre do Congo foram contidas.

Mas devido ao sistema extrativista e matança da mão de obra, as exportações de borracha continuaram a cair após 1900 e as rebeliões aumentaram, resultando no Estado Livre assumindo o controle da concessão de território da ABIR em 1906. A empresa continuou a receber uma parte dos lucros das exportações de borracha e em 1911 foi refundada como uma empresa de plantação de seringueira (no entanto, não se registra a real agricultura dessas trepadeiras, no Congo). A história posterior da empresa é desconhecida, mas ainda estava ativa em 1926.

EPÍLOGO

O Estado Livre do Congo existiu entre 1885 e 1908, quando seu território foi anexado à região controlada pelo parlamento Belga. Nesse período, estima-se que 10 milhões de pessoas tenham morrido assassinadas, por fome ou contágio de doenças. Após a publicação de Heart of Darkness, Edmund Dene Morel, jornalista inglês e chefe de comércio com o Congo numa empresa de navegação, publicou que os navios trazendo borracha do Congo só retornavam para lá carregados com armas e munição. Morel nutria-se dos relatos, documentos e fotografias fornecidos por missionários Protestantes no Congo e tornou-se uma espécie de inimigo público do rei Leopold. Ele abandonou o cargo na navegação e fundou sua própria revista - The West African Mail - onde difundia documentos roubados da ABIR e críticas severas ao rei Belga. Assim fez com que as notícias sobre as atrocidades no Congo corressem não só por toda Europa, mas também chegassem aos jornais estadounidenses. Diante da difamação da Bélgica, o parlamento começou a organizar a retirada das terras africanas sob posse do rei. Mais tarde, Morel se tornou amigo dos escritores Arthur Conan Doyle e Mark Twain*, atuando como mediador de paz em conflitos internacionais. Ele até derrotou Winston Churchill (primeiro ministro durante a 2ª Guerra) nas eleições para o parlamento Britânico, durante a 1ª Guerra.

Infelizmente, como Jesus predisse dos seus seguidores, a vida não recompensou nenhum dos que lutaram contra a crueldade no Congo. Casement foi executado por alta traição em 1916, na Irlanda. Morel foi preso por escrever artigos contra o império Britânico. Bertrand Russell, um pacifista amigo de Casement, relatou sua libertação: "... seu cabelo era completamente branco (quase não havia um tom de branco antes). Quando ele saiu, desmaiou por esgotamento físico e mental”.

Leopold II enriqueceu muito com a exploração do Congo. Ele ergueu numerosos edifícios particulares e públicos com esse dinheiro, o que lhe rendeu o epíteto de "Rei Construtor". Suas obras incluem o Hipódromo de Wellington, as Galerias Reais e o Hendrikapark em Ostende, o Museu Real da África Central em Tervuren, os parques Cinquentenário e Duden em Bruxelas, e a estação de trens em Antuérpia. Suas propriedades privadas alcançaram luxo até então não visto. Quando Leopold perdeu a posse do Congo, os fornos do palácio em Bruxelas passaram mais de uma semana queimando documentos que pudessem incriminá-lo. As autoridades Belgas impediram o acesso ao que restava dos arquivos por quase 20 anos.

Nessa terrível história de um Holocausto contra o povo do Congo, fica notória a participação nefasta dos Belgas aventureiros e ansiosos por riquezas (custasse isso vidas ou não), a persuasão de nativos a trucidar sua própria gente e a quase ausência de atuação da Igreja (Católica e Protestante) a esse respeito. Não é tão diferente do que ocorreu na 2ª Guerra quanto ao massacre dos Judeus. Mas, ao contrário da imprensa que sensibilizou todo o mundo quanto ao genocídio dos Judeus, a tragédia do Congo foi considerada “natural” ou “de pouca importância”. Possivelmente você nunca ouviu falar de semelhante coisa.. Infelizmente, essa possibilidade de considerar vidas humanas como “dispensáveis” ou “tão valiosas quanto a caça” costuma ser uma consequência comum de esquemas verticais de governo, onde um pequeno grupo controla outros, que controlam toda uma população. Não há nenhum exemplo bíblico de Jesus ou de qualquer dos Seus agindo dessa forma, muito pelo contrário, o que torna evidente o quanto a “Igreja de Deus” pode se tornar terrivelmente mundana segundo os parâmetros de “amar a Deus e ao seu próximo como a si mesmo” pregados por Jesus.

Tenhamos a Sabedoria de “temer a Deus” e ser diferentes.

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* Mark Twain (1835-1910; seu verdadeiro nome era Samuel Langhorne Clemens) já era um escritor estadounidense famoso por obras como “As aventuras de Tom Sawyer” e “Huckleberry Finn”. Em 1905 ele publicou um panfleto satírico sobre Leopold II se defendendo das críticas internacionais, dizendo que não tomou nenhum dinheiro do governo, que não usou o Congo para ganhos pessoais e que tais afirmações foram feitas pelos "intrometidos missionários americanos", "cônsules britânicos" e "tagarelas belgas". Todos os críticos seriam traidores, além de que criticar um rei era blasfêmia. O livro trazia o relatório do missionário William Henry Sheppard sobre 80 pessoas massacradas numa cobrança de impostos. O “Leopold de Twain” ainda dizia que seus críticos só falavam do que lhe era desfavorável, como os impostos injustos, a fome e o extermínio de aldeias inteiras, mas não citavam os perversos missionários enviados para evangelizar aquele povo.

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Papéis que sobraram

ABIR Congo Company - wikipedia
Congo Free State - wikipedia
E D Morel - wikipedia
Mac McKinney, The horror crescendos, www.laprogressive.com
Mark Twain - wikipedia
O Cristianismo negro - 2ª parte, www.loungecba.blogspot.com
O Cristianismo negro - 3ª parte, www.loungecba.blogspot.com
The crime of the Congo, www.online-literature.com
The real heart of darkness, The telegraph, 31/mai/1999
Thornton JK, Afro-Christian syncretism in the Kingdom of Kongo, The Journal of African History, 54(1), 53-77, 2013.
Twain M, King Leopold's soliloquy (PDF)

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