quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A Caridade está fora de moda

"Pode ser hora de deixar por completo de criticar ou de falar do capitalismo. Pode ser hora de começar a criticá-lo ignorando-o por completo e passando a contar histórias sobre alternativas superiores – histórias que pertençam ao domínio do passado, do presente ou do imaginado, porque não faz diferença. Todas as histórias falam do ser humano e ao ser humano falam."

Fazendo uma homenagem ao texto de Paulo Brabo.

A Caridade é uma coisa que temos sido desensinados a fazer, ao ponto de a acharmos, hoje em dia, abusiva e mal intencionada. Com certeza, quem faz Caridade estimula a preguiça, o "pedir sem precisar", o "aproveitar-se da boa vontade alheia". No dicionário atual, Caridade indica uma prática Cristã, ou pelo menos uma qualidade moral e espiritual de amor pelo próximo. No dicionário tiagológico bíblico, Caridade traduz esse amor em ajudar os desvalidos, dar ajuda ou donativos aos pobres, dar esmola. No linguajar cristológico de Lucas, é compaixão e benevolência em relação a alguém que se encontra em situação difícil (pode até ser um viajante Jerusalense encontrado por um Samaritano). O dicionário português sugere que Caridade é sinônimo de filantropia, humanitarismo, benevolência, piedade, favor, benefício.

Se o mundo fosse repleto de Caridade, ninguém precisaria se descabelar com as contas. Bastaria dizer ao cobrador que não pode pagar e, além do perdão ele talvez até lhe desse algo. A Caridade, seja como forma ideológica ou espiritual, se faria carne ao impedir ele de cobrar de alguém menos afortunado e ainda instigaria que lhe oferecesse ajuda gratuita. Por outro lado, essa mesma Caridade impediria você de fechar as portas de casa, mesmo à noite; pois como você negaria dar ao próximo aquilo que tens e ele não? Agindo sobre o mundo desvairadamente, a Caridade seria um agente tão esquerdista que renegaria a necessidade de um governo: com todos se ajudando mutuamente, em muito poucas coisas precisaríamos de alguém decidindo pelo outro ou mesmo tendo de julgar alguma disputa.

Quando Jesus ensinava sobre fazer Caridade (e não há como desvincular ela do “amor ao próximo”, até porque ambos são ensinados nas mesmas passagens), Ele também estava pregando algo que, naqueles tempos, era terrivelmente anti-romano e anti-judeu. Os romanos organizavam sua vida segundo as decisões de uma hierarquia superior. Embora sua ordo seclorum, ou "a forma como o mundo funciona" estivesse atrelada à prosperidade de toda nação, estava muito mais obediente à prosperidade e propriedade de algumas famílias que faziam toda a costa do Mediterrâneo girar ao redor de si. Isso não era absolutamente ruim para o povo, visto os problemas que surgiram quando Roma se espedaçou; mas várias vezes as famílias reais sacrificaram cidades inteiras para obter o que consideravam seu direito. Dessa forma, Roma tinha um pé no que se poderia chamar de Anti-caridade, ou seja, prejudicar o próximo para que eu seja beneficiado.

Pouco tempo depois, tomado de amor por um Jesus que conheceu depois de morto, Paulo rabiscou para seus seguidores de Roma, Éfeso e Corinto que a graça de Deus é distribuída imerecidamente. Podemos até supor que Jesus pensasse assim, visto a variedade de pessoas que Ele ajudava e ensinava, indo de centuriões romanos a leprosos e mulheres adúlteras. Seu preço parecia ser apenas a fé, coisa que não é rara em alguém desesperado. Se Jesus professava essa graça imerecida, que não exigia sequer o cumprimento dos muitos preceitos Judaicos, podemos entender porque a alta classe de Jerusalém o detestava. Em suma, Jesus desdenhava de seus pilares Romano - a autoridade - e Judeu - a pureza ritual. Com Ele ninguém tinha graça porque ela foi concedida de algum superior, nem porque foi merecida, nem porque foi herdada. Nada de meritocracia.

Nem lá no séc. 1 o mundo de Jesus cabia nesse mundo aqui, mesmo sendo totalmente gratuito. Os 1os discípulos já descobriram que, para fazer o que o Deus Vivo ordenara, seria preciso erguer uma cerca, fazer um grupo fechado, separado do restante, com outras regras ou, na exata interpretação da palavra, um grupo “santo”. O complicado era que, segundo o Mestre, eles também deveriam ir a todas as pessoas e convidá-las para seu grupo, que era dentro de onde a Caridade podia ser feita livremente. Indo ao ápice na famosa ceia com os doze, Jesus lavava os pés de quem o seguia e dividia tudo conforme cada um quisesse, para desfazer a noção da Anti-caridade de que uns podiam ser expropriados em favor de outros. Viver assim era muito anti-romano e aceitar qualquer um ao grupo era também muito anti-judeu. Por isso Ele estava cultivando algo que dependia do amor dos de fora, mas que tinha a cultura daquela época e lugar ensinando todos a odiar e temer.

Se olharmos como a ideia de Caridade se espalhou pelo tempo e espaço (nós a colocamos no dicionário com as referências do Oriente Médio do séc. 1), veremos que ela apaixonou a muitos. Jesus sabia o quanto era atraente; até avisou Seus seguidores que morreriam por ela, sabendo que nem assim eles desistiriam. Os missionários da diocese de Alexandria (Egito), nos sécs. 4 e 5, possivelmente foram os 1os responsáveis por levar isso Europa adentro. Sua estratégia não foi muito diferente do pessoal descrito em Atos dos Apóstolos: formaram grupos fechados, onde se praticava a Caridade, convidando todos a entrarem. E logo perceberam que, para alimentar um grupo assim, que dá gratuitamente, era preciso fazer um acordo com a Anti-caridade. Seria dada a graça aos mais ricos em troca de algum dinheiro, não mas de graça. Com esse dinheiro poderiam ajudar os pobres que esses mesmos ricos expropriaram. A Igreja entrou no circuito da autoridade e passou até a considerar o merecimento, pois eram bocas demais a alimentar e o conforto do dinheiro era bem merecido pelos santos.

Foi muita evolução e revolução até os dias de hoje, mas vimos a Igreja daquele que desafiava Romanos e Judeus fazer extermínios até piores do que os feitos pelos primeiros. Hoje, nem pensamos mais em encontrar a graça dando sopa por aí, muito menos a Caridade, e esta última não esperamos encontrar sequer dentro dos redutos da Igreja. Francisco de Assis, nascido na Itália do séc. 12 e tido como o 2º Cristão mais reverenciado desde Jesus, fez exatamente essa barbaridade. Também visitado por um Jesus re-afirmando sua culpa na ideia, como Paulo ele jogou para o alto seu merecimento e desafiou as autoridades quando, diz-se, criou um grupo de ambulantes dedicados à Caridade. Mas até os seguidores de Francisco - que não poderiam ser melhores que os de Jesus - quase sempre encontram-se trancafiados em círculos de santos, protegidos e à margem do mundo que a Anti-caridade governa. Mas aquela coisa plantada pelo Nazareno continuou apaixonante, tentadora pelo quanto é fácil e gratuita.

O mundo não tem outra alternativa a não ser fazer que tudo e todos ao nosso redor fale contra a Caridade. Aquele que pede ajuda na rua certamente não a merece: provavelmente vai usar qualquer dinheiro para comprar drogas ou beber. Aquele conhecido que está endividado, com certeza não estudou ou não trabalhou tão bem que pudesse garantir um futuro próspero. Até o rapaz mal educado na padaria não teve boa família ou educação que o ensinasse a se portar. A Anti-caridade faz questão de escancarar a falta de merecimento, de autoridade e de pureza, e muitas vezes não está mentindo.

Mas a questão de Jesus é justamente mandar isso às favas, porque a Caridade só se importa em ajudar, em igualar, sem sequer esperar um obrigado. Fora dos círculos de santos protegidos, até contratuados com o oposto da Igreja de Jesus, a Caridade pode ser, hoje, tudo que nos resta para semear o que Jesus teve a ufana ambição de chamar de Reino.

“Mas a economia demonstra que a desigualdade social atrapalha o crescimento, veja os números” tem a mesma precisa eficácia de dizer “mas Deus é amor, leia o versículo”. Defender a ciência econômica é como defender Deus: é inútil e contraproducente, e não é da índole nem de um nem do outro.

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Papai Noel avisou que não passaria lá

Bacelar T, A maquina da desigualdade, Le Monde Diplomatique Brasil, 8/nov/2007
Mapa das desigualdades do Distrito Federal 2016 - movimentonossabrasilia.org.br
Mapa da desigualdade na Grande São Paulo 2017 - nossasaopaulo.org.br
Pernías TR, O crescimento da desigualdade no capitalismo contemporâneo, Le Monde Diplomatique Brasil, 14/dez/2018

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