quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Retornamos ao Velho Testamento?

"Armandinho", tira de Alexandre Beck, de 5/abr/2015

Uma curiosidade talvez pouco observada nas igrejas é a valorização do Velho Testamento (VT). Enquanto os Católicos modestamente se lembram que o VT existe, os Protestantes são muito afeitos a pregá-lo em seus cultos. E essa valorização é tanto maior quanto mais contemporânea for a filosofia da Igreja. Em muitas delas, parece que o VT já ultrapassou seu substituto mais Novo.

Seguindo a linha Igrejas Históricas > Pentecostais > Neopentecostais, o VT aparece cada vez mais nas pregações e práticas. Enquanto algumas Pentecostais adotam a última moda no séc. 19 (nascimento do Pentecostalismo!), outras descambam para regras Judaicas descritas por Paulo, o Fariseu. Chegam ao ponto de um arsenal do séc. 10 a.C. composto por cajados, água-do-rio-Jordão, tronos sagrados e arcas-da-aliança como objetos de veneração. Mais recentemente, foi erguido todo um Templo de Salomão¹ em São Paulo, feito com materiais sagrados da Terra Prometida. As mensagens pregadas também vão nessa linha: São Pedro e São Paulo para os Católicos, Daniel, Levítico e Deuteronômio para os Neopentecostais. Desafiando a roupagem antiga (alguns pastores chegam a usar barbas longas e o Quipá Judeu na cabeça), os Rabinos de hoje distam muito dos Fariseus do tempo de Jesus². Mas inovador mesmo é conciliar o VT com o Espírito Santo bradado nas congregações Pentecostais..

O VELHO VELHO

Os livros que compõem o VT, bem como sua ordem e nomes, diferem entre as denominações Cristãs. O VT Católico tem 46 livros; o Ortodoxo tem 51; o Protestante tem 39. Esses 39 livros comuns a todos os VTs Cristãos correspondem a 24 livros da Tanakh Judaica, com algumas diferenças de ordem e poucas diferenças no texto. São chamados “deuterocanônicos” aqueles livros que fazem parte dos VT Cristãos, sem estarem no Judaico, e justamente esses não aparecem no VT Protestante. Eles estão em algumas versões dos Anglicanos e Luteranos, que hoje são considerados Protestantes.

O VT e o Novo Testamento (NT) apresentam muito mais divergências do que pontos em comum. Para começar, a continuidade histórica entre um e outro, descrita nos livros dos Macabeus, não é aceita pela maioria da Cristandade. Trata-se de um período de lutas dentro de uma Israel invadida pelos Gregos e depois pelos Romanos, onde os principais líderes Judeus aliam-se aos traditoriamente aos dominadores ou sacrificam-se (literalmente) por sua tradição. Os Cristãos do séc. 4 jamais aceitaram uma Era de Mártires antes do Cristianismo, por isso deram para esse tempo inter-testamentário o sugestivo nome de Período do Silêncio (de Deus) e muitos removeram os livros dos Macabeus das suas Bíblias.

A Teologia sempre se ocupou de arrumar meios para concordar um e outro Testamentos. Por isso, a presença do VT na Bíblia Cristã representa muito mais uma alegação de continuidade do “povo de Deus” do que uma ligação histórica real. Não há dúvidas de que Jesus e seus seguidores liam a Torá Judaica, mas eles não apenas foram perseguidos e caçados pelos Judeus (devido às diferenças ideológicas) como fizeram mais aliados entre os Gregos, Turcos e Sírios do que jamais tiveram entre os Judeus. Mais tarde, o Islã também apelaria a essa “continuidade do povo de Deus” trazendo vários elementos Judaicos no Alcorão e até Jesus como um profeta, embora com uma ideologia também diferente de um e de outro, além da alegação de que todo o testemunho dos 1os Cristãos foi perdido e adulterado.

Enquanto o VT sumariamente apresenta um Deus que premia os puros, aqueles que seguem os preceitos e as leis*, o Novo Testamento traz um Deus não apenas humano e sensível à dor dos Seus filhos, mas anunciando o sofrimento de todos aqueles que O seguirem (alguém pegou a inversão, aí?). As ações humanas são simplesmente o reflexo de uma graça já alcançada sem mais pré-requisitos que a fé.

DEIXANDO O NOVO PARA TRÁS

Pareceria natural que a Igreja Cristã seguisse o NT, apelando ao VT por elementos históricos e profecias (se bem que muitas falas de Jesus e todo o Apocalipse já são bastante proféticos). De fato foi isso que aconteceu entre os Católicos e Ortodoxos, com pelo menos 1600 anos de intromissões filosóficas e históricas. Os Protestantes, que iniciaram seu movimento pelo séc. 16, começaram re-traduzindo a Bíblia a partir do Hebraico e Grego antigos para se “limparem” das possíveis alterações feitas pelos Católicos. Além disso, a maioria dos elementos históricos e tradicionais foram eliminados, ao ponto de que os templos Protestantes ficaram destituídos até mesmo das pinturas de cenas bíblicas.

O Pentecostalismo (1900s-até hoje) e o Neopentecostalismo (1970s-até hoje) foram paridos pelos Protestantes, como parte de um movimento de pregação leiga. Se o Espírito Santo pode dizer a cada um o que pregar, porque precisa ser alguém estudado em Teologia, ou mesmo que conheça o texto bíblico? Tanto um grupo como outro fazem apelos muito mais fortes ao poder divino aqui e agora, ao invés do estudo bíblico tradicional das Igrejas Históricas ou simplesmente Protestantes.

No Neopentecostalismo, as passagens bíblicas passaram a ser usadas para justificar a pregação (e não o contrário), esta geralmente afirmando que pode-se obter qualquer coisa de Deus, só não sendo o fiel atendido por falta de fé (na Igreja)**. Dado o discurso intelectual/filosófico de Paulo e a interpretação rasa da vida de Jesus pelos evangelistas (João é diferente), precisamos concordar que o VT se parece muito mais exato, fácil de entender. E também está mais vinculado aos procedimentos mundanos/carnais sobre o que as Igrejas Pentecostais e Neopentecostais se apoiam.

Através do VT, um pastor pode cobrar roupas, falas e ações da sua congregação. Como ele faria com um Jesus extremamente desobediente e libertário para distribuir graça? Numa época em que cada Cristão torna-se slogan vivo da sua Igreja (e elas são variadas como os grãos de areia da praia, no Neo/Pentecostalismo), inclusive na internet e na televisão, é preciso mostrar. Os valores de “amor a Deus” e “amor ao próximo” são infelizmente muito mais difíceis de retratar do que jargões como “estou na fé”, “está amarrado em nome de Jesus” ou o sucesso financeiro, simbolizado por carros, casas, empresas e roupas de grife. Os testemunhos de sucesso e cura, então, como negar tal poder de Deus?

Desde os anos 1980, o Catolicismo tem perdido espaço no cenário religioso brasileiro. E o grande responsável por isso tem sido a expansão rápida do Pentecostalismo e do Neopentecostalismo. Essa mudança, além da troca de ideologias, representa uma valorização crescente do VT nas igrejas. Por tradição, o Catolicismo preparou os brasileiros para uma postura passiva nos cultos. À medida que essas pessoas migram para igrejas Neo/Pentecostais, com mais participatividade, muitos assumem a função de pregadores leigos que são identificáveis pelo linguajar, roupas, ações. Essa "identidade Cristã" equivale mais ou menos aos homens puros do Templo na época de Jesus.

Não estamos falando de mestres, doutores, Saduceus ou Fariseus, mas dos homens preferidos que formavam a linha de frente gritando “Crucifica-o!” diante de Pôncio Pilatos. Homens corretos, honrados e reconhecidos pelos sacerdotes, que eram chamados a ler as Escrituras nas Sinagogas. As Igrejas Neo/Pentecostais em geral têm esse grupo seleto.

QUASE CRISTÃOS

O grupo são aqueles que proferem mensagens, testemunhos e visões confirmando a mensagem do pastor. São pessoas santas (ou seja, puras), elevadas por obras feitas em acordo com a Igreja. Para um Deus que usou até mulas falantes e um Messias que distribuía graça de graça, aos quatro ventos, o grupo seleto talvez pareça uma boa piada. O Jesus que fisgou seus seguidores entre homens incultos, de fé duvidosa, romanos e mulheres mal-vistas talvez premiasse esse grupinho “santo” com gargalhadas regadas de água feita em vinho. Mas não era assim entre os Judeus: os mais puros e corretos eram dignos de Deus, eram aqueles teoricamente protegidos (na verdade, os Romanos trucidaram todos que não tivessem alguma ligação com eles, em 70 d.C.). Por isso, não seria errado disparatar que a valorização do VT nas Igrejas Neo/Pentecostais está muito em acordo com uma fé Cristojudaica, ao invés de algo Cristão.

No VT, a base da fé era a Lei de Moisés, com preceitos bem específicos. Alguém que os violasse traria desgraça a todo o povo e deveria ser excluído ou morto. Haviam atenuantes muito poderosos, como o próprio Jesus salientava (ex. quando Davi e seus homens comeram os pães do Templo), além dos profetas itinerantes que construíram grande parte da tradição Judaica enfrentando e consagrando reis. Mas esses profetas desapareceram após o Exílio Babilônico, e nem Ageu, Zacarias, Malaquias, Ana, Simeão ou João Batista chegaram a gozar de uma fração do respeito devido a predecessores como Samuel, Natã, Elias, etc. Os últimos profetas tiveram de lidar com reis e sacerdotes mais duros, mais politicamente engajados e atrelados a uma rede de poderes fora do Templo.

No NT, “amar a Deus acima de todas as coisas” representa um compromisso religioso acima de toda autoridade, além de uma busca da imitação de Jesus. No Neo/Pentecostalismo poderia significar instruir-se diretamente com o Espírito Santo. Já “amar o próximo como a si mesmo” conduz, no seu extremo, a um comportamento de cuidado com o outro e busca de igualdade. Na prática, muitas vezes significa auto-sacrifício. A igualdade afrontava Fariseus e Saduceus, assim como era blasfêmia para os Católicos antes do séc. 18 e passou a ser um absurdo leviano para os Neo/Pentecostais mais recentes. O auto-sacrifício, valorizado pelos Católicos na Idade Média (e não depois), ressurgiu entre os Neo/Pentecostais de uma forma tremendamente empresarial: ninguém se sacrifica pelo próximo, isso viola a coletividade, o rótulo. O Cristão se sacrifica pela instituição Igreja, e assim alcança (o rótulo da) graça.

A Lei e a exclusão estão bem presentes nas Igrejas Protestantes atuais; na verdade é o principal motor da cisão de congregações e nascimento de novas denominações Neo/Pentecostais. Os atenuantes são raros, na falta de autoridades religiosas extra-congregação. Os profetas itinerantes existem, mas não com poder. O compromisso religioso foi devotado às Igrejas enquanto rótulos. A imitação de Jesus está fora de moda. O Espírito Santo não se atreve muito a falar fora do culto, salvo em sonhos e visões que são, na verdade, uma combinação do velho e pagão shamanismo (informações vagas recebidas espiritualmente) com o “pensamento positivo” de Schopenhauer***. Amar ao próximo só entre santos e olha lá. Cuidado com alguém e busca de igualdade, logo serão estipulados como crimes contra a meritocracia. Dessa forma, pela negação de quase tudo no Cristianismo bíblico e adoção de vários elementos do VT, será que o NT ainda nos é algo importante?

Os Católicos e Ortodoxos ainda usam o NT, porém com participação mais legislativa do que próxima ao público. Não podemos negar alguns movimentos bastante genuínos (como os Franciscanos) ou bastante controversos (como a Teologia da Libertação). Os Protestantes tradicionais, ao menos no Brasil, se fecharam em seus grupos, às vezes misturados a ou imitando organizações comerciais como a Maçonaria. Os Neo/Pentecostais envolveram-se na mesma estrutura de títulos e influências que caracterizava a Igreja Medieval.

Havendo um Templo de Salomão, estamos no aguardo das piscinas milagrosas e reinício dos sacrifícios animais para espiação.

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¹ O Templo era o centro de culto Judeu, onde o próprio Deus vinha à Terra. O primeiro Templo foi erguido por Salomão antes de 930 a.C. O Templo foi destruído na invasão de Jerusalém por Nabucodonosor em 587 a.C. Mais tarde, quando Ciro o Persa libertou os Judeus, eles reergueram o prédio em 515 a.C., que ficou conhecido como Segundo Templo. Em 167 a.C., durante a invasão dos Gregos, os sacerdotes foram mortos e o Templo foi profanado com uma estátua de Zeus, terminando por ser abandonado. Em 165 a.C., Judas Macabeu, 2º na linhagem que lutava contra o domínio estrangeiro, re-dedicou o Templo. Herodes o Grande, rei da Judéia subordinado a Roma, iniciou obras de expansão do Templo, que terminaram por volta de 19 a.C., quando o prédio ficou conhecido como Templo de Herodes. O edifício foi incendiado e demolido por Roma durante a rebelião da Judéia, em 70 d.C.

O Templo de Salomão brasileiro foi terminado em 2014, sendo a sede mundial da Igreja Universal do Reino de Deus, no bairro do Brás, em São Paulo. Sua construção seguiu as descrições bíblicas do 2º Templo, utilizando pedras vindas de Israel.

² O Judaísmo, como todas as religiões antigas, sofreu grandes transformações ao longo do tempo. Como religião organizada, o Judaísmo surgiu a partir de Moisés (aprox. 1400 a.C.), durante o deslocamento para o sul ao longo do Mar Vermelho, pelo sul das montanhas Sinai e depois para o norte pelo Golfo de Aqaba, na tenda-tabernáculo erguida pelo profeta. O Judaísmo desenvolveu-se mais ou menos em templos independentes, visitados e presididos por profetas itinerantes, em meio às várias religiões de Canaã, até o séc. 7 a.C. Pouco depois que o Judaísmo foi unificado pelos sábios do rei Josias (o que resultou na Torá, ou história), as terras foram tomadas por pelo rei Nabucodonosor, da Caldéia. O retorno dos Judeus sob o governo Persa marcou a organização dos Talmudes (tradição oral = Mishná + discussões dos anciãos = Guemará).

A partir da re-dedicação do Templo em 165 a.C., numa Judéia dominada pelos Gregos, os Judeus se dividiram em grandes clãs: Fariseus (fundamentalistas crentes no Talmude, contrários à adoção de costumes Gregos), Saduceus (fundamentalistas da Torá, rejeitavam o Talmude e eram abertos aos costumes Gregos) e Essênios (devotos de uma vida simples ao extremo e inspirada por visões, como João Batista).

Após a destruição de Jerusalém (70 d.C.), os Fariseus conduziram uma unificação dos Judeus dos diversos clãs, tornando-se muito menos rígidos em prol da preservação de sua cultura dentro do mundo Romano. Esse período dos Rabinos viu a organização de diversas “escolas” de estudiosos voltados a discutir, preservar e estudar os escritos antigos. A Tanakh (Bíblia Judaica) foi organizada até o séc. 5 d.C., quando passou a ser usada também como parte da Bíblia Cristã.

* Jó, Eclesiastes e Ezekiel argumentam contra isso. Jó se apresenta como modelo de pureza e perseverança, enquanto lhe são destinados sofrimentos e o tormento sentencioso dos “amigos”, que o estudam para estabelecer a causa das suas agruras. O Livro de Jó é sobretudo uma peça moral contra as fantasias que possamos fazer a respeito do julgamento de Deus. Eclesiastes, supostamente (mas provavelmente não) escrito pelo rei Salomão, traz uma visão pessimista sobre o quanto tudo é passageiro e pouco proveitoso ao homem. Sendo um livro moral, Eclesiastes anuncia que justos e injustos são agraciados com o que não mereceram, terminando todos com o mesmo fim. Ezekiel (622 a.C. - 570 a.C.) foi um dos profetas deportados na invasão de Jerusalém por Nabucodonosor (os outros foram Isaías, Jeremias e Daniel). Sendo o livro com mais referências geográficas e temporais da Bíblia, o texto filosófico de Ezekiel continuamente questiona Deus: “até quando o ímpio vai prosperar?”.

** Na verdade, o Judaísmo dos Fariseus e Saduceus, na época de Jesus, já se assemelhava ao Neopentecostalismo atual. Os Judeus estavam havia 3 séculos sob domínio estrangeiro e um homem tinha poucas possibilidades de ascensão social a menos que se aliasse aos governos estrangeiros, o que era vergonhoso segundo a lei Mosaica. Por outro lado, a mesma lei expressava que o justo prosperaria. Então, as classes dominantes - aliadas de uma forma ou outra aos estrangeiros - argumentavam por sua prosperidade através de uma pureza que João Batista e Jesus jogavam continuamente em seus rostos.

*** O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) divulgou a idéia de que todo o mundo como o conhecemos é a expressão de uma confusa teia de vontades e pensamentos. Não necessariamente a matéria reflete o que alguém pensa, mas a forma como percebemos a matéria depende desse pensamento. Sua obra “Die Welt als Wille und Vorstellung” (O mundo como vontade e representação) divulgou a idéia de que era possível mudar completamente a nossa visão de mundo através de treinos mentalistas.

Essa filosofia se tornou muito popular no séc. 19, sendo deveras aproveitada por Phineas Parkhurst Quimby (1802 - 1866), um relojoeiro estadounidense que nos anos 1830-1840 ficou famoso por seu trabalho de indução mental terapêutica. Uma de suas aprendizes fundou a Igreja da Ciência Cristã em 1879, dando início a uma sacralização do Pensamento Positivo como forma de oração e, claramente falando, controle da intenção de Deus.

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Arthur Schopenhauer - wikipedia
Bible - wikipedia
Brown W, Early Judaism, Ancient History Encyclopedia, 25out2017
Hanukkah - wikipedia
Pharisees - wikipedia
Phineas Quimby - wikipedia
Old Testament - wikipedia
Oliveira CJ, Costa PC, A cristologia neopentecostal no Brasil pós-moderno: continuidade e ruptura, Tese de doutorado em Teologia na PUC-Rio, 2016
Second Temple - wikipedia
Solomon's Temple - wikipedia
Student G, O que é o Talmud?, chabad.org.br
Tirasarmandinho - facebook.com
Wilson RF, The route of the Exodus, jesuswalk.com

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