Mostrando postagens com marcador prostituição. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador prostituição. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Madalena Arrependida - estudo da personagem

Pinturas evidenciando Maria Madalena. Os símbolos mais comuns associados a ela são a nudez, pintura, jóias e cabelo enfeitado (prostituta), o manto vermelho (riqueza), o frasco (essência de nardo) e o crânio (vida de reclusão).

Maria Madalena é uma personagem curiosa no Cristianismo. Principalmente porque há muitas tradições sobre ela. O sobrenome “Madalena”, na verdade, foi adicionado para indicar seu nascimento na cidade de Magdala, na margem oeste do Mar da Galiléia ou Lago de Tiberíades. Próximo dali ficava a cidade de Cafarnaum, onde Jesus passou um grande tempo. Ela é referida como uma das mulheres que acompanhavam o ministério de Jesus e lhe davam suporte “dos seus recursos”, o que pode significar que não era alguém pobre¹ (Lucas 8.2-3). O mesmo trecho acrescenta que Jesus havia expulsado 7 demônios dela, o que pode indicar a cura de uma doença. Essa última informação, Lucas pode tê-la obtido do texto de Marcos (Marcos 16.3).

Maria Madalena também é relatada como expectadora da Crucificação (junto com João, Maria mãe de Tiago e José (primos de Jesus), Salomé, a esposa de Zebedeu e a esposa de Cleophas, Mateus 27.56, Marcos 15.40, Lucas 23.49, João 19.25). Não bastasse isso, Maria Madalena foi a 1ª testemunha da Ressurreição² (Mateus 29.9, Marcos 16.9, João 20.8-18). As referências a ela nos Evangelhos são tantas que seria fácil cogitar-se uma relação mais íntima entre Jesus e ela do que com outras mulheres.

O historiador bíblico Bart Denton Ehrman ressalta, em alguns trabalhos, que a sociedade judaica desqualificava testemunhos femininos, e uma postura assim foi seguida pelos Cristãos a partir do séc. 2 d.C. Logo, o papel assumido por Maria Madalena nos Evangelhos parece autêntico, ainda que os relatos da Ressurreição tenham sido montados posteriormente, a partir de várias tradições, provavelmente seguindo algo ainda mais breve que o relato de Marcos. Os relatos e crenças populares, no entanto, foram muito além: Maria Madalena foi vista como amante de Jesus, prostituta arrependida, líder de movimentos e visionária. Boa parte desse material apareceu escrito em evangelhos apócrifos escritos do séc. 2 em diante, dos quais pouca informação é consubstanciada pelas Escrituras canônicas (isto é, os livros aceitos para a Bíblia).

MARIA NA ANTIGUIDADE

O Diálogo do Salvador, um texto Gnóstico do séc. 1 recuperado das cavernas de Nag Hammadi, no Mar Morto, apresenta Jesus, Judas Iscariotes, Tomé, Mateus e Maria Madalena em um diálogo. Reparemos nas figuras mal-afamadas: Judas que entregaria Jesus ao Sinédrio, Tomé o apóstolo descrente, Mateus o cobrador de impostos e Maria Madalena dos 7 demônios. Nessa estranha conversa, com Jesus expondo uma filosofia grega sobre o cosmos, algumas falas de Maria Madalena são atribuídas a Jesus, nos Evangelhos. Em outro texto Gnóstico do séc. 2, chamado Pistis Sophia, Jesus responde a perguntas dos apóstolos. A maioria delas vêm de Maria Madalena, a quem Ele se refere como "Maria, abençoada, a quem aperfeiçoarei em todos os mistérios das alturas, fala em franqueza, tu, cujo coração é elevado ao reino dos céus mais do que a todos os teus irmãos" e também "Você é mais abençoada do que todas as mulheres da Terra, porque você será a plenitude da plenitude e a conclusão da conclusão". No Evangelho de Tomé, do início do séc. 2 e semelhante ao de Mateus, Pedro pede que Maria Madalena deixe o grupo, pois as mulheres não eram merecedoras da Vida. Jesus responde: “Eis que eu a conduzirei, para fazê-la em homem, a fim de que ela também possa se tornar um espírito vivo como vocês, homens. Porque toda mulher que se faz homem entrará no reino dos céus”. No Evangelho de Filipe, do séc. 3, aparece: “E a companheira do salvador era Maria Madalena. Cristo amava Maria mais do que todos os discípulos e costumava beijá-la com frequência. Os outros discípulos ficavam ofendidos e expressavam desaprovação. Eles disseram a Ele: ‘Por que você a ama mais ela do que todos nós?’”. A resposta de Jesus é bastante obscura: “Quando um homem que vê e um cego estão nas trevas, eles são iguais. Mas quando a vem a luz, aquele que enxerga vê a luz, e o cego permanece nas trevas”.

Essas obras do início da Cristandade, algumas bem curtas, de formas diferentes (e às vezes bizarras) são concordantes com o fato de que Maria Madalena desempenhou um papel significativo, geralmente associado a um conhecimento especial sobre Jesus. Essa participação, não relatada nos textos canônicos, teria se dado pessoalmente (dando suporte e acompanhando Jesus) ou no imaginário das 1as comunidades Cristãs. Talvez a obra mais expressiva sobre isso seja o Evangelho de Maria [Madalena], um texto inteiro do séc. 2 sobre essa personagem. O início do texto é sobre as obras de Jesus após a Ressurreição; o restante é um diálogo entre Maria Madalena e os apóstolos, com a exposição (por Maria Madalena) de toda uma cosmogonia Gnóstica e debates sobre a escolha dela como a portadora dos ensinamentos de Jesus. Curiosamente, a outra Maria (mãe de Tiago e José, os primos de Jesus) também esteve na Crucificação e no túmulo de Jesus, mas não ganhou qualquer importância religiosa.

O teólogo Origen de Alexandria (184-253 d.C.) escreveu a respeito de uma crença difundida de que o testemunho de Maria Madalena seria uma fábula, contrastando isso com a descrição de Mateus onde Maria Madalena e a Maria mãe de Tiago e José são recepcionadas, na tumba, por um anjo radiante (Mateus 28). Por outro lado, a igreja de Dura-Europos (233-256 d.C.), na Síria, a construção Cristã mais antiga conhecida, retrata a cena de Marcos 16 com Maria Madalena e mais 2 mulheres indo ao túmulo de Jesus para encontrar um anjo de branco. Na cena retratada, a tumba está fechada. Esses relatos mostram que, embora os Gnósticos tenham fantasiado muito sobre Maria Madalena, até o séc. 3 d.C. não era costume da Igreja falar sobre ela mais do que expresso nas Escrituras.

A CRIAÇÃO DA PROSTITUTA

No séc. 2 d.C., o teólogo Tertuliano, na cidade romana de Cartago, norte da África, escreveu muito sobre as mentiras nas publicações Gnósticas. Ele usou a sensibilidade de Jesus ao toque da mulher pecadora, em Lucas, para afirmar que Cristo não era de qualquer forma imaterial, mas um ser humano. Em seu tratado, ele chama essa mulher de Madalena.

Um dos fariseus convidou-o para jantar com ele. Jesus, entrando na casa do fariseu, tomou lugar à mesa. Havia na cidade uma mulher que era pecadora; ela, sabendo que ele estava jantando na casa do fariseu, trouxe um vaso de alabastro com perfume e, pondo-se-lhe aos pés, chorando, começou a regá-los com lágrimas, e os enxugava com os cabelos da sua cabeça, e beijava-lhe os pés e ungia-os com o perfume. (Lucas 7.36-38)

Não há qualquer ligação entre o texto bíblico e Maria Madalena, de forma que Tertuliano já devia ser influenciado por uma tradição dentro da Igreja. No início do séc. 3 d.C., o teólogo Hippolytos, em Roma, também escreveu contra as heresias e acomodação de crenças pagãs dentro do Cristianismo. Em um sermão, ele mistura Maria Madalena, Maria de Betânia (Lucas 10.39, João 12.3) e a Sulamita procurando seu esposo (ver O Cântico da Sulamita) na cena de João 20, onde Maria Madalena pensa que Jesus ressuscitado é o jardineiro. Essa fusão de figuras bíblicas mostra uma tendência comum dessa época, que produzia personagens ricos e impressivos, mas difíceis de discutir a partir das Escrituras. No caso, temos uma Maria Madalena fictícia, apaixonada por Jesus, emocionada ao vê-lo como a pessoa mais valiosa de todas. No séc. 4 d.C., essa fusão de personagens já havia produzido, num hino composto por Ephraim, da Síria, uma mistura elaborada da Maria de Betânia e Maria Madalena:

Pelo óleo, Maria, de quem sete demônios saíram, mostra o mistério de Sua mortalidade, que pelo Seu ensino mortificou a concupiscência de sua carne. Então, a mulher pecadora, pelo fluxo de suas lágrimas, foi recompensada com a remissão dos pecados junto aos Seus pés

Essa imagem foi difundida dentro da Igreja, como um exemplo da mulher pecadora arrependida. A “concupiscência de sua carne” já era uma visão de Maria Madalena como prostituta, devido à fama de sua cidade³. Alguns teólogos discordavam dessa fusão de personagens, como Ambrósio, bispo de Milão no séc. 4 e seu aluno Santo Agostinho, bispo de Hippona Regia, norte da África, no início do séc. 5. Mas a criação da “Madalena prostituta” em grande parte é atribuída à Homilia 33 do papa Gregório I, publicada no final do séc. 6:

Sempre que pondero o espírito penitencial de Maria Madalena, sinto mais vontade de chorar do que de falar. Pois as lágrimas desta mulher pecaminosa amolecerão até mesmo um coração de pedra, em direção à ideia de fazer penitência. Tendo refletido sobre o que ela havia feito, ela não queria estabelecer limites para o que deveria fazer. Ela entrou, sem ser convidada, depois que a refeição começou, e trouxe suas lágrimas ao banquete. Veja com que dor ela devia queimar, quando ela não teve vergonha de chorar nem mesmo em um banquete.

Aquela que Lucas chama a mulher pecadora, a quem João chama Maria, acreditamos ser a Maria de quem sete demônios saíram, de acordo com Marcos. O que esses sete demônios significam, se não todos os vícios? É claro que a mulher usou anteriormente o unguento para perfumar sua carne em atos proibidos. O que ela mostrou, portanto, mais escandalosamente, ela agora estava se oferecendo a Deus de uma maneira mais louvável. Ela cobiçou com os olhos terrenos, mas agora através da penitência eles são consumidos pelas lágrimas. Ela usou o cabelo para enfeitar o rosto, mas agora seu cabelo seca as lágrimas. Ela falou coisas orgulhosas com a boca, mas beijando os pés do Senhor, ela agora plantou a boca nos pés do Redentor. Para cada deleite, portanto, que ela tinha em si mesma, agora ela se imolava. Ela transformou o número de seus crimes em virtudes, a fim de servir a Deus inteiramente em penitência”. (Homilia* XXXIII)

Nesse texto, o papa descaradamente mistura as figuras de Maria Madalena e mulher pecadora de Lucas, atribuindo a esta última a imagem de prostituta. Após a fragmentação de Roma Ocidental (490 d.C.), foi essa a imagem difundida entre o clero. É interessante que os Cristãos de Roma Oriental (Bizâncio) e do norte da África jamais associaram as imagens da várias Marias para criar as personagens do Ocidente. Assim, é possível que tal processo combinatório tenha a ver com a diminuição de uso da escrita no Ocidente e o fortalecimento das tradições orais durante a Idade Média.

DETALHES FABRICADOS E REVELADOS

Pouco antes do início das Cruzadas (1095), os pequenos reinos pagãos-cristãos da Europa começaram a se tornar militarmente fortes. Os primeiros a exibir essa tendência foram os Vikings, nas atuais Noruega, Suécia e Dinamarca. À medida que o Cristianismo se difundia, encontrou caminho entre a nova nobreza pós-romana. Uma vez que a nova sociedade estava radicalmente organizada em torno de famílias reais ricas e poderosas, senhoras de terras e de homens, os personagens bíblicos adquiriram ares da nobreza. No final do séc. 9 já existiam contos sobre uma Maria Madalena riquíssima, descendente de famílias nobres que governavam Magdala e Betânia! Após ter cometido adultério contra seu poderoso esposo, ela se retirara para viver em um mosteiro, na floresta ou no deserto, dependendo da tradição. Por isso as pinturas dessa época a retratam cheia de jóias e geralmente contemplativa ou lendo a bíblia, em um cárcere ou área natural.

Maria Madalena, por El Greco, 1580. Repare a cena de montanha, com um deserto e tendas atrás, além dos tradicionais objetos-símbolos.

MODERNIDADE TRANSVIADA

O relato mais fabuloso sobre Maria Madalena vem de “A Lenda Dourada”, uma coleção de histórias de santos medievais compilada por volta de 1260 pelo escritor italiano e frade dominicano Jacobus de Voragine. Neste relato, Maria Madalena é "fabulosamente rica, insanamente bela e escandalosamente sensual", mas desiste de sua vida de riqueza e pecado para se tornar uma seguidora de Jesus. Após a Crucificação, os judeus jogam Maria Madalena (e de Betânia também), seu irmão Lázaro, os futuros santos Maximin e Cedônio num barco sem leme no Mar Mediterrâneo, para morrerem. O barco desemboca em Marselha, no sul da França, onde Maria Madalena convence o governador da cidade a se converter ao Cristianismo. Ela prova ao governador o poder de Cristo orando para sua esposa ficar grávida. O governador e sua esposa viajam para Roma encontrar o apóstolo Pedro, mas seu navio é atingido por uma tempestade. A esposa morre no parto e ele a deixa em uma ilha com o bebê ainda vivo em seu peito, recuperando-o (ainda amamentado) ao voltar para a mesma ilha 2 anos depois. A esposa do governador ressuscita e diz a ele que Maria Madalena a trouxe de volta. Em Marselha, os anjos haviam passado os últimos 30 anos levando-a para ouvir suas canções no céu.

Por volta do séc. 16, a Reforma Protestante viu nos pecados sexuais um inimigo a ser combatido e a penitente Maria Madalena servia bem a esse propósito. Martinho Lutero, famoso iniciador da Reforma, não apenas reforçava que as 3 Marias (Maria Madalena, Maria de Betânia e a pecadora que entrou na casa do fariseu) eram a mesma Maria Madalena, como identificava essa figura também com a mulher adúltera que Jesus protegeu (João 8.3-11). Lutero ia até mais longe, afirmando que Jesus haveria pecado com Maria Madalena, culminando na famosa cena do “Não me toques!” (João 20.17). Embora os textos Gnósticos não tenham chegado até a Alemanha para influenciarem alguma coisa, não se pode descartar que a motivação de Lutero e dos Gnósticos tenha sido a mesma. Nos tempos de Lutero ainda, a separação entre Católicos e Protestantes era um tema religioso, político e muito delicado. Lutero, em seus escritos, optou por não duvidar de uma autoridade como Gregório I. Apesar dessa ideia forjada sobre Maria Madalena, a penitente ou arrependida, os Protestantes lutaram tanto contra os culto de Maria que vigorava na Igreja Católica que as referências a ela quase desapareceram.

Enquanto isso, uma pregação que se tornou muito comum nas missas católicas e em alguns cultos protestantes foi a comparação de Maria, mãe de Jesus, pobre e virgem, com a Maria Madalena, adúltera, prostituta e rica. Principalmente no séc. 18, muitos textos religiosos usavam essa imagem para identificar Cristo como um unificador de ricos e pobres, santos e pecadores. A partir do séc. 19, com a descoberta e tradução dos textos Gnósticos preservados em jarros nas cavernas do Mar Morto, diversos grupos Cristãos novamente aderiram a uma “verdade escondida pela Igreja” onde Maria Madalena ressurgiu como uma concubina ou mesmo esposa secreta de Jesus, portadora de ensinamentos secretos.

A Igreja Ortodoxa sustenta que a Maria Madalena foi para a cidade grega de Éfeso, no litoral mediterrâneo da atual Turquia, com Maria mãe de Jesus. Lá ela viveu e morreu, e seus ossos foram levados para Constantinopla em 886, onde ainda estão. A Igreja Católica sustenta outra versão, menos fabulosa que a do séc. 13, onde Maria Madalena, irmã de Lázaro, Marta e Lázaro, com alguns outros discípulos, foram expulsos pelos judeus depois da Ascensão de Cristo. Eles foram postos no mar Mediterrâneo num barco sem remos nem velas, que a correnteza levou em segurança até Marselha, no sul da França. Lá eles fundaram uma igreja, da qual Lázaro se tornou bispo. Sua pregação converteu ao Cristianismo toda a região de Provença, antes território pagão. Maria Madalena se retirou para uma colina próxima, em La Sainte-Baume, onde se entregou a uma vida de penitência durante 30 anos. A igreja local guarda como relíquia um crânio, preservado dentro de uma caixa com armações de ouro, que afirma ser de Maria Madalena.

-------------------------------

Obs. Nesse texto, foram usados links da versão wikipedia da Tradução Brasileira da Bíblia.

¹ Há muitos mistérios sobre a divisão de funções segundos os sexos, no início da Cristandade. Embora pensemos numa sociedade judaica muito patriarcal, Jesus teve seus maiores diálogos com mulheres. Uma sinagoga em Aphrodisias, na atual Turquia, listava muitas mulheres entre seus contribuidores. Também, a primeira revelação de Jesus após sua ressurreição foi para uma mulher. E o livro de Atos se refere a algumas comunidades Cristãs lideradas por mulheres. Embora todos esses sinais falem em favor de uma equidade entre os sexos, nenhum pronunciamento de Jesus abordou essa temática ou sequer uma mulher é listada entre os que receberam a missão de propagar o Evangelho.

² Há várias divergências quanto ao enterro de Jesus e a Ressurreição. Paulo, por exemplo, escreve que “[Jesus] foi ressuscitado ao terceiro dia segundo as Escrituras, e apareceu a Cefas e então aos doze. Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maior parte permanece até agora, mas alguns já dormiram. Depois apareceu a Tiago, então a todos os apóstolos, por último de todos apareceu também a mim, como a um abortivo” (1ª Coríntios 15.4-8). Essa descrição é importante porque data de antes da elaboração dos Evangelhos. Lucas, que seguia Paulo e escreveu muitas de suas estórias, também não relata a aparição para as mulheres. Segundo ele, Jesus se manifestou primeiro para Cleophas e um amigo Cristão, que caminhavam na estrada de Emaús (Lucas 24).

³ A Igreja desde cedo descreveu Magdala como uma cidade de prostituição, mas não há evidências refutando ou confirmando isso. Magdala era uma cidade próspera na margem do lago de Tiberíades, entre os sécs. 2 a.C. e 3 d.C. Referências antigas citam a fartura de peixes no porto de Magdala. Até a construção da cidade de Tiberíades, no tempo de Jesus, Magdala era o principal posto administrativo de Roma na região e funcionava como um centro de controle das mercadorias sendo transportadas entre a Galiléia e a Judéia, que depois empobreceu pelo deslocamento das autoridades romanas para a cidade vizinha. Lá foi descoberta a mais antiga sinagoga da Galiléia, construída por volta de 50 a.C. e também foi a cidade natal do famoso historiador judeu-romano Flavius Josephus. Sendo uma cidade portuária, era provável que sediasse muitas prostitutas, como as demais cidades portuárias romanas. Josephus descreve que Magdala foi arrasada pelos romanos durante a rebelião de 67 d.C., pouco antes que Jerusalém também fosse destruída, mas escavações recentes mostram que a cidade continuou funcionando por pelo menos mais 200 anos.

* Homilia é uma palavra derivada do latim que significa “conversa”. No Catolicismo, mais precisamente, trata-se de uma interpretação bíblica elaborada ou lida durante a Missa.

-------------------------------

ESCRITOS LENDÁRIOS

Althaus-Reid M, Liberation Theology and Sexuality, SCM Press, 2009
Devotion to our lady, devotiontoourlady.com
Dura Europos church - wikipedia
Emmel S, Dialogue of the savior, earlychristianwritings.com
Garza-DiazB A, The archaeological excavations at Magdala, ancient.eu, 19abr2018
Gospel of Philip - wikipedia
Gospel of Mary - wikipedia
Henderson JF, The disappearance of the feast of Mary Magdalene from the Anglican liturgy, .jfrankhenderson.com, 2004
Magdala - wikipedia
Mary Magdalene - wikipedia
Saint Louis Community College, Dura Europos - Christian house church, 2014
Symbols of Saint Mary Magdalene, http://biblesaints.blogspot.com, 5nov2011
Was Mary Magdalene wife of Jesus? Was Mary Magdalene a prostitute?, biblicalarchaeology.org, 17mar2018
Witcombe CLCE, Investigating Mary Magdalen, Pope Gregory the Great's homily 33 and the identification of Mary Magdalen as a prostitute, http://arthistoryresources.net, 2015

domingo, 19 de maio de 2013

Sodomia & Gomorria

Ló e sua família são retirados de Sodoma por anjos

Duas cidades se tornaram símbolos da ira divina e até hoje inspiram a imaginação das pessoas: Sodoma e Gomorra, símbolos da ira divina. Aqui vamos discutir um pouco sobre o que levou essas cidades à destruição e o que elas representavam para o Oriente Médio, na época em que existiram.

A primeira referência às cidades aparece no começo do livro de Gênesis, logo após Abraão e Ló dividirem entre si as terras vizinhas ao rio Jordão.

E aconteceu nos dias de Anrafel, rei de Sinar, Arioque, rei de Elasar, Quedorlaomer, rei de Elão, e Tidal, rei de Goim, que estes fizeram guerra a Bera, rei de Sodoma, a Birsa, rei de Gomorra, a Sinabe, rei de Admá, e a Semeber, rei de Zeboim, e ao rei de Belá (esta é Zoar). Todos estes se ajuntaram no vale de Sidim (que é o Mar Salgado).

Doze anos haviam servido a Quedorlaomer, mas ao décimo terceiro ano rebelaram-se. E ao décimo quarto ano veio Quedorlaomer, e os reis que estavam com ele, e feriram aos refains em Asterote-Carnaim, e aos zuzins em Hã, e aos emins em Savé-Quiriataim, e aos horeus no seu monte Seir, até El-Parã que está junto ao deserto. Depois tornaram e vieram a En-Mispate (que é Cades), e feriram toda a terra dos amalequitas, e também aos amorreus, que habitavam em Hazazom-Tamar.

Então saiu o rei de Sodoma, e o rei de Gomorra, e o rei de Admá, e o rei de Zeboim, e o rei de Belá (esta é Zoar), e ordenaram batalha contra eles no vale de Sidim, contra Quedorlaomer, rei de Elão, e Tidal, rei de Goim, e Anrafel, rei de Sinar, e Arioque, rei de Elasar; quatro reis contra cinco.

E o vale de Sidim estava cheio de poços de betume; e fugiram os reis de Sodoma e de Gomorra, e caíram ali; e os restantes fugiram para um monte. E tomaram todos os bens de Sodoma, e de Gomorra, e todo o seu mantimento e foram-se. Também tomaram a Ló, que habitava em Sodoma, filho do irmão de Abrão, e os seus bens, e foram-se. (Gn 14.1-12)

Trata-se de uma cena de guerra ocorrida por volta de 3000 a.C. O território ao redor do Jordão era povoado por pastores e agricultores que habitavam vilas sob o domínio ou ao redor de cidades-estado rodeadas por muralhas. Várias delas são citadas nesse trecho. Sodoma, Gomorra, Admá (ou Adamá), Zeboim e Belá (Zoar) eram as chamadas cidades da planície, uma faixa de terra muito fértil e irrigada ao redor do Mar Morto (ou também Mar Salgado). Aparentemente, as cidades-estado exerciam poder político umas sobre as outras, o suficiente para que 4 delas se rebelassem contra a principal (Elão), que também reuniu seus aliados. Como a disputa se deu nas terras de pastoreio que couberam a Ló (isto é, o leste do Jordão), ele foi feito refém dessa guerra.

Anrafael é apontado pelos arqueólogos como Amirapaltu ou também Kamu-rabi, um dos grandes reis que iniciaram a unificação da Babilônia, então repartida em muitos pequenos reinos. Outros reis na região eram Khudur-Lagamar ("servo da deusa Lagamar" ou Quedorlaomer), Eri-Aku (Arioque) e Tudkhula (Tidal). Eles já haviam conquistado os Refains, Zuzins e Emins, tidos como povos de gigantes guerreiros. Aparentemente, os reis das cidades da planície rebelaram-se contra os reis babilônicos (leia-se deixaram de pagar-lhes tributos) e estes chegaram ao Jordão para reafirmar seu poder capturando as cidades rebeldes.

Abraão aparece com um exército para afastar os babilônicos, juntando suas forças com o rei de Sodoma, provavelmente a cidade mais poderosa da planície. Temos aí o aparecimento de Melquisedeque, rei de Salém (provavelmente um aliado do oeste do Jordão), a quem o poderoso Abraão entrega o primeiro dízimo registrado na Bíblia. A passagem citando o conflito de poderes, entretanto, não dá a entender sobre os usos e costumes nas cidades da planície, onde Ló (outro líder tribal) habitava com sua família (ou clã, o que pode significar centenas de pessoas).

ONDE FICAVAM AS CIDADES

As cidades da planície eram tidas como plantadas em terreno muito fértil, que Ló preferiu para si quando repartiu as terras com Abraão.

Olhou então Ló e viu todo o vale do Jordão, todo ele bem irrigado, até Zoar; era como o jardim do SENHOR, como a terra do Egito. Isto se deu antes de o SENHOR destruir Sodoma e Gomorra. Ló escolheu todo o vale do Jordão e partiu em direção ao leste. (Gn 13.10)

A Bíblia sem dúvida dá vários indícios de onde as cidades situavam-se ao redor do Mar Morto:

[Os anjos instruem a Ló] E aconteceu que, tirando-os fora, disse: Escapa-te por tua vida; não olhes para trás de ti, e não pares em toda esta campina; escapa lá para o monte, para que não pereças. (Gn 19.17) [ou seja, Sodoma - a cidade principal do vale de Sidim - ficava na planície, perto das montanhas]

Ló partiu para as montanhas e... “Apressa-te, escapa-te para ali; porque nada poderei fazer, enquanto não tiveres ali chegado. Por isso se chamou o nome da cidade Zoar. Saiu o sol sobre a terra, quando Ló entrou em Zoar.” (Gn 19.22-23). Essa cidade existe até hoje, no sul do Mar Morto. Então Sodoma deveria estar a oeste dela. Abraão podia observar Sodoma de onde estava fixado, logo, era preciso que a cidade ficasse numa altitude bem abaixo das colinas de Samaria.

Grande parte da dificuldade em se localizar hoje os restos dessas cidades da Era do Bronze (3500-2000 a.C.) está no fato de que o relevo e o clima mudaram bastante no Oriente Médio. Alguns locais submergiram sob o mar, outros eram vales férteis e hoje são parte de desertos. Rios a que os textos se referem mudaram seu curso ou desapareceram. No caso das cidades da planície, a periferia do Mar Morto mudou bastante: o Mar Morto, localizado sobre uma falha tectônica, era bem menos baixo (~ 300 m abaixo do nível do mar) do que é hoje.

Buscando vestígios de cidades na região ao redor do Mar Morto, várias ruínas soterradas foram encontradas. Como a água do Mar Morto não serve para consumo, especula-se que as cidades da planície abasteciam-se da água de vários ribeiros com 20-50 Km de extensão (dos quais só restam os leitos secos) que desciam das colinas de Moab. As cidades-ruína encontradas foram chamadas de Bab-edh-dhra (provavelmente Sodoma), Numeira (provavelmente Gomorra), Safi, Feifa e Khanazir. Despejando sedimentos no solo rico em minerais das margens do Mar Morto, os ribeiros devem ter feito da planície um terreno muito fértil, talvez até “como o jardim do Senhor”. Numa sociedade movida pelo pastoreio e cultivo de grãos, seria equivalente as cidades da planície eram a região mais rica de Canaã. As pesquisas no local encontraram, na mesma profundidade onde estão os restos da cidade, vestígios fossilizados de cevada, trigo, uvas, figos, linho, grão de bico, ervilhas, favas e azeitonas.


Cidades ancestrais e os rios fósseis que as abasteciam

Sodoma era a maior das cidades, e se a nomeação das ruínas está correta, ela ocupava uma área de 9-10 acres (~ 40 Km², ou a área da cidade de Palmas, capital de Tocantins), cercada por muralhas de pedra com 7 m de espessura. A população devia ser de aproximadamente 1000 pessoas. No lado nordeste, foram encontrados os restos do que devia ser o portal da cidade, guardado por duas torres de vigia, que davam acesso à muralha: "E vieram os dois anjos a Sodoma à tarde, e estava Ló assentado à porta de Sodoma; e vendo-os Ló, levantou-se ao seu encontro e inclinou-se com o rosto à terra" (Gn 19.1).

O imenso cemitério entre Sodoma e Gomorra e os restos miscigenados de cerâmica no local dão a entender que era uma área comum usada pelas várias cidades para seus funerais.

COM O QUE SE PARECE A IRA DE DEUS

Então o SENHOR fez chover enxofre e fogo, do SENHOR desde os céus, sobre Sodoma e Gomorra, e destruiu aquelas cidades e toda aquela campina, e todos os moradores daquelas cidades, e o que nascia da terra. E a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal. Abraão levantou-se aquela mesma manhã, de madrugada, e foi para aquele lugar onde estivera diante da face do SENHOR. Olhou para Sodoma e Gomorra e para toda a terra da campina; e viu que a fumaça da terra subia, como a de uma fornalha. (Gn 19.24-28)

De fato, as escavações arqueológicas descobriram que as cidades mais ao norte da planície foram destruídas quase simultaneamente por volta de 2350 a.C., ao que parece, em um fantástico incêndio. A ira divina pode ter vindo sobre as cidades segundo o comentário de Gênesis sobre a batalha contra os babilônicos: "Ora, o vale de Sidim era cheio de poços de betume e, quando os reis de Sodoma e de Gomorra fugiram, alguns dos seus homens caíram nos poços e o restante escapou para os montes" (Gn 14.10).

O betume é uma forma “inacabada” de petróleo, e os poços de betume são conhecidos por expelir gás metano. Tanto o gás quanto o betume são muito inflamáveis, então uma"centelha divina" poderia  transformar em enorme fogueira toda aquela região. Além disso, lembrando que o vale do Jordão está sobre uma falha tectônica, a ocorrência de terremotos ali é bem comum, e existem pesquisadores que acreditam na devastação das cidades por um tremor simultaneamente com o incêndio. É possível que uma quantidade de magma tenha vindo à superfície, incendiando os poços de betume ou fazendo jorrar betume em chamas para o alto e sobre as cidades.

Hoje, as ruínas das cidades da planície “aparecem” às margens do Mar Morto, abaixo de quase 1 m de sedimentos. Com a aridez aumentando e elevação do terreno ao longo dos milênios, os ribeiros que vinham de Moab cessaram de fluir e o Mar Morto esticou suas bordas por uma área maior e também ao sul, tragando o que restou das cidades queimadas. O número considerável de esqueletos encontrados sugere que a população não deve tempo de escapar do desastre: como na famosa erupção do Vesúvio que destruiu a cidade de Pompéia, os habitantes das cidades da planície foram carbonizados junto com as cidades, enquanto Abraão observava estarrecido, do outro lado do Mar Morto, nas colinas de Hebron.

O Alcorão (~600 d.C.) traz uma versão semelhante da destruição de Sodoma, reforçando a hipótese de uma explosão vulcânica. No texto, os anjos que retiraram Ló e sua família explicam-se:

E quando se cumpriu o Nosso desígnio, reviramos a cidade nefasta e desencadeamos sobre ela uma ininterrupta chuva de pedras de argila endurecida (sura 11.82)

Então, destruímos os demais, e desencadeamos sobre eles um impetuoso torvelinho; e que péssimo foi o torvelinho para os admoestadores (que fizeram pouco caso)! (sura 26.172-173)

E desencadeamos sobre eles uma tempestade. E que péssima foi a tempestade para os admoestados! (sura 27.58)

COMO ATRAIR A IRA DIVINA

Quando Deus anuncia a Abraão que destruiria Sodoma e Gomorra, onde Ló (e seu clã) havia ido morar, Ele diz que passaria pelas cidades em pessoa para ver se o que falavam delas era verdade:

As acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas e o seu pecado é tão grave que descerei para ver se o que eles têm feito corresponde ao que tenho ouvido. Se não, eu saberei”. (Gn 18.20)

Bem, sabemos o final dessa “inspeção divina”. O livro de Gênesis não dá evidências claras sobre o que se dava de tão terrível nas cidades da planície. No entanto, em suas visões o profeta Ezequiel cita as cidades para compará-las à Jerusalém que o Senhor também castigaria:

[Jerusalém, ] sua irmã mais velha era Samaria, que vivia ao norte de você com suas filhas; e sua irmã mais nova, que vivia ao sul com suas filhas, era Sodoma. Você não apenas andou nos caminhos delas e imitou suas práticas repugnantes, mas em todos os seus caminhos logo você se tornou mais depravada do que elas. Juro pela minha vida, palavra do Soberano Senhor, sua irmã Sodoma e as filhas dela jamais fizeram o que você e as suas filhas têm feito. Ora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: Ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados. Eram altivas e cometeram práticas repugnantes diante de mim. Por isso eu me desfiz delas conforme você viu. (Ez 16.46-50)

Dessa forma, o terrível pecado das cidades parece estar ligado à falta de generosidade e arrogância. Sodoma é citada no livro judaico chamado de Mishnah (que significa estudo, revisão). Esse livro é uma versão escrita das tradições orais no tempo dos fariseus (530 a.C. - 70 d.C.). O livro foi escrito pelo rabino Yehudah haNasi por volta de 220 d.C. Nele, encontramos

Há quatro tipos entre os homens: Aquele que diz: "O que é meu é meu e o que é seu é seu" - este é o tipo mais comum, embora alguns digam que este é o tipo de Sodoma. Aquele que diz: "O que é meu é teu e o que é teu é meu" - ele é um homem ignorante. Aquele que diz: "O que é meu é teu e o que é teu é teu" - ele é um homem santo. E aquele que diz: "O que é seu é meu, e o que é meu é meu" - ele é um homem mau. (Pirkei Avot, cap. 13)

Daí, podemos mais uma vez inferir que Sodoma e Gomorra eram cidades de egoísmo abundante. Além disso, os povos semitas valorizam por demais a lei de hospedagem, isto é, a necessidade de acolher bem aos viajantes que chegam na casa de alguém. Isso aparece implicitamente por toda a Bíblia (como por exemplo em Ex 22.21), com os espias de Josué sendo acolhidos na casa de Raabe (Js 2.1), José e Maria sendo acolhidos em um estábulo, quando não encontraram lugar para pernoitar (Lc 2.7), Jesus sendo acolhido por Zaqueu (Lc 19.5) e Paulo por Judas de Damasco (Atos 9.11). O Alcorão igualmente valoriza essa prática. Por outro lado, quando os anjos apareceram a Ló na porta de Sodoma e foram acolhidos por ele, os habitantes da cidade que os viram logo organizaram uma milícia para violentar ou humilhar os visitantes, como se fazia com os vencidos numa guerra.

Os dois anjos chegaram a Sodoma ao anoitecer, e Ló estava sentado à porta da cidade. Quando os avistou, levantou-se e foi recebê-los. Prostrou-se, rosto em terra, e disse: "Meus senhores, por favor, acompanhem-me à casa do seu servo. Lá poderão lavar os pés, passar a noite e, pela manhã, seguir caminho. Não, passaremos a noite na praça", responderam. Mas ele insistiu tanto com eles que, finalmente, o acompanharam e entraram em sua casa. Ló mandou preparar-lhes uma refeição e assar pão sem fermento, e eles comeram. Ainda não tinham ido deitar-se, quando todos os homens de toda parte da cidade de Sodoma, dos mais jovens aos mais velhos, cercaram a casa. Chamaram Ló e lhe disseram: "Onde estão os homens que vieram à sua casa esta noite? Traga-os para nós aqui fora para que tenhamos relações com eles". Ló saiu da casa, fechou a porta atrás de si e lhes disse: "Não, meus amigos! Não façam essa perversidade! (Gn 19.1-7)

Ló não era natural da cidade, mas de repente teve de se confrontar com uma prática daquele povo que todos os semitas abominariam. Muitos teólogos associam aqui uma prática homossexual disseminada em Sodoma, o que certamente não parece ser o caso, dada a atitude de Ló, inconcebível nos dias de hoje:

"Não, meus amigos! Não façam essa perversidade! Olhem, tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las para que vocês façam com elas o que bem entenderem. Mas não façam nada a estes homens, porque se acham debaixo da proteção do meu teto". (Gn 19.7-8)

A ABOMINAÇÃO DE SODOMA

Não há dúvidas de que o extermínio das cidades da planície foi um evento genocida, ou seja, com o objetivo de destruir todo um povo com determinada característica que o Senhor achou extremamente nociva ao seu povo, que começava a crescer no lado oeste do Jordão. A destruição de Sodoma e Gomorra (e demais cidades vizinhas, com exceção de Zoar) foi o 2º evento mais destrutivo da história bíblica, perdendo apenas para o Dilúvio.

As cidades da planície ficavam em território dos Cananeus (descendentes de Canaã, neto de Noé). Os Cananeus habitaram a região entre o Mediterrâneo e o vale do Jordão de 8000 a 1000 a.C., sendo conhecidos a partir de 4000 a.C. como comerciantes de azeite, vinho, pistache, trigo e cevada. Entre os principais povos com os quais se relacionavam estavam o Egito e a Suméria, que compravam tinturas de conchas. As escavações arqueológicas na região revelaram bastante sua cultura: os deuses principais eram Baal (senhor dos montes) e Astarte (a deusa da fertilidade, conhecida como Ishtar entre outros povos). Baal era retratado como um jovem guerreiro e vingador, geralmente segurando uma lança. Astarte era descrita como uma mulher sedutora, geralmente de quadris largos e seios grandes, às vezes também uma grávida.

Os cultos de Baal eram realizados ao redor de pilares sagrados nos montes (Jz 2.13, 1Rs 11.5), com o sacrifício de animais como oferenda, a exemplo do que os hebreus faziam. No entanto, entre os restos de sacrifícios foram encontrados ossos de porcos, um animal tido como imundo pelos hebreus, e também restos de crianças. Os animais e as crianças tinham seu sangue recolhido em reentrâncias com formato e tamanho de xícaras ao redor dos pilares, e depois eram enterrados ao redor deles. Já os cultos de Astarte eram realizados em templos, onde sacerdotisas e sacerdotes separados se ofereciam à prática de relações sexuais com o objetivo de produzir a reprodução dos animais e das plantas sobre a terra. Curiosamente, o povo Cananeu originalmente adorou a Javé, constituindo um contraponto aos Sumérios na região. Com o passar do tempo, entretanto, absorveram deuses Sumérios e elaboraram suas próprias divindades pagãs (isto é, ligadas à terra).

Os Cananeus também tinham lugares de adivinhação, como os gregos. Eram basicamente cavernas com espaço para 1 ou 2 pessoas, as quais se comunicavam por orifícios na pedra com outras cavernas vizinhas ocupadas pelos sacerdotes ou adivinhos. Dessa forma, as vozes dos adivinhos pareciam vir da própria terra! Vários lugares assim foram encontrados na Grécia e também em Canaã, assim como nas bordas da planície ao redor do Mar Morto, muitas vezes com objetos rituais deixados em seu interior.

O profeta Ezequiel usa a palavra “abominação” especialmente para definir os ídolos que existiam em toda terra de Canaã. Aparentemente, esse desvio de um povo originalmente ligado aos hebreus foi o que despertou a ira do Senhor, de forma semelhante ao que aconteceria mais tarde no Êxodo, quando os hebreus passaram a cultuar o deus-boi Ápis, do Egito, fazendo-lhe um ídolo revestido de ouro (Ex 32.1-6).

O texto de Judas dá uma referência diferente ao pecado de Sodoma e Gomorra:

Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram; e aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia; assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno. (Jd 1.5-7)

Aqui, Judas Tadeu, um dos apóstolos, dá a entender que grandes motivos de condenação ao inferno eram a vinda de anjos à Terra para se relacionarem com humanos (Gn 6.1-7) e a fornicação (também traduzida como prostituição) de Sodoma e Gomorra, que “foram após outra carne”. Na Bíblia, o termo “prostituição” é ligado ao ato sexual, mas também fortemente ligado à idolatria:

E sucedeu que, como Gideão faleceu, os filhos de Israel tornaram a se prostituir após os baalins; e puseram a Baal-Berite por deus. (Jz 8.33)

Quando alguém se virar para os adivinhadores e encantadores, para se prostituir com eles, eu porei a minha face contra ele, e o extirparei do meio do seu povo. (Lv 20.6)

Disse mais o SENHOR nos dias do rei Josias: Viste o que fez a rebelde Israel? Ela foi a todo o monte alto, e debaixo de toda a árvore verde, e ali andou prostituindo-se. (Jr 3.6)

O fato de “ir após outra carne” pode ter muitas interpretações, mas considerando-se as falas de Jesus, podemos entender que se trata de acreditar em homens e não em Deus, os tais “adivinhadores” que conduziam os homens e eram comuns nas cidade da planície, enfurecendo o Senhor: "Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens. E, chamando a si a multidão, disse-lhes: Ouvi, e entendei: O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem. Então, acercando-se dele os seus discípulos, disseram-lhe: Sabes que os fariseus, ouvindo essas palavras, se escandalizaram? Ele, porém, respondendo, disse: Toda a planta, que meu Pai celestial não plantou, será arrancada. Deixai-os; são condutores cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova". (Mt 15.8-14)

Um dos livros apócrifos escrito por volta de 600 a.C., conhecido como livro de Jasher (ou ainda "Sepir Ha Yasher", ou ainda Sabedoria dos Justos) comenta sobre as abominações de Sodoma e Gomorra e a batalha onde os reis da cidades da planície lutaram contra os babilônicos. Nesse livro, conta-se que habitantes das cidades costumavam ir por 4 vezes ao ano para um vale com suas famílias e lá entregarem-se a relações sexuais entre eles, trocando esposas e esposos, jovens e velhos, para depois retornarem a suas casas e ocupações sociais, sem dizer uma palavra (cap. 18). Não há como negar que esse habito se parece muito com os "bacanais", rituais pagãos de fertilidade que existiram na Grécia e em Roma, realizados nos solstícios e equinócios.

O Livro de Jasher ainda conta sobre uma lei das cidades sobre dar prata aos que apareciam pedindo por comida. Então esperavam que o viajante morresse de fome, para depois pegar de volta a prata que haviam dado. Na estória, uma das filhas de Ló ilude os homens da cidade para levar pão a um faminto e acaba sendo presa e morta numa fogueira por ter ajudado o viajante (cap. 19). Essa estória também se pareia muito bem com o tratamento dado pelos homens da cidade aos viajantes (anjos) que Ló recebeu em sua casa.

Dessa forma, embora o termo “sodomia” tenha adquirido conotações sexuais ao longo da história, Sodoma e Gomorra parecem ter sido aniquiladas devido a violações explícitas do código hebreu sobre o qual haviam surgido, tanto por sua adoração a deuses pagãos como por sacrifícios de inocentes e o enaltecimento do egoísmo como se fosse uma virtude.

O PARENTESCO COM OS HEBREUS

Esse é exatamente o ponto que coloca o genocídio das cidades como uma eliminação daquilo que poderia se propagar ao povo de Abraão, no lado oeste do Jordão. Por volta de 2350 a.C. A dinastia dos reis nas cidades da planície era aparentada com os hebreus. A aceitação de Ló e seu clã em Sodoma mostra exatamente isso: se era lei matar de fome os estrangeiros ou quem os ajudasse, como Ló se estabeleceu facilmente lá, vindo dentre os Caldeus junto com Abraão?

Também, quando o Senhor revela a Abraão o seu plano para destruir as cidades, Abraão começa uma espécie de “pechincha” para convencer o Senhor a não realizar Seu intento.

Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra? Então disse o SENHOR: Se eu em Sodoma achar cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles. E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza. Se porventura de cinqüenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco. E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta. E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei por amor dos vinte. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez. E retirou-se o SENHOR, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão tornou ao seu lugar. (Gn 18.23-33)

O que se segue é justamente um par de anjos chegando a Sodoma para retirar de lá a Ló, sua esposa e as duas filhas. Abraão conseguiu salvar os justos, mas não impediu que as cidades fossem destruídas. O sofrimento de Abraão e seu esforço pelas cidades, em mais de uma ocasião, novamente reforça quanto os hebreus no oeste do Jordão eram ligados aos Cananeus do outro lado. Essa ligação, da mesma forma que havia possibilitado a Ló se estabelecer em Sodoma, muitas vezes permitiu que os Cananeus e até os Moabitas levassem seus costumes (e principalmente seu culto pagão) para o povo hebreu. Mesmo depois da destruição das cidades, não faltaram profetas falando contra os cultos dos “altos” (ou postes-ídolos) e de Baal entre os hebreus.

Se era abominável ao Senhor ver esses cultos vindo ao Seu povo a partir dos estrangeiros, quanto mais seria de outros hebreus?

Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel. Porque a porção do SENHOR é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança. Achou-o numa terra deserta, e num ermo solitário cheio de uivos; cercou-o, instruiu-o, e guardou-o como a menina do seu olho. … Ele o fez cavalgar sobre as alturas da terra, e comer os frutos do campo, e o fez chupar mel da rocha e azeite da dura pederneira. Manteiga de vacas, e leite de ovelhas, com a gordura dos cordeiros e dos carneiros que pastam em Basã, e dos bodes, com o mais escolhido trigo; e bebeste o sangue das uvas, o vinho puro. … 

E, engordando-se Jesurum, deu coices (engordaste-te, engrossaste-te, e de gordura te cobriste) e deixou a Deus, que o fez, e desprezou a Rocha da sua salvação. Com deuses estranhos o provocaram a zelos; com abominações o irritaram. Sacrifícios ofereceram aos demônios, não a Deus; aos deuses que não conheceram, novos deuses que vieram há pouco, aos quais não temeram vossos pais. … Porque a sua vinha é a vinha de Sodoma e dos campos de Gomorra; as suas uvas são uvas venenosas, cachos amargos têm. … Esconderei o meu rosto deles, verei qual será o seu fim; porque são geração perversa, filhos em quem não há lealdade. ... Porque um fogo se acendeu na minha ira, e arderá até ao mais profundo do inferno, e consumirá a terra com a sua colheita, e abrasará os fundamentos dos montes. Males amontoarei sobre eles; as minhas setas esgotarei contra eles. (Dt 32)

VAI LÊ TAMÉM, Ó...