quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O Cântico da Sulamita - ESTUDO BÍBLICO


Existe um livro na Bíblia sempre despertou muito interesse e polêmica. Trata-se de um texto lido principalmente nos casamentos judeus, pois fala sobre a união do homem e da mulher, na sua forma espiritual e física. Para quem ainda não leu o Cântico dos Cânticos, vão aqui todas as recomendações para fazer isso. Se você não tiver uma Bíblia por perto, segue AQUI uma versão com separações úteis do enredo. A polêmica vem de 3 causas principais e sérias para a Igreja:

1. não cita o nome de Deus
2. é um livro erótico
3. foi provavelmente escrito por uma mulher

Talvez o Cântico seja o livro mais heterodoxo da Bíblia. Quase todos os religiosos da história fizeram uma tremenda ginástica para “espiritualizar” o seu texto, associando o noivo com Cristo e a noiva (Sulamita?) com a Igreja. Esse é o ritual dos casamentos, um noivo rico recebendo uma noiva bela e pura... Mas então trechos especialmente picantes como “O meu amado é para mim como uma pequenina bolsa de mirra que passa a noite entre os meus seios” ficam bem estranhos, convenhamos... Também o Cântico não é um diálogo, mas uma série de monólogos em que o noivo e a noiva declaram seu amor e contam seus prazeres, sem contudo conversarem.

ONDE FOI PARAR DEUS?

Seria previsível encontrar um texto como o Cântico entre manuscritos romanos (pois eram comuns os textos eróticos) ou egípcios (pois quase todos os perfumes e especiarias citados são produtos egípcios), mas não na Bíblia. Desde o século 4, a igreja cristã se voltou tanto contra o sexo que mesmo o prazer na relação (entre marido e mulher) chegou a ser considerado pecado, pois não era direcionado a Deus. Ver a própria nudez chegou a ser pecado passível de punição, pois incitava a pensar em sexo. A mãe de Jesus foi feita eterna virgem, e todos os santos foram condenados ao celibato. Como então o Cântico poderia estar dentro da Bíblia? Seria uma armadilha do diabo para os cristãos?

O nome de Deus não aparece no Cântico, ao contrário de todo o restante da Bíblia e mesmo do Pentateuco (pensando-se no que era a Bíblia quando ele foi escrito). Apenas no cap. 8, vers. 6 há uma menção a “Suas brasas [do amor] são fogo ardente, são labaredas do Senhor”, ao falar sobre a força imensa do amor. Não houve, contudo, como excluir o Cântico da Bíblia: ele atende a todos os requisitos dos textos canônicos (é de idade confiável, é citado pelos autores bíblicos e por outros autores, e não contradiz outros textos bíblicos), pois segundo o argumento de Paulo “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17). Houveram sempre críticas ao Cântico, mas a suposta autoria de Salomão e as características do Cântico sempre o protegeram, conquistando mesmo a admiração de teólogos influentes do judaísmo, assim como Jerônimo (que traduziu os manuscritos gregos para o latim e os reuniu) e Lutero (que traduziu a Bíblia para a linguagem civil).

SIM, É SOBRE SEXO

Apesar de toda a ginástica que os teólogos fizeram para associar o Cântico com uma relação metafórica entre a Igreja e Cristo, é inegável o seu erotismo. Desde a antiguidade se anexam prefácios ao livro, indicando que ele não deve ser lido por mentes imaturas, que não possam extrair seu significado espiritual. Na verdade, desde Agostinho (séc. 4) a Igreja se tornou defensora do sexo como pecado, talvez o maior de todos. Noé amaldiçoou seu filho por descobrir-lhe o sexo. Sansão foi traído pelo sexo. Davi traiu pelo sexo. Salomão foi traído pelo sexo. Paulo desaconselha o sexo. E só: no restante da Bíblia, o sexo (entre esposos) é tratado como a via pela qual vem a graça dos filhos. Abraão foi patriarca através do sexo! E quanto ao prazer do ato sexual? A Bíblia simplesmente o trata como dádiva aos que são tomados pelo amor, e realmente o Cântico encena um casamento - com sexo. Talvez o único livro a descaradamente descrever os prazeres da união entre um homem e uma mulher, o Cântico usa imagens eróticas como “Oh, o amor e suas delícias! Seu porte [da Sulamita] é como o da palmeira, e os seus seios como cachos de frutos. Eu disse: Subirei a palmeira e me apossarei dos seus frutos” para retratar, diversas vezes, o agir de amantes.

A falta de castidade no Cântico salta aos olhos e o seu reconhecer é fácil para qualquer adulto. Outra cena de matrimônio (nesse caso, um entre a realeza) aparece no Salmo 45, porém a ênfase do casamento é tradicional, na posteridade do rei através dos filhos.

Apenas no Cântico e no livro de Eclesiastes são abordados sem ressalvas os prazeres mundanos (e talvez daí se atribua o Cântico a Salomão). Ao invés de negar tais prazeres, Salomão dizia “Ora, para aquele que está entre os vivos há esperança … Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com coração contente o teu vinho, pois já Deus se agrada das tuas obras” (Ec 9.4-7). O discurso de Eliú, no livro de Jó, também indica os prazeres humanos como fruto da recompensa divina: “Se lhe obedecerem e o servirem, serão prósperos até o fim dos seus dias e terão contentamento nos anos que lhes restam” (Jó 36.11). Esse argumento no entanto mostra-se falso ao longo do livro. Dessa forma, o Cântico é singular em “desespiritualizar” o prazer humano. Esse tema, sobre o qual a Bíblia toda fala tão pouco, geralmente associa a alegria e o prazer à gratidão, ao vinho, fartura de alimentos e ou as riquezas... nada se fala sobre o matrimônio. Salomão também é único ao refletir que nada por si só gera felicidade, mas “quando Deus concede riquezas e bens a alguém, e o capacita a desfrutá-los, a aceitar a sua sorte e a ser feliz em seu trabalho, isso é um presente de Deus” (Ec 5.19). Em se tratando de sexo, o Cântico aborda continuamente esse tema e é único ao fazê-lo, apesar de o tema acompanhar [e obviamente interessar] os humanos desde a Criação. Apenas Salomão e o autor dos Cânticos abordaram esse tema. Nas outras partes da Bíblia, o prazer geralmente é descrito maleficamente como “prazer carnal” (muitas vezes ligado aos amantes e ao adultério), não se falando aí sobre o matrimônio.

DE UMA MULHER?

Apesar de ser um tema que apenas Salomão aborda, o Cântico dá indícios de ser uma composição feminina. Se isso for verdade, talvez esteja justificada sua singularidade. O poema inicia com a assinatura “o mais belo cântico de Salomão”. Outras canções bíblicas levam o nome do rei, como os salmos 72 (sobre a justiça divina, citando muitos lugares, como no Cântico) e 127 (ponderando sobre a Graça divina, e usando expressões como “videira” para a mulher, como no Cântico), indicando que Salomão se dedicara em parte ao dom da música de seu pai. No entanto, a fama de Salomão por entre as nações do Oriente gerou um número fabuloso de textos apócrifos, atribuídos a ele para que ganhassem crédito e confiabilidade. Esse era mesmo um hábito de compositores e músicos antigos, o de atribuir suas criações a personagens famosos.

A antiguidade do Cântico poderia ligá-lo a Salomão, bem como a linguagem e o tema. No entanto, há uma forte defesa da autoria feminina do Cântico. A autoria feminina de um cântico seria motivo para desdenhar dele, pois a mulher bíblica é bastante inferior ao homem, chamada de esposa (beuláh = possuída) e contada entre a fortuna junto com prata, ouro, bois e cavalos (Dt 17.16-17). Salomão mesmo possuía muitas esposas e concubinas, todas tomadas entre a realeza, sendo difícil acreditar que se dedicasse de tal maneira a uma em especial. Por isso, é perfeitamente possível que uma autora instruída da época assinasse sua criação como “Salomão”.

Seguem alguns argumentos pela autoria feminina do Cântico:

  • Salomão é referido em 3ª pessoa, no Cântico, como dono de belas cortinas, vinhas e liteiras (onde os reis são carregados);
  • A enumeração de esposas e concubinas de Salomão é a menor em toda Bíblia (60 esposas + 80 concubinas), e provavelmente a mais fiável de todas. No entanto, isso diminui a magnitude do monarca frente a outros reis que também se gabavam do harém.
  • A esmagadora maioria dos versos é fala da Sulamita;
  • A vasta descrição de perfumes e essências egípcias seria difícil a alguém que não fizesse uso importante delas;
  • A narração da subjugação aos interesses dos irmãos (que a punham a cuidar das vinhas, o que era trabalho de escravos), assim como a violência dos guardas dos muros (que maltratam a Sulamita, sem motivo) seria estranha a um homem, mais ainda um rei;
  • Todos os comandos no Cântico, os chamados para o amor, o encontro, são executados pela Sulamita;
  • Há contínua referência às mães, da Sulamita e do esposo (não identificado), o que não condiz com a linguagem patriarcal dos textos bíblicos. Os pais nem são mencionados!
  • Apenas no Cântico, em toda a Bíblia, há a ligação entre sexualidade e ternura, o que seria de se esperar de uma autora feminina;
  • Um estudo psicanalítico do texto atribui trechos como “levar o amado ao quarto daquela que me concebeu” a um desejo definitivamente feminino.

Para muitos estudiosos, o Cântico é sem dúvida obra de uma mulher instruída da realeza, talvez da corte do próprio rei. Sua destinação a um casamento é clara: há no Cântico toda uma preocupação com a contagem dos dias que se iniciam, marcados por trechos como “Não despertem nem incomodem o [meu] amor enquanto ele não o quiser” (e fala semelhante é dita com respeito à Sulamita, para que não seja incomodada), o que remete às comemorações nupciais de vários dias dos judeus, e à pompa dada ao casal de noivos.

METAFORICAMENTE FALANDO

Há metáforas difíceis de entender no mundo ocidental (ainda mais o moderno), como a comparação da Sulamita com um muro, mas essas imagens eram comuns em outros poemas da época e faziam todo sentido para a corte do rei e o povo ao redor. Por exemplo, a comparação da Sulamita com Tirza (antiga capital do reino do norte) e Jerusalém (capital do reino do sul) revela que o(a) autor(a) não vivenciou a separação do reino, que fez dos dois reinos ferrenhos inimigos quanto ao status, assim como suas cidades capitais. Tirza foi arruinada após o reinado de Salomão, seu nome desaparecendo dos escritos judeus.

Ao pensar-se que o Cântico tenta trazer à tona imagens comuns do cotidiano na época, nos deparamos com "seu umbigo [da Sulamita] é uma taça redonda, onde nunca falta o vinho de boa mistura; sua cintura é um monte de trigo cercado de lírios; seus seios são como dois filhotes de corça". Tais comparações podem parecer estranhas mas, curiosamente, os arqueólogos que encontraram taças egípcias rapidamente as assemelharam a... umbigos. O poema todo parece tentar trazer imagens e sensações ao leitor, como se fosse uma tela de pintura. Uma leitura atenta do Cântico, junto com um guia dos locais que ele descreve, assim como os perfumes e sensações, talvez o faça ainda mais erótico do que já parece...

Como uma exaltação ao casamento e ao amor entre os noivos, o Cântico nos traz, de forma especialmente humana, um ensinamento que o Senhor fez questão de preservar: a Bíblia foi escrita para ser vivida. Entre os noivos românticos e sensuais (no caso do Cântico), entre os guerreiros, entre os guias no deserto ou os rabis nas cidades (pois Jesus não se fixou no Templo, ao contrário dos fariseus), importa é amar a Deus e ao ser humano em todos os momentos.

MERECE LEITURA

Geraldo Holanda Cavalcanti, O Cântico dos Cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções, EdUSP, 2005.

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