segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Um estudo da hipocrisia - entre doutores e viúvas


Segue um texto brilhante de Mons. João Scognamiglio Clá Dias, publicado em nov. 2012, apenas 1 mês antes do fim do mundo. Depois que tudo acabou, você só podia estar aqui lendo ele.

Jesus ensinava: "Cuidado com os mestres da lei. Eles fazem questão de andar com roupas especiais, de receber saudações nas praças e de ocupar os lugares mais importantes nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes. Eles devoram as casas das viúvas, e, para disfarçar, fazem longas orações. Esses receberão condenação mais severa!"

Jesus sentou-se em frente do lugar onde eram colocadas as contribuições, e observava a multidão colocando o dinheiro nas caixas de ofertas. Muitos ricos lançavam ali grandes quantias. Então, uma viúva pobre chegou-se e colocou duas pequeninas moedas de cobre, de muito pouco valor. Chamando a si os seus discípulos, Jesus declarou: "Afirmo-lhes que esta viúva pobre colocou na caixa de ofertas mais do que todos os outros. Todos deram do que lhes sobrava; mas ela, da sua pobreza, deu tudo o que possuía para viver". (Mc 12.38-44)

1. A ALEGRIA DE DAR

Ao analisarmos a natureza, encontramos um fenômeno difundido por toda a criação, desde o reino mineral até o mundo dos seres angélicos.

O Sol está sempre espalhando sua luz e seu calor sobre a Terra, beneficiando todos os seres que precisam dessa irradiação. As águas, no seu constante movimento, se evaporam e constituem nuvens que, depois de carregadas, despejam sobre o solo elementos indispensáveis para a vida. Constatamos a extraordinária variedade e a superabundância de peixes que povoam os mares e os rios. Em Gn 1.26 lemos a prerrogativa divina "Domine ele [o homem] sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão", ou seja, tudo o que a Natureza gera existe para alimentar o homem. E ela a tudo doa! Dizemos mesmo que a Natureza é boa pela medida em que ela dá seus frutos, seja consciente disso ou não.

Se os elementos fossem passíveis de felicidade, a árvore frutífera, por exemplo, cumpriria o mando de Deus  ao produzir frutas e ofertá-las ao homem; o mar em entregar-lhe os peixes; o Sol em iluminar e aquecer a Terra. Em última instância, cumprir os desígnios de Deus coloca-te dentro do Reino que Jesus veio anunciar. E o que é o Reino de Deus? Trata-se de ter por Senhor, protetor e amigo Aquele que é todo bondade e poder.

2. CONTRASTE ENTRE EGOÍSMO E GENEROSIDADE

Para entendermos bem o ensino de Jesus, devemos ponderar que o Evangelho não foi escrito como um livro comum, uma história para fazer bem às almas piedosas dos primeiros tempos do Cristianismo. Antes de tudo, convocavam a uma perfeição como a do Pai, uma ordenança tão antiga como a libertação do povo de Deus: "Eu sou o Senhor que os tirou da terra do Egito para ser o seu Deus; por isso, sejam santos, porque eu sou santo." (Lv 11:45). Mas não só isso: eram também elemento de polêmica, uma vez que os primeiros divulgadores da Boa-nova, na sua ação apostólica, encontravam diante de si obstáculos a vencer. Quando João Marcos escreveu, um desses entraves provinha justamente de homens versados na Lei de Moisés e nas Escrituras do Antigo Testamento, que se haviam apossado da Lei.

Como é opinião comum dos exegetas, João Marcos viveu em Roma durante muito tempo, como auxiliar de Paulo e Pedro, e escrevia para o público romano. Nesse tempo, muitos judeus residiam na capital do Império e estavam ingressando nas fileiras cristãs. Tanto os que permaneciam na sinagoga quanto os recém convertidos (é preciso entender o quanto isso era difícil para alguém educado pelos Fariseus) queriam a todo o custo fazer prevalecer seus costumes e a Lei de Moisés entre os cristãos, inclusive no meio daqueles provenientes dos gentios (não judeus). Paulo questionou longamente os judeus de Roma por tal postura.

Enquanto Lucas e Mateus Levi não se incomodaram tanto perante essa situação, João Marcos polemiza incansavelmente contra os doutores da Lei que atrapalhavam sua ação apostólica, não lhes poupando merecidas críticas. Ele dá destaque às discussões que tiveram com Jesus, e delas tira riquíssimas lições morais para os cristãos de todos os tempos. No primeiro versículo do trecho acima, ele alerta as multidões contra a hipocrisia dos doutores.

"Cuidado com os mestres da lei. Eles fazem questão de andar com roupas especiais, de receber saudações nas praças e de ocupar os lugares mais importantes nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes."

É importante destacar o detalhe apontado pelo evangelista: Jesus falava a "uma grande multidão". Portanto, foi um ensinamento destinado a todos e dado sem rodeios, alertando o povo contra os doutores da Lei.

Segundo os costumes da época, era natural que todo mundo fizesse honras especiais quando passava um doutor da Lei, aos quais estavam reservados os lugares de preeminência nos atos públicos. Conforme faz notar o padre Tuya em seu trabalho, a praça pública, ou ágora, era o centro comercial e social da cidade. Por isso, os escribas e fariseus gostavam de, com seus vistosos trajes, passear lenta e gravemente nesse local, para receber os cumprimentos do povo. Cobiçavam de modo especial o título de Rabi (meu Mestre). "Nas assembleias, os lugares eram determinados não só em razão da idade, mas também da dignidade do personagem, por exemplo, de sua sabedoria. Como os lugares designados em razão da dignidade eram muito menos numerosos que os destinados a pessoas por motivo da idade, queriam os fariseus, por ostentação e vaidade, que nos banquetes lhes fossem dados esses primeiros lugares, para destacar assim sua dignidade. [...] Era uma ânsia desmedida, infantil e quase patológica de vaidade e soberba".²

Uma leitura superficial dos dois versículos acima transcritos poderia levar a crer que não se deve usar roupas belas, cumprimentar com cortesia ou favorecer a hierarquia no relacionamento social. Aliás, as roupas nobres e decorosas estão sendo abandonadas, em razão da mentalidade dos dias nos quais vivemos. Predomina o feio pelo feio, e o igualitário pelo igualitário. Vai se generalizando o gosto de vestir-se o mais negligentemente possível, de modo a poder sentar-se no chão; entram na moda o feio, o velho, o rasgado e o imoral, enquanto se simplificam ao máximo os costumes, tal como nem seres irracionais o fariam. Não é isso o que o Senhor queria para seus seguidores.

O problema não está na roupa vistosa ou na honraria, mas em querer chamar a atenção sobre si, isto é, em ter a intenção não de louvar a Deus, mas de louvar-se a si mesmo. Os costumes enumerados por Jesus, legítimos em algumas circunstâncias, eram do gosto dos doutores, mais por soberba do que por admiração pelas coisas belas, pelo desejo de glorificar a Deus ou pelo intuito de fazer bem ao próximo. Seu objetivo era vangloriar-se, ostentar superioridade, no fundo, serem "adorados", incensados pelos outros. Usurpavam, pois, em especial no Templo, o lugar central pertencente a Deus. Aquele aparato de dignidade, aquela aparência de honra, respeito e sabedoria deveria corresponder à realidade; ou seja, a vida de tais doutores é que deveria torná-los credores dessas homenagens.

A realidade bem diferente era denunciada por Jesus.

3. APARÊNCIA, MANTO DE UMA REALIDADE PECAMINOSA

"Eles devoram as casas das viúvas, e, para disfarçar, fazem longas orações. Esses receberão condenação mais severa!"

No Antigo Testamento, a viúva tinha muito pouca proteção e homens inescrupulosos arrancavam delas o quanto podiam. Comum era o caso de viúvas sem filhos adultos, que ficavam responsáveis por administrar a fortuna da família. Nessa situação de desamparo, conforme aponta Jesus, introduzia-se um mestre da Lei que, sob a escusa de sacrifícios no Templo, terminava por rapinar tudo o que tinham.

Ao denunciá-los, Ele expunha às multidões o quanto os doutores da Lei representavam exteriormente aquilo que NÃO eram. Conheciam os meandros da Lei, sem praticá-la... Na realidade, portavam-se como vorazes devoradores de fortunas alheias. Ainda mais, sendo legalistas, sabiam bem conduzir os processos jurídicos que rodeavam cada pleito de sucessão e, com isso, tinham maior facilidade em terminar apossando-se do dinheiro.

Portanto, sob aparência de virtude ocultava-se uma mentalidade de vampiro, cujo fim era arrancar dos outros, de forma injusta e inescrupulosa, tudo quanto fosse possível.

4. AS FUNESTAS CONSEQÜÊNCIAS DO ORGULHO

Sirva-nos isto de alerta contra os perigos do orgulho: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’ (Mt 22.39). Toda vaidade – acaba levando à desobediência aos simples mandamentos postos por Jesus (o 1º é amar a Deus, ou seja, agradecer-lhe pelos favores concedidos). Condição essencial para manter-se fiel à Lei é a humildade de saber-se igual aos outros.

No caso dos doutores da Lei, o egoísmo orgulhoso, agravado pela duplicidade de espírito, a hipocrisia de representar de maneira aparatosa aquilo que não se é, torna-os merecedores da "pior condenação", segundo a enérgica expressão do próprio Jesus: a danação eterna, no inferno, castigo adequado para quem, tomando as vias do orgulho, embrenha-se na desonestidade e em outros pecados. Fujamos, pois, de toda e qualquer vanglória, para não terminarmos por romper com os demais Mandamentos, amando-nos acima de Deus. E tenhamos a certeza desta verdade: na raiz de todo pecado grave está sempre o orgulho.

5. FAZER O BEM POR OSTENTAÇÃO

Jesus sentou-se em frente do lugar onde eram colocadas as contribuições, e observava a multidão colocando o dinheiro nas caixas de ofertas. Muitos ricos lançavam ali grandes quantias.

Ao exemplo dado sobre o comportamento dos legalistas, João Marcos vai contrapor a cena acima. Existiam no Templo treze cofres para o depósito de esmolas. "O gazofilácio, ou tesouro do Templo", informa-nos o padre Tuya, "estava situado no átrio das mulheres. Provavelmente havia várias câmaras para a conservação desses tesouros. Na parte anterior, segundo a Mishna, havia treze alçapões em forma de trombeta, de abertura muito grande no exterior, por onde se atiravam as oferendas".²

Naquela pequena sociedade – ao contrário dos aglomerados de pessoas anônimas das grandes cidades modernas – todos se conheciam e, portanto, quem dava esmolas muito atraía a atenção.

Lembremos também que naquele tempo não existia o papel-moeda, mas apenas as peças cunhadas em metal nobre como o ouro e a prata, ou em metais de menor valor. Assim, esses cofres favoreciam o desejo de ostentação. Quem possuía grande fortuna podia com facilidade despejar neles enormes quantidades de moedas, de maneira aparatosa e barulhenta, alardeando perante os circundantes sua generosidade. Como Jesus denunciara em outra ocasião ("Portanto, quando você der esmola, não anuncie isso com trombetas, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem honrados pelos outros. Eu lhes garanto que eles já receberam sua plena recompensa."; Mt 6.2), com frequência a ação desses hipócritas era precedida por toques de trombeta que anunciavam a esmola a ser dada. Feito isto, um novo toque indicava a saída do doador. Este se retirava coberto de glória, alvo da admiração das pessoas presentes, que cochichavam elogios... calculando, sem dúvida, qual o montante depositado no cofre.

Sentado no Templo "diante do cofre das esmolas", Jesus observava em silêncio essa cena tão comum para os conhecedores do local.

6. UM DESMEDIDO CONTRASTE

"uma viúva pobre chegou-se e colocou duas pequeninas moedas de cobre, de muito pouco valor."

É importante ressaltar o contraste das duas atitudes. Podemos imaginar a viúva, já de certa idade, arrastando os pés, meio curvada pelos achaques do tempo. Segundo o padre Tuya, ela atirou dois "leptos" (16 leptos valiam 1 denário, o salário diário de um trabalhador)².

Comparado com o espalhafatoso barulho das moedas lançadas pelos ricos, reduzia-se a quase nada o leve ruído produzido pelas duas moedinhas da pobre mulher. Sem dúvida, pouca impressão causou nos circunstantes, muito preocupados em calcular o valor aproximado das esmolas que iam sendo depositadas. Nada mais tinha ela para ofertar, talvez pelo fato de já ter sido dilapidada por algum rapinador, segundo a denúncia feita por Jesus pouco antes.

7. A VERDADEIRA GENEROSIDADE

Chamando a si os seus discípulos, Jesus declarou: "Afirmo-lhes que esta viúva pobre colocou na caixa de ofertas mais do que todos os outros. Todos deram do que lhes sobrava; mas ela, da sua pobreza, deu tudo o que possuía para viver"

Como podia a pobre viúva ter dado "mais do que todos os outros"?

Para esclarecer seu ensinamento, Jesus explica: a viúva jogou no cofre tudo quanto "possuía para viver", enquanto os ricos deram do que lhes sobrava. Ao fazer essa comparação, Cristo não visava condenar os ricos, mas elogiar aquela mulher pelo fato de nada ter guardado para si. Com efeito, quando um rico entrega a integridade de seus bens, ele dá mais do que quem faz o mesmo, mas dispõe de pouco. Era o caso, por exemplo, de Lázaro, Marta e Maria, membros de uma abastada família de Israel, os quais se entregaram por inteiro a Nosso Senhor (Jo 11).

Aquela viúva dera tudo, pondo-se nas mãos de Deus. Sem saber, ela mereceu assim a glória de ser elogiada pelo Verbo Encarnado. Milênios depois, ainda ouvimos o eco de uma ação tão simples! No extremo oposto ficaram os mestres da Lei, merecedores da pior condenação.

8. DEUS CONHECE AS INTENÇÕES DO CORAÇÃO

Jesus contrapõe o episódio das esmolas à denúncia antes feita contra os doutores da Lei. Em ambos os casos, vemos nas atitudes dos personagens a exterioridade, mas não o íntimo. No entanto, como Deus mesmo falou ao profeta Samuel, "o SENHOR não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o SENHOR olha para o coração" (1Sm 16.7). Esse divino olhar sempre nos acompanha, nada Lhe escapa. Nossa vida, nossos atos, nosso comportamento, são julgados com uma precisão absoluta pelo olhar de Deus, o qual penetra no interior de todos e analisa o fundo das almas, sabendo perfeitamente o que se passa em cada uma.

Comparando a disposição de espírito dos mestres da Lei com a da viúva, Jesus queria deixar patente a existência de dois extremos: o da generosidade, em contraste com o do egoísmo e do amor desordenado a si mesmo.

O apego, que num rico se distribui entre suas milhares de moedas, no caso do pobre se concentra em umas poucas. Renunciar a elas exige um sacrifício não pequeno, ainda mais se forem só duas. Mas aquela senhora as ofertou generosamente, depositando sua inteira confiança em Deus. É a mesma atitude assumida por outra viúva, esta da cidade de Sarepta na Sidônia (1Rs 17.10-16). Quando recebeu o Profeta Elias em sua casa, tinha ela apenas um punhado de farinha e um pouco de azeite para fazer um último pão para si e seu filho. No entanto, solicitada pelo homem de Deus, concordou em dar-lhe esse único alimento. Por ter agido assim, o azeite e a farinha se multiplicaram indefinidamente em sua despensa, até voltar a cair a chuva sobre a terra. Assim é a recompensa de Deus para todo aquele que dá com agrado e generosidade.

9. OS DOIS PÓLOS

Também nós devemos ser generosos para com Deus, tanto quanto Ele é generoso para conosco. Temos de entregar-Lhe tudo! Entretanto, isto não pode ser interpretado como uma obrigação de nos desfazermos de tudo quanto nos pertence e passarmos a viver de esmolas. Algumas poucas pessoas recebem essa sublime vocação. Trata-se, isto sim, de compreender que todos os nossos bens – e inclusive nós mesmos – são propriedade de Deus.

Nos são apresentados dois pólos: o da generosidade total ou o do egoísmo total. Ou escolhemos um e odiamos o outro, ou vice-versa. Ou somos de Deus inteiramente, ou somos inteiramente de nós mesmos. Estar parcialmente com Deus significa receber só parcialmente a sua Graça. Se temos uma vocação de vida consagrada, precisamos estar a cada momento dispostos a dar tudo, não apenas por causa de um compromisso assumido numa cerimônia, mas pela convicção de que nossa vida está confiscada por Deus.

No entanto, como aplicar esse princípio à vida de quem é chamado a constituir família e tem, portanto, o dever de estado de prover da melhor maneira possível os seus? A resposta é simples. Esse "dar tudo" não significa desfazer-se literalmente das próprias posses, mas usá-las para o bem do seu próximo (e segundo Jesus, esse é todo aquele que precisa de ajuda). É preciso dar sem esperar retribuição. Se não for assim, acaba-se por cair no desvio dos doutores da Lei, denunciado por Nosso Senhor neste trecho de João Marcos.

10. NA GENEROSIDADE, A PERFEITA ALEGRIA

O exemplo supremo do dar, dar de si e dar-se por inteiro, nós o encontramos também na carta aos Hebreus. O Pai tinha um Filho unigênito, gerado desde toda eternidade, e não criado. O amor d'Ele ao Filho e do Filho a Ele é tão intenso que d'Eles procede uma Terceira Pessoa, que é o Espírito Santo.

Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus; nem também para a si mesmo se oferecer muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no santuário com sangue alheio;

De outra maneira, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo. Mas agora na consumação dos séculos uma vez se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo. E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma vez para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para salvação
 (Hb 9. 24-28).

Apesar desse amor entranhado, o Pai resolveu entregar seu Filho para resgatar a natureza humana, extraviada pelo pecado. E o Filho, que deveria encarnar-Se na glória, uma vez que sua alma está na visão beatífica, suspendeu essa lei para assumir uma natureza mortal ³. Ele queria dar, dar de Si e dar-Se por inteiro, e, por amor a nós, assumiu um corpo padecente, sujeito a todas as dificuldades da vida nesta Terra.

Eis o exemplo divino, convidando cada um de nós a, segundo nossos deveres e possibilidades, dar não só daquilo que nos sobra, mas dar tudo. Foi Deus quem nos criou e redimiu, e por isso a Ele pertencemos. Tudo é d'Ele e deve voltar para Ele.

E assim como o Sol, a água ou as árvores, se fossem passíveis de felicidade, estariam completamente felizes pelo dom generoso de si, também nós encontraremos nossa perfeita alegria no dar, dar de nós e dar-nos por inteiro.

11. REMÉDIO PARA NOSSAS MISÉRIAS

Quando alguém dá de si, seu egoísmo acaba sendo sufocado em benefício do serviço aos outros. Servir – quer seja dando um bom exemplo, um bom conselho, ou prestando algum auxílio – repara as nossas faltas e ao mesmo tempo nos afasta do pecado. Assim, um modo de adquirirmos forças para enfrentar as tentações é fazer o dom de nós mesmos.

Pelo contrário, quem se fecha em seu egoísmo, desprepara-se para o momento sempre presente da tentação, pois basta-nos existir para sermos um foco de solicitações para o pecado, como diz Pedro aos gentios: "Sede sóbrios; vigiai; porque o diabo, vosso adversário, anda em derredor, bramando como leão, buscando a quem possa tragar" (1Pd 5.8).

12. PROCUREMOS A FELICIDADE ONDE ELA SE ENCONTRA

Nada traz mais felicidade a uma alma do que devolver a Deus aquilo que Lhe pertence. A justiça consiste em "dar a cada um o seu direito" (4). Ora, se vêm de Deus todas as coisas que foram criadas e estão à disposição do homem, este é devedor de tudo quanto d'Ele recebeu. O empréstimo faz parte dos acordos entre os homens. Quem empresta fica à espera da devolução do bem emprestado; e quem o tomou de empréstimo tem obrigação de devolvê-lo ao dono. Ora, se isto é assim no relacionamento humano, não podemos nos esquecer: tudo o que temos não é senão um empréstimo de Deus! Desde nossa vida, até nossas capacidades e qualidades, passando por todos os nossos bens.

Assim seremos livres, pois só é realmente livre quem é justo, e põe nas mãos de Deus tudo o que d'Ele recebeu. Daria indícios de loucura quem, tendo perdido alguma coisa dentro de um teatro, fosse procurá-la do lado de fora, alegando que a rua está mais iluminada. E o que faz "o mundo"? Por ter-se afundado no egoísmo, corre atrás da felicidade onde ela não se encontra. Proclamando que a liberdade consiste em entregar-se à sanha das paixões e das más inclinações, vai à procura da felicidade no vício, no pecado e em quantas loucuras, onde encontra, não a felicidade, mas a frustração, a depressão e, por vezes, as doenças. Dessa maneira, o egoísmo, já é castigado aqui na Terra, sendo ainda merecedor da pena eterna.

A verdadeira alegria está na generosidade virtuosa, pois é nela que o homem cumpre inteiramente sua finalidade de "conhecer, servir e amar a Deus" neste mundo.

DIZEM QUE VALE A PENA LER

¹ Cf. LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Marc. 5.ed. Paris: J. Gabalda et Fils, 1929, p.328.
² TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964.
³ Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, a.1, ad 2.
4 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.58, a.1.

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