segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Por quem e para quem a Bíblia foi escrita?

Já vi muitas pessoas mais desavisadas responderem a 1ª parte dessa pergunta com um simples “por Deus”. Geralmente é quem nem ouviu a 2ª parte. Não é uma resposta errada, mas ela serviria também para um pão sobre a mesa, o telefone celular, a panela de arroz no fogão, sem que você se sinta levado a tomar esses objetos como representações de fé. Se Deus fez o mundo e os seres nele, obviamente é Ele o responsável último pela Bíblia. Ou o arroz no fogão. 

Mas de fato precisamos entender que nem sempre houve uma Bíblia. Um raciocínio simples já pode revelar algo óbvio: se o texto mais recente da Bíblia é do século 2 d.C., nenhuma das pessoas anteriores a essa data (incluindo Jesus e todos os personagens bíblicos) pode ter visto uma Bíblia. Na verdade, não foi antes do séc. 16 que existiu o livro que conhecemos hoje. 

A palavra “bíblia” já significa algo semelhante a “biblioteca”, ou seja, uma coleção de livros, cada um com uma estória independente, escrita em separado, com uma intenção específica. Tratamos o volume todo como se fosse um livro único! Em verdade, a Bíblia se parece mais a uma coleção de clássicos da literatura com volumes que abordam desde o amor até a zoologia das zebras. Os volumes foram escritos ao longo de um período enorme de tempo: o mais antigo parece ser o livro de Jó (séc. 15 a.C.) e os mais novos são as cartas de Paulo às igrejas (séc. 2 d.C.). São, portanto, os relatos de autores que viveram ao longo de 1700 anos, ou 60 gerações de pessoas. 

Isso dá um tom diferente às perguntas “por quem?” e “para quem?”. Os autores dos livros mais recentes leram ou ouviram os livros mais antigos... assim pode-se dizer que os livros antigos foram escritos também para os escritores dos livros mais novos. 

Os leitores “da Bíblia” só existiram a partir do final do séc. 4, quando Jerônimo traduziu os manuscritos gregos para o latim e os reuniu num único volume, contando os que ele acreditava serem originais e os dos quais suspeitava (apócrifos). Ele usou como base os livros canônicos que eram copiados em separado a partir de uma lista elaborada no séc. 3, reunindo os livros da Torá, os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João e as cartas às igrejas primitivas. A Torá havia sido elaborada em Alexandria, no séc. 2 a.C., pelas mãos de 70 estudiosos (por isso o nome septuaginta) que escolheram esses livros por representarem os costumes e a história dos judeus, dentre um conjunto histórico (o Pentateuco, ou 1os cinco livros da Bíblia), poemas, canções, profecias, etc. Os livros mais antigos provavelmente vieram de Moisés - após uma ordenação divina (Ex 17.14) – e Esdras, tentando resgatar o culto a Javé em meio ao cativeiro babilônico. Ambos escreveram a partir da tradição oral e nenhum dos livros que existem hoje foram feitos pelo punho do próprio autor. Todos foram copiados e re-copiados por dezenas de gerações. 

O público alvo de Moisés eram os israelitas libertos do Egito de Ramsés II, que se davam a fazer as próprias leis e seguir o deus que achassem mais atraente (ex. Baal, o deus semita dos montes, ou Ápis, o deus-boi da fartura no Egito). Seus textos contavam a história e organizavam um tratado de leis feitas por Deus para o Seu povo, para que se mantivessem fiéis e pudessem prosperar juntos. 

Os livros de Josué até Ester registraram os conflitos de um povo que se tornava numeroso, atingia a glória de um reinado dominante ante as nações do séc. 10 a.C. e depois diminuía até se fragmentar perante a conquista babilônica no séc. 5 a.C. Nas muitas gerações que esses livros registram, os judeus cativos experimentavam a firmeza de Deus em Suas determinações, assim com Sua sensibilidade ao clamor daqueles que O procuraram. “Civilizados” pelos babilônicos, os israelitas inspirados pelos livros que seriam a Torá puderam manter suas tradições e o seu culto no mundo cosmopolita que se seguiu a Alexandre o Grande (séc. 4 a.C.), com a volta do Mediterrâneo unida sob a cultura grega. Após isso, ainda haveria Roma pelos 1000 anos seguintes... 

Na unificação do reino sob Davi (séc. 10 a.C.), os Salmos brotaram como canções de um pastor-músico pela improbabilidade tornado rei. Seu retrato do sofrimento humano e o consolo divino nas piores horas foi posto em letras para serem cantadas no louvor a Javé. Por se destinarem justamente a Ele, as canções do quarteto formado por Davi e seus músicos Asaf, Hemã e Yedutum serviram de inspiração às gerações até hoje, incluindo Paulo quando escrevia de sua prisão em Roma. No apogeu de Jerusalém, Salomão – filho de Davi e feito por Deus o mais sábio homem da Terra - encontrou tempo para discorrer sobre a moral em seus provérbios, analisar as vaidades das paixões humanas e ainda orientar a intimidade sensual de um casamento duradouro. A quem ele escrevia? A todos que pudessem se questionar sobre o sentido da vida, ou simplesmente desfrutar de um matrimônio. 

Cenário bem diferente encontraram os profetas, presenciando a queda de Jerusalém sob a Babilônia (justamente de onde viera, 1000 anos antes, seu pai Abraão) e, pior do que isso, a profanação do culto a Javé pelos muitos deuses deles. Suas vozes declararam repetidamente aos israelitas o que ocorreria por seus pecados e, depois, o porquê de seu domínio por estrangeiros. A troca de Javé pelos ídolos caldeus mesmo antes da invasão, a imersão dos israelitas no culto pagão e até a reconstrução da cidade santa por Neemias foram preditas e contadas pelos profetas, até que eles se calaram. Por 400 anos, Jerusalém escreveu sobre os Macabeus lutando contra os gregos e incitando as gerações seguintes a persistir, até que terminaram se unindo ao poder conciliador de Roma. Muitos livros que circularam após a reconstrução da cidade foram obras proscritas até o declínio do império, no séc. 4 d.C. Seus leitores foram ativistas religioso-políticos, inicialmente judeus insatisfeitos com o controle romano, depois judeus e cristãos ansiando pela vinda do rei que Isaías anunciava. 

Mateus, Marcos e principalmente Lucas descreveram com detalhes a passagem de Jesus pelo mundo dos homens. Seus textos, redigidos do próprio testemunho, simplesmente inspiraram multidões de judeus e gregos a seguirem o Cristianismo. A nova doutrina culpava os que faziam julgamentos, aconselhava abençoar mesmo os inimigos e ainda não seduzir-se nas vaidades mundanas. João, o discípulo amado, acrescentou um poderoso relato intimalista do contato e conversas com o Messias, tendo acompanhado ele até a cruz, e que mostrava um Jesus não apenas atuante, mas sensível e humano. Esses 4 textos percorreram a Europa em separado até serem reunidos por Jerônimo no séc. 4 d.C., já em uma Roma cristã. Até então tinham sido textos proibidos, buscados por milhares de pessoas que arriscavam as vidas para conhecer um Deus vivo e benevolente, ao contrário das criações imperiais romanas. 

As perseguições a que os cristãos se sujeitariam pelo Reino de Deus que Jesus anunciara já eram expostas por Paulo no séc. 2. Perseguidor de cristãos, após uma conversão miraculosa ele usou sua erudição para orientar novas igrejas surgidas entre vários povos a superarem as diferenças entre si (e em especial com os gregos) sob a lei do amor cristão. As cartas que ele e seus companheiros deixaram cunhavam um novo culto, não mais ao Javé-do-Templo, mas ao Deus encarnado em Jesus, misturado aos homens e agindo entre eles por meio da fé. Era o Deus livre de legalismos que João Batista já anunciara às multidões nas margens do Jordão. 

Quem procurou João Batista, Jesus, Paulo, etc? A quem eles escreviam? Eram os novos cristãos, pessoas que pelo Messias queriam se reconciliar com Deus para que seus males fossem perdoados (e sarados) ou porque isso lhes asseguraria a vida eterna. Jesus já dizia: Ninguém vai ao Pai sem mim. Aquele que segue meus mandamentos (ter fé em Deus acima de tudo e praticar o amor ao próximo) está em mim e eu nele. Avisem isso a todos os povos, até que eu volte para buscar os meus (e dar fim aos demais). 

Jesus falava de amor, mas anunciava algo que João de Patmos exaltou em sua visão sobre o final dos tempos. Ao relatar um céu assustadoramente parecido ao que Ezequiel viu 600 anos antes, ele ordenava a cada uma das antigas igrejas para remediarem seus erros, apontados um a um. Repetindo João Batista, ele dizia: Arrependei-vos, enquanto é tempo. Assim foi encerrado o cânone, com o livro que anuncia o fim do mundo, embora não seja esse o mais novo deles. Todo o Novo Testamento foi feito para as igrejas futuras, que espalhariam o ensino de Jesus sobre o Reino de Deus que devia ser erguido na Terra, para que os homens escapassem da condenação natural da carne, segundo Paulo. 

Esse é o ponto acerca da Bíblia... 

Nos últimos anos, o número de pessoas que escreve - ou, pelo menos, que consegue publicar o que escreve - aumentou muito. Esse crescimento se deu juntamente com os avanços tecnológicos e a relativa popularização da internet. O site Blog Pulse informa que passa de 145 milhões o número de blogs reconhecidos no mundo, e o Twitter já chegou aos 20 bilhões de mensagens postadas. No entanto, o número de leitores (de livros) aumenta lentamente, até menos do que seria suposto. Por incrível que pareça, a maioria das pessoas se limita a escrever para si mesmo, ou apenas que mostrar aos outros suas particularidades, independente de serem lidos ou vistos. Não se trata de agradar aos outros com o que é produzido, mas dar escape a tensões particulares através da exposição pública, como se isso redimisse, como se o conhecido fosse automaticamente certo. 

Quem produziu os textos bíblicos não agiu assim. Grande parte morreu pelo que havia escrito. Não são só desabafos, mas registros históricos de uma verdade repetitivamente apresentada: Deus está no controle. No séc. 15 a.C., quando Moisés anotava o Pentateuco, ele já anunciava a vinda de um Messias que seria sacrificado para redimir os homens (Ex 12.46, Dt 18.18). O Antigo e o Novo Testamentos centram-se ao redor dessa aproximação de Deus e os homens, repudiada pelos primeiros (que fizeram o possível para enclausurar Deus em um objeto, ou um lugar), mas pelo próprio Senhor. Ao longo de 60 gerações, os homens afirmam que sabem o que é melhor e Deus lhes mostra outro caminho, dizendo “Eu comando”. 

Não foram acrescentados outros textos ao cânon após a desintegração de Roma no séc. 5, e até muitos foram retirados no séc. 16 sob a argumentação de que não vinham de testemunhas oculares ou que discordavam de tudo o que Deus já anunciara no passado. Se a Bíblia protestante apresenta um silêncio de 400 anos entre Malaquias e Mateus (na católica esse espaço é preenchido com as crônicas dos Macabeus), temos 19 séculos de silencio desde então? Jesus anunciou que haveria um Dia do Juízo, quando Ele retornaria, mas não disse quando. Paulo aparentemente foi o último a vê-lo e ser iluminado para falar aos corações dos homens como só Ele poderia. Outros vieram depois e deixaram grandes testemunhos, mas talvez não grandes o suficientes para serem unidos ao Livro, que na verdade é uma coleção de histórias redigidas por um único Autor-de-autores. Talvez algum dia sejam postas ali, pois Jesus disse que o Espírito de Deus não seria silenciado. 

Quem escreve? O Senhor. E escreve EM NÓS, para que precisemos de fé para ler isso. Dia após dia. 

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Usando trechos de Rafael Rodrigues, Escrevemos para nós mesmos (?), em http://www.digestivocultural.com - Sexta-feira, 10/9/2010

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