Modelo gráfico criado pelo ilustrador Richard Neave com base em técnicas forenses aplicadas a crânios Galileus do séc. 1. Supostamente, essa seria uma aparência próxima de Jesus. Ver https://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-3359548/Is-real-face-JESUS-Experts-use-forensics-reveal-Christ-looked-like.html
Aqui, vamos tentar nada menos que entender as motivações de Jesus (não do Cristianismo), em especial as mais políticas. Sim, bastaria perguntar a Ele, mas ficaremos restritos aos documentos que sobraram contando um pouco sobre isso.
QUANDO TUDO COMEÇOU
O início do Cristianismo é nebuloso. Os Romanos, que foram a fonte primordial de documentos sobre a época, não diferenciavam muito os Cristãos de vários outros grupos em seu território, como Judeus, Persas, Parthos, etc. Além disso, foi uma época turbulenta no Estado Romano, que chegou a coroar 4 imperadores num mesmo ano, cada um deles disposto a fazer enormes reformas. Os Cristãos e Judeus eram problema para Roma e andavam juntos, mas logo tornaram-se inimigos. Quando os Romanos reprimiram da forma mais dura as revoltas na Judéia, destruíram pelo fogo grande parte dos documentos originais.
CONTARAM SOBRE JESUS
Mesmo a história de Jesus é assunto complexo. O que sabemos sobre Ele tem várias fontes. A mais antiga é Paulo, que escreveu por volta de 50 d.C. e não conheceu Jesus pessoalmente. Paulo sistematizou o pensamento Cristão, misturando claramente sua erudição greco-romana com conceitos Fariseus de pureza, ao invés de contar sobre Jesus. Para ele, o mais surpreendente no Cristianismo era a Ressurreição, que seria proporcionada por Jesus, em algum futuro longínquo (1ª Coríntios 15, Filipenses 3).
Paulo afirmava que todo seu conhecimento sobre Jesus foi-lhe dado por Revelação Divina. As viagens descritas em Atos dão a entender que Paulo foi um semeador de igrejas na parte Oriental do Mediterrâneo e obras da 2ª metade do séc. 1, como o Pastor de Hermas, sugerem que o Cristianismo de Paulo já era bastante difundido antes do início do séc. 2.
Outra fonte importante foi Marcos. Ele também não andou com Jesus, mas tudo indica que passou de seguidor de Paulo a seguidor de Pedro, terminando como bispo de Alexandria (Egito) em 70 d.C., quando provavelmente escreveu seu Evangelho. Nesse caso, os detalhes sobre Jesus devem ter sido ensinados por Pedro, que era um pregador famoso e esteve lado a lado com o Messias. Marcos é singular por não falar dos eventos da Ressurreição.
Mateus adaptou a obra de Marcos para um tempo posterior, talvez 100 d.C, quando a Cidade Sagrada já havia sido aniquilada pelos Romanos. O Messias de Mateus faz uma Ressurreição gloriosa a anuncia sua volta para restaurar o povo de Deus. Lucas, que também andou com Paulo, peregrinou pela Galiléia atrás das estórias sobre o Messias de quem ouviu no finalzinho do séc. 1 (via Paulo, Marcos e Mateus). João, que escreveu já no séc. 2, provavelmente é uma coletânea de estórias Samaritanas sobre Jesus (colocadas como diálogos), ao invés de uma narrativa.
As diversas narrativas não são tão destoantes que se oponham, nem tão coesas que possam ser fundidas, como no famoso Diatessaron. O Jesus que aparece nessas obras reúne dados sobre um Messias bastante imprevisível, querendo seguidores que abandonassem tudo por Ele, devotado em reinterpretar as leis judaicas, preocupado com questões de identidade (a que grupo você pertence?) e do entendimento das pessoas sobre Deus.
QUEM ERA JESUS?
Jesus não se entendia com os religiosos de Jerusalém, mas também não evitava ser indagado ou questionado por eles. Interessava, talvez, tentar convencer eles das Suas idéias. E isso fazia Dele uma espécie de revolucionário pacifista. Isso é, Jesus buscava um grupo reinterpretando leis, mas não um grupo impondo essas leis aos outros. As leis Romanas, por exemplo, não eram do Seu interesse.
Mas porque Jesus não apoiava uma tomada de poder, mesmo que local? Antes de argumentar pela impossibilidade prática disso, vamos lembrar que os Galileus eram mal-afamados por sua rebeldia, assim como os próprios Judeus se organizaram, pouco tempo depois, em grandes revoltas contra Roma (1ª Guerra (66-73 d.C.), Massada (73074 d.C.) e depois Bar Kochba (132-136 d.C.)). Jesus era íntimo de pessoas ricas (ex. Lázaro, Maria de Magdala e José de Arimatéia), assim como de "guerrilheiros" (ex. Simão o Zelote) e pescadores, que eram a classe mais numerosa nas cercanias do Lago de Genesaré. Ele era famoso na Galiléia e talvez até na Samaria. Porquê o pacifismo, então? Porque não impor suas idéias dentro de alguma comunidade, e ao invés disso assumir uma vida de peregrinação?
Só podemos teorizar. Uma das referências para o comportamento de Jesus pode ter vindo de seu antecessor, João Batista. Os primeiros seguidores de Jesus foram, antes, seguidores de João. Lucas até mesmo traça um parentesco entre eles, porém João deixou menos rastros que Jesus: parecia ser um pregador falando sobre arrependimento, pureza, talvez um Essênio inconformado com a realeza mantida pelos Romanos e vista, por eles, como impura.
JESUS, via MARCOS
Marcos é o escrito central dos Evangelhos, compartilhando praticamente todas as suas passagens com Mateus e ou Lucas.
Das frases de Jesus nesse texto, parece surgir a mensagem de que todo poder Lhe foi dado ("Ora, para que conheçais o poder concedido ao Filho do homem sobre a terra", Mc 2.10), que a lei não devia prejudicar as pessoas ("O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado; e, para dizer tudo, o Filho do homem é senhor também do sábado", Mc 2.27-28), que os homens são perdoáveis ("Todos os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, mesmo as suas blasfêmias", Mc 3.28), que é necessário por em prática os ensinamentos recebidos ("Aqueles que recebem a semente em terra boa escutam a palavra, acolhem-na e dão fruto", Mc 4.20), que os frutos proporcionados por Deus não são do controle dos homens ("O homem dorme, levanta-se, de noite e de dia, e a semente brota e cresce, sem ele o perceber. Pois a terra por si mesma produz, primeiro a planta, depois a espiga e, por último, o grão abundante na espiga", Mc 4.27-28), que a fé (Nele mesmo) é o canal para a ocorrência de milagres ("Filha, a tua fé te salvou. Vai em paz e sê curada do teu mal", Mc 5.34).
Jesus ensinava que as atitudes de alguém eram mais importantes que seu status ou suas palavras ("Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa manchar; mas o que sai do homem, isso é que mancha o homem", Mc 7.15) - o status de nascimento era algo muito sério, tanto nas sociedades Judaica quanto Romana. Ele anunciava que era valioso pregar sobre a Salvação, ainda que isso significasse perder sua vida ("Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, salvá-la-á", Mc 8.8). Além disso, mais valioso que tudo - inclusive as partes do corpo - era não ceder à tentação (de pecar), pois o destino dos pecadores (apesar do perdão prometido?) era o descarte ("Se a tua mão for para ti ocasião de queda, corta-a; melhor te é entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para a Gehena, para o fogo inextinguível", Mc 9.43)¹.
As riquezas provavelmente impediriam alguém de entrar no Reino de Deus ("É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus", Mc 10.25).
Embora Jesus dissesse que a Deus tudo era possível (e a Salvação competia somente a Deus fornecer), Ele também ensinava que nem todas as coisas estavam ao Seu alcance ("Quanto ao assentardes à minha direita ou à minha esquerda, isto não depende de mim: o lugar compete àqueles a quem está destinado", Mc 10.40), que havia grande valor em servir os demais ("Todo o que entre vós quiser ser o primeiro, seja escravo de todos", Mc 10.44), que o espaço sagrado não pode ser dedicado a interesses financeiros ("Não está porventura escrito: A minha casa chamar-se-á casa de oração para todas as nações? Mas vós fizestes dela um covil de ladrões", Mc 11.17).
Jesus advogava pela conversão de vontade em realidade, o que viria a ser chamado de "pensamento positivo" ("Todo o que disser a este monte: Levanta-te e lança-te ao mar, se não duvidar no seu coração, mas acreditar que sucederá tudo o que disser, obterá esse milagre. Por isso vos digo: tudo o que pedirdes na oração, crede que o tendes recebido, e ser-vos-á dado", Mc 11.23-24). Mas Ele também afirmava uma "retribuição por mal comportamento" da parte de Deus ("Mas se não perdoardes, tampouco vosso Pai que está nos céus vos perdoará os vossos pecados", Mc 11.26). Jesus mandava amar a Deus e ao próximo, além de ficar longe daqueles que se beneficiam de status dentro da comunidade religiosa ("Guardai-vos dos escribas que gostam de andar com roupas compridas, de ser cumprimentados nas praças públicas e de sentar-se nas primeiras cadeiras nas sinagogas e nos primeiros lugares nos banquetes", Mc 12.38). Além disso, Jesus fez muitas curas, exorcismos, previsões sobre a própria morte e seu significado.
Fica alguma dúvida sobre o discurso de perdão de Jesus. Por um lado, o perdão é prometido indiscriminadamente. Por outro, Deus retribui a indisposição em perdoar. Uma velha estória sobre Deus perdoar quem Ele quiser, se quiser, pelo motivo que quiser, de modo frequente. A Graça não merecida, em termos mais eclesiásticos.
JESUS, via MATEUS
Mateus foi escrito uns 30 anos depois da queda de Jerusalém, de forma mais proposital, tomando a base de Marcos e enfatizando Jesus como fruto de uma profecia, um ser celestial entre os homens. Já era o tempo da separação entre Cristãos e Judeus, e Jesus aparece muito confrontando as autoridades Judaicas enquanto oferecia ensinamentos simples ao povo.
O Jesus de Mateus ganha uma linhagem real, ligando-o ao lendário rei Davi (1000 anos antes) e mesmo a Adão, na criação dos homens. Esse Jesus tem um nascimento diferente de todos os homens ("Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo", Mt 1.18), um nome determinado por anjo, uma realização de profecia ("Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre os clãs de Judá, é de ti que sairá para mim aquele que é chamado a governar Israel", Mq 5.1) e até a lenda do Filho da Estrela ("E eis que e estrela, que tinham visto no oriente, os foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o menino e ali parou", Mt 2.9). Jesus também foi salvo de um massacre de crianças encomendado pelo rei, assim como Moisés ("Vendo, então, Herodes que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irado e mandou massacrar em Belém e nos seus arredores todos os meninos de dois anos para baixo, conforme o tempo exato que havia indagado dos magos", Mt 2.16; "Quando assistirdes às mulheres dos hebreus, e as virdes sobre o leito, se for um filho, matá-lo-eis; mas se for uma filha, deixá-la-eis viver", Ex. 1.16; "Então o faraó deu esta ordem a todo o seu povo: Todo menino que nascer, atirá-lo-eis ao Nilo. Deixareis, porém, viver todas as meninas", Ex. 1.22).
Na tradição de Mateus, Jesus também encontra João Batista perto de Jerusalém, que o reconhece como Messias, e depois Jesus vai ao deserto. Repete-se mais os menos a cronologia de Marcos. O Jesus de Mateus se põe a andar, a partir de Cafarnaum, para ensinar nas sinagogas e fazer curas prodigiosas na Galiléia. Em Mt 5, Jesus profere seu famoso Sermão da Montanha, não referido por Marcos, onde promete recompensa aos pobres e sofredores.
Entre os ensinamentos de Jesus que não aparecem em Marcos, estão não desejar recompensa pelos seus atos ("Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita", Mt 6.3; "Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á", Mt 6.6), cultivar valores religiosos ("Ajuntai para vós tesouros no céu.. Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração", Mt 6.20-21), além de estabelecer uma separação entre o que é "de Deus" e o que está voltado ao enriquecimento ("Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e à riqueza", Mt. 6.24).
De fato, pode-se dizer que Mateus apresenta um Jesus "amigo dos pobres" e que defende de forma passiva as diferenças sociais, como obras da vontade de Deus ("Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?", Mt 6. 26-27; "Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? São os pagãos que se preocupam com tudo isso. A cada dia basta o seu cuidado" (Mt 6.31-34).
Mateus se dedica bastante a estabelecer uma base Cristã para os julgamentos, não estabelecendo leis, mas através de ditos de Jesus. Ele coloca um julgamento condicional dos homens ("Não julgueis, e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos", Mt 7.1-2), além de preceitos: "Toda árvore boa dá bons frutos; toda árvore má dá maus frutos", Mt 7.17; "Mas aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática é semelhante a um homem insensato, que construiu sua casa na areia", Mt 7.26) e insiste na ação retribuitiva de Deus ("Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles", Mt 7.12). Há uma ênfase em julgar alguém por suas obras e não pelas supostas motivações (Mt 12.33-35); não permanecer sem fé (Mt 12.43-45); ouvir, compreender e colocar em prática a "palavra do Reino" (Mt 13.3-23); esperar que os mais maus dêem seu fruto para só então os julgar (Mt 13.24-30).
Além disso, o Jesus de Mateus profetiza um apocalipse Cristão dos Judeus, deixando claro que se refere a uma comunidade de Judeus convertidos: "Por isso, eu vos declaro que multidões virão do Oriente e do Ocidente e se assentarão no Reino dos céus com Abraão, Isaac e Jacó, enquanto os filhos do Reino serão lançados nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes", Mt 8.11-12). Faz parte desse Apocalipse um anúncio do Reino dos Céus, prêmio para os que perseverarem em vida. Esse Reino será muito grande e acolhedor (Mt 13.31-33); o Reino de Deus é mais precioso que tudo² (Mt 13.34-46). No final dos tempos, o Messias daria fim a todos os homens maus (Mt 13.49). Se os Judeus não o ouviram, foi porque um profeta é menosprezado em sua casa (Mt 13.57).
Jesus, como bom revolucionário pacífico, violava normas sociais em prol de um melhor entendimento sobre Deus. Ele, por exemplo, comia com Publicanos (Judeus que trabalhavam para a administração Romana) e não jejuava ("Vendo isto, os fariseus disseram aos discípulos: 'Por que come vosso mestre com os publicanos e com os pecadores?'", Mt 9.11). Além disso, Ele tirava de seu foco a condução de um rebanho de Judeus santos, como era o ideial dos Fariseus ("Ide e aprendei o que significam estas palavras: Eu quero a misericórdia e não o sacrifício. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores", Mt 9.13).
Apesar da profecia sobre o Apocalipse e a aliança entre povos que Paulo instruíra fazer, muitos anos antes, o Jesus de Mateus distinguia fortemente os Judeus dos demais povos: "Não lanceis aos cães as coisas santas, não atireis aos porcos as vossas pérolas, para que não as calquem com os seus pés" (Mt 7.6); "Não ireis ao meio dos gentios nem entrareis em Samaria; ide antes às ovelhas que se perderam da casa de Israel" (Mt 10.5-6); "Nas cidades ou aldeias onde entrardes, informai-vos se há alguém ali digno de vos receber; ficai ali até a vossa partida", (Mt 10.11)³. Jesus também inoculava confiança em Seus pregadores ("Quando fordes presos, não vos preocupeis nem pela maneira com que haveis de falar, nem pelo que haveis de dizer: naquele momento ser-vos-á inspirado o que haveis de dizer", Mt 10.19), embora saibamos que quase todos tiveram mortes terríveis.
Mateus anuncia Jesus voltando como um poderoso Salvador/Vingador, muito em breve ("Se vos perseguirem numa cidade, fugi para uma outra. Em verdade vos digo: não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que volte o Filho do Homem", Mt 10.23), o que os Cristãos da Idade Média começariam a questionar séculos depois.
Em Mateus 25, Jesus expõe muitas definições do Reino dos Céus que não apareceram em Marcos. Surgem estórias como das virgens e suas lâmpadas, os talentos e a separação de ovelhas e cabras. O Reino chegará para quem estiver preparado, para quem tiver investido seu tempo e esforço, para quem ofereceu socorro aos necessitados. Os impróprios serão expulsos. Essa premissa de chegada inesperada está no texto de Marcos, mas o Julgamento não aparece senão em Mateus, indicando que já existia um grupo suficientemente grande de Cristãos para tentarem se dispersar. As punições prometidas são sempre um bom argumento para ficarem juntos.
No capítulo 14, Mateus também registra o fim do profeta João, nas mãos do rei Herodes Antipas. E emenda nisso um relato singular do salvamento de Pedro por Jesus. Esse evento mal foi mencionado por Marcos ou, antes o foi, no sentido em que Jesus caminha à noite pela margem leste do Lago de Tiberíades / de Genesaré / mar da Galiléia, resgata um Pedro afoito que pulou na água, sendo açoitado pelas ondas perto de Betsaida, e então os ventos param. O texto de Mateus, por outro lado, apresenta um Jesus poderoso, sobre-humano: o entendimento mais tradicional do texto é o de Jesus caminhando sobre um Oceano vítreo e transmitindo a Pedro, por contato das mãos, esse poder de solidificar a água⁴.
Jesus renega explicitamente a doutrina usual dos Judeus quando manda aos seguidores "guardarem-se do fermento dos Fariseus e dos saduceus" (Mt 16.12). Tratavam-se, respectivamente, dos herdeiros da realeza pré-Romana e dos debatedores que representavam as classes populares, ambos versados na história e costumes do povo. Guardar-se da sua doutrina era, então, despir-se de toda hierarquia, direitos, deveres, etc, toda segurança em outras palavras.
"Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16.18).
Essa fala de Jesus foi muito profética: como nenhum evangelista andou com Jesus, a fonte primária dos Evangelhos parece ter sido Pedro, com seus discursos anotados por Marcos, que chegou a ele em seu encontro com Paulo (40-50 d.C.). Mateus provavelmente sabia disso, na virada do séc. 2. A Igreja como organização, entretanto, deve muito a Paulo, que efetivamente não organizou seu círculo de seguidores a partir de Pedro. Mateus traz algo da Igreja Organizada, e também das falas de Paulo ao se referir ao valor do celibato: "... há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus. Quem puder compreender, compreenda" (Mt 19.12).
Mateus também coloca na boca de Jesus "profecias" sobre a perseguição aos Cristãos, que ele deve ter vivenciado a partir do Incêndio de Roma (64 d.C) e da destruição de Jerusalém (70 d.C.) (Mt 16.25). A profecia Judaica sobre a vinda do Messias dificilmente se encaixava com Jesus. O Messias viria no final dos tempos, nascido em Belém da Judéia, descendente da casa de Davi, com Elias renascendo como seu antecessor. Jesus era Nazareno (colocou-se algo sobre um censo em que as pessoas deslocavam se para as terras familiares por conta disso), escreveram-se genealogias passando pelo rei de 1000 anos atrás até Adão, e Jesus afirma que João Batista era Elias, assim como muitos não morreriam antes do seu retorno.
"Mas eu vos digo que Elias já veio, mas não o conheceram; antes, fizeram com ele quanto quiseram. Do mesmo modo farão sofrer o Filho do Homem. Os discípulos compreenderam, então, que ele lhes falava de João Batista". (Mt 17, 11-12)
Evidentemente, Jesus recusava-se a estabelecer no Seu grupo uma hierarquia semelhante aos Fariseus e Saduceus. Mas esse era o conceito comum dos seguidores.
"Quem é o maior no Reino dos céus? Aquele que se fizer humilde como esta criança será maior no Reino dos céus" (Mt 18.1-4)
"O maior dentre vós será vosso servo. Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado" (Mt 23.11-12)
Jesus ainda "chuta o balde" e fala abertamente sobre os Escribas e Fariseus, membros da alta hierarquia social: "Os Escribas e os Fariseus sentaram-se na cadeira de Moisés. Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem" (MT 23.2-3). Seguem-se a isso muitas imprecações, ditas a uma multidão em Jerusalém ou próximo dali.
Para finalizar, Mateus também mostra conflitos entre Cristãos e Judeus: "Reuniram-se estes em conselho com os anciãos. Deram aos soldados uma importante soma de dinheiro, ordenando-lhes: 'Vós direis que seus discípulos vieram retirá-lo à noite, enquanto dormíeis. Se o governador vier a sabê-lo, nós o acalmaremos e vos tiraremos de dificuldades'. Os soldados receberam o dinheiro e seguiram suas instruções. E esta versão é ainda hoje espalhada entre os judeus" (Mt 28.12-15).
JESUS, via LUCAS
O texto de Lucas, como o próprio autor escreve, proveio de uma investigação sobre os fatos que a ele foram contados. Lucas era cronista de Paulo, então produziu sua obra em duas partes, primeiro o livro de Atos dos Apóstolos (com muito sobre Paulo) e depois o Evangelho de Lucas. Nesse evangelho, ele adicionou detalhes ao material obtido de Marcos e Mateus.
Diferente da perspectiva teológica de seus predecessores, Lucas reúne uma coleção de ensinamentos de Jesus acerca do cotidiano, na forma de parábolas. O Messias profere conselhos esparsos/fora de contexto, como no livro de Provérbios, e acredita-se que sejam ensinamentos passados durante seu percurso pelas aldeias da Galiléia, ou simplesmente ditos populares preservados pela atribuição a alguém famoso. Os ensinamentos são passados através de estórias e charadas, bem ao estilo oriental. Aí estão a estória sobre um amigo pedindo pão (Lc 11.5-8), um rico a quem Deus avisou da morte iminente (Lc 12.16-21), uma árvore que recebe cuidados e, não produzindo frutos, seria arrancada (Lc 13.6-10), um credor perdoando a dois devedores (Lc 7.41-43), o Bom Samaritano (Lc 10.30-37), Marta e Maria (Lc 10.38-42), uma mulher procurando por sua moeda perdida (Lc 15.8-9), a estória do filho pródigo (Lc 15.11-32), o administrador astuto que pedoava devedores (Lc 16.1-8), o rico e Lázaro (Lc 16.19-31), o servo e o senhor (Lc 17.7-10), o leproso Samaritano (Lc 17.11-19), o juiz displicente (Lc 18.1-8).
Entre o material teológico que Lucas adicionou está uma descrição mais esmerada da Natividade, com Jesus agora aparentado geneticamente a João Batista (Lc 1.5-56); pastores, circuncisão e uma profecia no Templo (Lc 2.8-38); a condenação por blasfemar contra o Espírito Santo (Lc 12.8-10); uma comparação entre o Fariseu e o publicano orando (Lc 18.10-14) e a estória de arrependimento de Zaqueu, o contador de impostos (Lc 19.2-9). Também entram relatos únicos de milagres, presentes apenas nesse evangelho, sobre uma mulher curvada pela ação de um espírito (Lc 13.11-13); um jovem ressuscitado perto de Naim (14 Km de Nazaré, na Galiléia, Lc 7.11-17), sobre o envio de 72 discípulos (Lc 10.1) e a cura de um homem com um grande inchaço (Lc 14.1-6).
O evangelho de Lucas, assim como o texto de Atos dos Apóstolos, faz o possível para evitar conflitos com Roma (mesmo o Paulo descrito em Atos é muitíssimo mais romano do que o Paulo descrito por ele mesmo). De fato, Lucas tentou retratar Jesus como uma espécie de mestre não político, que tratava de questões cotidianas e não se envolvia nos assuntos da dominação Romana sobre Israel. Tudo o que Jesus promete, ao voltar dos mortos, é a chegada de um Consolador.
A EVOLUÇÃO DO RETRATO DE JESUS
É interessante observar como a forma de descrever Jesus varia, mesmo nos evangelhos mais conservadores (Sinóticos). Em Marcos, temos alguém que não segue regras; em Mateus, não segue regras e também promete a intervenção divina em favor dos Judeus cristianizados (e contra os Judeus ortodoxos); em Lucas, Jesus se torna um sábio falando sobre assuntos cotidianos e a prometendo de um Espírito Consolador, poderosíssimo. Lucas atribui numerosos ensinamentos a Jesus - mas em Mateus isso toma o contexto de um discurso libertário, tendo a montanha como palanque.
O que dificilmente não figura nos discursos de Jesus é uma posição conservadora. Aliás, isso ficaria bem estranho para o fundador de uma divergência do Judaísmo. Até onde sabemos, suas falas e ensinamentos eram dados ao ar livre, nos campos (vide Lucas), na beira do lago de Genesaré (a aldeia de Cafarnaum foi um centro de sua pregações), em Sinagogas ou mesmo no Templo (vide Mateus). Quando atacava abertamente, o alvo de Jesus eram os "magnatas da fé", os ricos, os ensorbecidos pelo poder, a quem os Evangelhos se referem como Fariseus, Saduceus e Escribas. Mesmo os Romanos não eram tratados como esses. Então, não é difícil entender toda a movimentação política que resultou na prisão, tortura e assassinato Dele.
Essa movimentação teve seu ápice em Jerusalém, a cidade real, para onde a figura andarilha de Jesus se dirigiu no final de Deus dias. Provavelmente respeitado na Galiléia (terra revoltosa por natureza), ao menos em algumas aldeias, e na Samaria de João, Jesus rumou para Judéia onde João Batista pregava e foi assassinado. Esse caminho, principalmente depois de ter designado seus 12 emissários, de alguma forma, revela que Jesus desejava ser conhecido pelas multidões, talvez emendando-se à lembrança de João. E, nesse caso, o Messias pretendia abertamente dar seguimento ao movimento profético-libertário que seu predecessor (e outros) incendiaram.
A visão de Jesus como um personagem conservador, abençoador de reis e poderosos, surgiu apenas muito mais tarde, já quando Roma começava a incorporar a nova crença. Embora o Império tenha perseguido fortemente os Cristãos nos sécs. 2 e 3, isso soa bastante como uma disputa de crenças (embasadoras) dentro da aristocracia Romana quando pensamos que, pouco tempo depois, a própria nobreza aderiu ao Cristianismo⁵. O Jesus de Mateus claramente servia para um ataque aos Judeus, mas o de Lucas era bem mais adequado para uma valorização de Roma, agora como paladina da fé Cristã.
Se boa parte do Jesus "revoltoso" saiu da pena de Mateus, boa parte do Jesus "politicamente neutro" diz respeito a Lucas, que fez um trabalho semelhante quanto aos ensinamentos de Pedro e Paulo. Segundo o livro de Atos, cabe ao Cristão morrer para não abandonar sua fé, mas não cabe lutar por igualdade, nem proteger os mais fracos. Muito menos tomar os pães do Templo, anunciar a salvação para uma multidão ou resgatar pessoas em sofrimento, mesmo no Sábado. Aceitar o opressor (ainda que fosse claramente pacifista) é o que o Jesus de Mateus jamais faria. Associar o sofrimento com a impureza é algo que o Jesus de Marcos ensinaria.
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¹ Para os Judeus, assim como vários povos do Oriente Médio, a questão de pureza ritual era muito importante. Isso incluía higiene, contato com estrangeiros, com mulheres, etc. A Gehena era o local mais imundo, um vale fora das muralhas onde se amontoava e queimava lixo, cadáveres, animais, etc. Tradicionalmente era infestada de moscas, chacais, ratos, corvos, etc.
² Segundo um curioso comentário de Paulo Brabo, o Reino dos Céus também custa tudo o que você possui.
³ A parte curiosa disso é que Jesus interagia sem questionamentos com Samaritanos e Romanos.
⁴ A situação se torna menos excepcional se lembrarmos que Pedro era um dos mais velhos do grupo, um caiçara experiente da vila de Cafarnaum, na margem oeste do lago. É realmente estranho pensar que Pedro não fosse bom nadador. Ver http://loungecba.blogspot.com/search?q=Jesus+walked
⁵ O que sabemos sobre essa perseguição vem principalmente das cartas trocadas entre Plínio, o jovem e o imperador Trajano (séc. 2), assim como dos trabalhos On the Deaths of the Persecutors (Lactantius, em Alexandria) e Church History (Eusebius, bispo de Caesarea). Os dois últimos foram escritos na Roma Cristã. Nero é referido como o primeiro perseguidor, a partir do grande incêndio de Roma, em 64 d.C. No entanto, as ações do Estado geralmente eram no sentido de obrigar a uma religião coesa, politeísta, na qual se atribuía o favor dos deuses para Roma; não fazer parte dessa religião costumava ser punido com a perda de direitos e posses. As denúncias contra Cristãos então partiam de seus próximos, geralmente pessoas ofendidas ou desejando tomar algo do que fosse expropriado.
No séc. 2, a punição para criminosos (não só Cristãos) assumiu uma teatralidade mórbida, com pessoas sendo crucificadas, queimadas vivas ou devoradas por animais, tudo isso na frente de platéias.
Em 250 d.C., o imperador Décio sistematizou a obrigatoriedade de fé nos deuses romanos. Ele morreu em batalha logo depois, então até 257 d.C. não houve essa cobrança. Nesse ano, entretanto, Valeriano condenou à morte quem não sacrificasse aos deuses. Com sua captura pelos Persas, em 260 d.C. o decreto foi recindido. Em 303 d.C. a perseguição se tornou mais severa, porém já haviam famílias Cristãs entre os nobres e a lei se tornava impossível de ser universal. A partir de 305 d.C., a liberdade dos Cristãos aumentou e, em 313 d.C. o próprio imperador tinha sua mãe Cristã.
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MAIS COISAS PARA NÃO LER
Bar Kokhba revolt - wikipedia
Roman War - wikipedia
Shushma Malik, Mythbusting - Ancient Rome throwing Christians to the lions, The University of Queensland, 22/11/2016
Particularmente sempre gostei do Jesus descrito por João mas você não falou dele.
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