quarta-feira, 13 de abril de 2022

Cristianismo Taiping - como a China entrou na história do Cristianismo

 

Vale do rio Yangtze, em laranja. No litoral leste, aparecem as cidades de Nanjing e Shanghai. Mais ao norte, a atual capital Beijing.


A rebelião Taiping matou 20 milhões de Chineses entre 1850 e 1864. Nessa época, a população Chinesa era de umas 20x esse total. Para se ter uma ideia, a 2ª Guerra Mundial matou 70-85 milhões de pessoas, 50-56 milhões nos combates e 19-28 milhões nas cidades arrasadas pelo pós-guerra. Na rebelião Taiping não foi diferente: além dos combatentes mortos, estima-se que quase 40% da população Chinesa migrou ou se refugiou em outros países. Afora a enorme perda de vidas humanas, esse conflito nos interessa porque diz muito sobre o Cristianismo e nos leva a sair um pouco do Ocidente e Oriente Médio.

A CHINA ANTIGA

Muitos historiadores afirmam que a Rebelião Taiping marcou a crise da China Antiga e sua passagem para o funcionamento moderno. A China sempre foi um território muito grande, reunindo povos que falavam idiomas Cantonês (sul), Manchu (norte) e até Mongol, uma mistura de árabe e hindi (oeste). Esses muitos povos e etnias eram unidos sob um governo central que se estruturou, caiu e foi reerguido muitas vezes, sob o comando de diferentes famílias. No séc. 19, a China estava sob o reinado da dinastia Qing, originária do povo Manchu. A família Qing ocupava o trono (na verdade uma Cidade Imperial, para abrigar toda a família) desde 1636 e permaneceria até 1912, com o início da República.

Quando os Ingleses começaram a introduzir o ópio da Índia no sul da China, a nova droga tornou-se extremamente popular. Tratava-se da seiva de uma espécie de papoula, drenada das flores como látex e então seca para se tornar uma goma que as pessoas colocavam sobre brasas para aspirar a fumaça rica em morfina. Por volta de 1830, quase 10% dos Chineses eram dependentes de ópio. Além da enorme fuga de capital para a Índia, a epidemia de dependentes de ópio ia diretamente contra os valores Confucionistas praticados na China desde 550 a.C., que apontava os seres humanos como bons e aperfeiçoáveis, que ensinava a perfeição dos hábitos diários como uma manifestação da lógica divina. Por isso, os Qing baixaram normas severas contra o comércio de ópio e até contra o tráfego de Ingleses pelo país.

Para comercializar na China dos anos 1800s, um inglês precisava pagar altas taxas e ter um intermediário Chinês que respondesse por suas ações. Isso era um grande problema, pois o comércio de produtos Chineses como porcelanas, sedas e chá preto era valiosíssimo na Europa (alguém aqui pensou que os ingleses bebiam mate paraguaio?). O ópio era ilegal na China desde 1729, mas em 1833 o governo Qing apreendeu uma carga imensa, pertencente a um nobre inglês. Como resultado de muitas disputas diplomáticas por essa e outras cargas, a Inglaterra declarou guerra à China.

A China foi derrotada em 1842 e os Qing mudaram a Cidade Imperial de Nanjing para Beijing, até hoje capital da China. A ilha-porto de Hong-Kong passou a ser colônia Inglesa, os portos de Shanghai, Canton, Ningpo, Foochow e Amoy passaram a comercializar ópio e outros produtos, e os Qing foram obrigados a pagar os gastos Ingleses com a batalha. Tanto o comércio livre de ópio quanto as despesas do governo pós-guerra causaram severas perdas na qualidade de vida dos Chineses, especialmente nas áreas mais rurais do sul Cantonês. Ao mesmo tempo, os primeiros missionários Protestantes chegavam da Inglaterra nos portos Chineses, interessados em propagar o Cristianismo nesse novo mundo de desigualdades sociais. Principalmente, o Cristianismo desafiava os conceitos Confucianos de religiosidade, que incluíam a submissão dos filhos aos pais e a divindade do Imperador.

O MOVIMENTO MESSIÂNICO

Nos anos 1840s, o sul Cantonês era mais ou menos uma terra sem lei, servindo de rota para os produtos Indianos (incluindo ópio) e ao mesmo tempo sendo fiscalizado duramente pelos oficiais do governo Qing. Os traficantes Ingleses na região disputavam poder com os líderes de clãs rurais. Algumas organizações se formaram como alternativa de governo, tais como os Triads, Sociedade do Céu e da Terra, etc. Os conflitos entre essas organizações e entre elas e o governo imperial eram drásticas e comuns.

Missionários como William Milne (1785 - 1822), Edwin Stevens (1802 - 1837) e Karl Friedrich August Gützlaf (1803-1851) desembarcaram na costa Chinesa e começaram os trabalhos para traduzir a Bíblia no idioma nativo. Ensinar as línguas Chinesas a estrangeiros era proibido pelo regime Qing, o que dificultava muito essa tarefa. No entanto, pelos anos 1830s, Issachar Jacob Roberts (1802 - 1871) e um missionário local, Liang Fa (1789 - 1855), já disseminavam textos bíblicos em Cantonês. Na parte sul da China, o Cristianismo se difundia, apesar das proibições do governo Imperial. Um dos que foram influenciados pela pregação Cristã era Hong Huoxiu. Numa terra rural e empobrecida, pessoas como Hong Huoxiu, que haviam estudado, tinham como única perspectiva de enriquecimento ser aprovados nos exames para o para o Serviço Imperial. Hong Huoxiu então trabalhava como professor e fracassara em sua 3º tentativa.

Hong iniciou um processo de adoecimento mental marcado por delírios e crenças megalomaníacas. Numa de suas visões, um homem barbado e de cabelos dourados lhe dava uma espada, e outro homem jovem o chamava de irmão e instruía a destruir os demônios. Derrotando o rei do inferno, Hong ganhou permanência no paraíso e se casou com uma mulher com a qual mais tarde teve um filho. Por fim, ele retornou à Terra onde se autoproclamou Hong Xiuquan, "O Perfeito", irmão mais novo de Jesus.

Hong assumiu que a figura de cabelos dourados era Deus Pai (a quem ele identificou com Shangti, antiga divindade da tradição Chinesa). Para purgar a China do Confucionismo, ele e o primo compraram duas espadas de 1 m e 4,5 Kg, queimaram todas as estátuas e livros Confucionistas e Budistas da casa e começaram a pregar. Alguns de seus primeiros convertidos eram das minorias Hakka, Feng Yunshan e Hong Rengan, consideradas “desprezíveis” pelo governo Imperial. Os atos de Hong e de seus convertidos ao destruir estátuas e livros foram considerados sacrilégios, o que fez com que perdesse o emprego como professor. Em 1844, Hong e seus convertidos começaram a pregar pelas aldeias do vale do rio Yangtze. Começava a se formar uma comunidade chamada “Adoradores de Deus”.

Em 1847, Hong foi convidado pela sociedade Cristã denominada União Chinesa para estudar com o missionário Jacob Roberts. Dentro da tradição Chinesa, um senhorio deveria sustentar seu aprendiz e, assim, Hong pediu que Roberts o batizasse, mas Roberts rejeitou o pedido. Em 1847, os “Adoradores de Deus" tinham como líderes Feng (seu primo), Yang Xiuqing e Xiao Chaogui, que desenvolviam transes semelhantes aos do movimento Pentecostal Estadounidense, onde falavam em nome de Deus Pai (Yang) e Jesus Cristo (Xiao). Hong também começou sua tradução e adaptação da Bíblia, o que veio a ser conhecido como "Versão Taiping Autorizada da Bíblia", que ele apresentou aos seguidores da suposta religião autêntica que existia na China antes de Confúcio. Nessa “Bíblia adaptada”, os Israelitas não bebiam vinho, não apareciam relações sexuais, os homens deviam permanecer longe das mulheres e todos os Cristãos deveriam depositar seus bens em um tesouro comunitário. Como irmão mais novo de Jesus, Hong era uma autoridade inquestionável e muito mais um líder religioso do que político.

Os outros líderes, embora assumindo um papel religioso que Hong reforçava, se dedicavam mais à função política, no sentido de construir uma comunidade independente e duelando com o poder Imperial. Em 1848, a comunidade reunia pelo menos 2000 pessoas, sobretudo os Hakka e foragidos do Império como bandidos e piratas. Dois anos depois, a seita de Hong declarava os Qing como emissários do demônio e chegava a 20 000 pessoas.

As repressões Imperiais deram força militar ao movimento, que começou a conquistar aldeias e cidades. Em 1850, o exército Taiping tomaria a antiga capital Nanjing e, apenas um ano depois, seria fundado o Tai Ping Tian Guon (Reino Celestial da Grande Paz).

A RELIGIÃO TAIPING

Em seu tempo, os seguidores de Hong se tornaram extremamente numerosos, combinando minorias excluídas pelo Império, pessoas que sobreviviam nas “bordas” do reino, camponeses de uma região pobre revoltados com os Qing e crentes. Grande parte das aldeias no vale do rio Yangtze se juntaram ao movimento, que terminou não por um colapso interno, mas por derrota militar. Há muito a aprender com a organização do credo de Hong.

Primeiro, Hong dava indícios de ser seriamente afetado por delírios que o colocavam na função de um Messias destinado a mudar todo o mundo Chinês. Seu sucesso em administrar os seguidores provavelmente vinha de delegar o poder político a vários sub-reis. Durante as batalhas, os reis se desentenderam e ocorreu mesmo de um matar o outro para tomar-lhe a coroa, mas isso não prejudicou seriamente a dominância de Hong.

Esse “visionarismo revolucionário” que Hong mostrava aparece em muitos profetas do Antigo Testamento, começando com Moisés desafiando o faraó.. Elias desafiou o rei Acab no séc. 9 a.C., Daniel desafiou o descendente de Nabucodonosor, e por aí vai. No Novo Testamento, Paulo inicia sua carta aos Gálatas com a frase “Mas faço-vos saber, irmãos, que o evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens. Porque não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo” (Gálatas 1.11,12) e isso levou ele a desafiar Roma, ainda que pacificamente. Não faltam exemplos como Francisco de Assis em 1224 vendo Jesus crucificado a lhe pedir que reparasse Sua Igreja, ou Joana d’Arc em 1428, testemunhando para o rei Carlos VII da França sobre suas visões do arcanjo Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina pedindo para que ela libertasse a França do domínio Inglês.

É obviamente difícil julgar a proposta de um profeta, pois mesmo aqueles apontados pela Bíblia como “santos” tiveram vitórias e depois derrotas, formando reinos também “santos” que se levantaram e caíram. Dentro do Cristianismo, podemos dizer que Hong se desviava bastante dos Evangelhos no sentido em que ele liderava um movimento de purificação e substituição de uma nobreza por outra, muito mais do que um auxílio aos desamparados. Tal auxílio existiu no sentido em que minorias étnicas como os Hakka passaram a ter lugar na administração de Hong, enquanto não tinham nenhum lugar sob o governo Qing. Mas o Cristianismo era um pretexto político: a própria figura de Jesus era bem marginal, servindo apenas para validar a divindade do próprio Hong.

Uma inovação importante dos Taiping foi a concepção de um Deus Pai pessoal. Isto é, mesmo um camponês poderia (e deveria) fazer orações e sacrifícios para Deus. Na China Antiga, apenas o Imperador e seus mais próximos podiam se comunicar com divindades. Os demais deveriam tratar o Imperador como Deus, mais ou menos numa escala de hierarquia. Em 1851, Hong proibiu os oficiais de usarem títulos como Supremo, Senhor e Pai, pois tais referências somente seriam aplicáveis a Deus.

Hong e seus apoiadores construíram uma forma própria de Cristianismo, o que se enquadra na categoria de Seita. Eles combinaram tradições rurais e elementos do Confucionismo na sua fé (como Shangti e a separação das mulheres), rejeitando elementos culturais do Oriente Médio antigo que a Bíblia traz. Também as inconsistências morais da Bíblia (resultado de 1500 anos de escrita, passando de mãos entre uma sociedade agropastoril, o Egito, o Reino de Jerusalém, o Império Babilônico, a Grécia de Alexandre o Grande e depois a dominação Romana) foram removidas. De fato, o texto bíblico é uma coleção de mais de 60 livros, feitos em épocas muito diferentes e boa parte deles revendo acontecimentos bem anteriores a sua escrita. O Gênesis, por exemplo, estima-se que tenha sido composto por volta de 600 a.C., no reinado do rei Josias (640 - 609 a.C.), a partir da organização de documentos antigos que foram encontrados. As referências sobre o Egito, principalmente por parte do governo de Salomão, no entanto, fazem pensar em informações guardadas desde 1500 a.C. Dentro do Novo Testamento, o livro mais antigo provavelmente é a 1ª Carta aos Tessalonicenses, datada de 50 d.C. (repare que Paulo, autor da carta, não conheceu Jesus). O primeiro dos evangelhos foi Marcos, cujo autor provavelmente andou com Paulo, e cuja obra data de 70 d.C., quando ele assumiu o bispado de Alexandria. Essa colcha de retalhos históricos faz parte do Cristianismo, não podemos simplesmente escolher uma estória única.

Os Taiping eram monoteístas, porém não no sentido Cristão (os Cristão são menos monoteístas). Para eles, Deus não assumia uma estranha personalidade trina como Pai, Filho e Espírito Santo. O Espírito Santo era desconsiderado, o Filho apenas um homem embutido de poderes pelo Pai. Hong, embora não alegasse qualquer poder, afirmava uma irmandade espiritual com Jesus (Chiu-shih-chu t'ien-hsiung yeh-suv (Jesus o irmão mais velho que salva o mundo). Os Taiping também não se consideravam um 'povo escolhido' (os Pentecostais curiosamente se consideram), mas acreditavam ser os restauradores da fé Chinesa original. Isso não tem fundamento histórico: antes do Confucionismo (que tirava de certa forma as divindades do culto), os Chineses eram politeístas, admitindo práticas Budistas e com Shang-ti como uma espécie de Zeus controlando outros deuses, espíritos dos mortos, a vitória militar, colheitas e inundações do rio Yangtze.

Os Mandamentos tinham uma centralidade no culto Taiping. Eles eram receitados em todos os Sabbaths e os acusados de violar tais Mandamentos eram açoitados ou torturados em público. No entanto, mesmo eles foram alterados para favorecer a ideologia de Hong. A instrução contra adorar "outros deuses" foi modificada para "deuses pervertidos", o que significava uma aceitação de outras divindades (de fato adoradas por muitas etnias no sul da China) desde que elas fossem submissas a Hong. O Sabbath era respeitado seriamente, assim como a submissão dos filhos aos pais. "Não adulterarás" foi expandido para incluir homens permanecerem juntos de mulheres, ter pensamentos proibidos ou usar ópio.

O recurso às antigas legislações Judaicas já foi uma ferramenta de dominação em vários grupos religiosos - elas permitem punir e demonstrar poder. Na prática, a legislação de Moisés (Êxodo 20-40) beira os 200 Mandamentos e trata de questões familiares, terras, manuseio de animais, saúde pública, culto religioso, etc… Assumir tradições Hebraicas tornou-se comum a partir do Reavivamento Protestante, propagandeando-se a antiguidade bíblica como um ideal de sociedade organizada. A busca por esse ideal coloca o caminho do Velho Testamento, mais especificamente o seguimento de todas as leis, como um caminho para alguém ser querido/favorecido por Deus. Embora trate-se de uma interpretação Cristã atual, isso vai bastante contra a idéia de humildade perante Deus defendida por Jesus. Ele mesmo violou ou reescreveu vários desses Mandamentos, despertando o repúdio dos governantes Judeus.

Os Chineses já conheciam o Cristiasmo desde antes do início da dinastia Qing, com a chegada de Portugueses em Macau, na parte mais sul do país, em 1557. Porém, a ideologia Católica sempre foi fortemente combatida pelo Império e permaneceu restrita à região de Macau. O segundo contato com o Cristianismo se deu após a 1ª Guerra do Ópio (1839 - 1842), com o governo Imperial enfraquecido e os Ingleses trafegando facilmente pelo sul Cantonês. O Cristianismo Taiping surge dessa segunda entrada do Cristianismo, absorvendo ensinamentos do Reavivamento Protestante, que levou missionários para a China nos sécs. 18-19. Esses elementos “Pentecostais” incluíam a possessão por entidades, porém imitando os cultos Espíritas (também da Inglaterra), com certos indivíduos incorporando certas entidades. Além de Hong como equivalente de Jesus (e assim afirmando a divindade do Imperador exatamente como no Confucionismo), os Taiping tinham representantes corporais de Deus Pai e do próprio Jesus, capazes de entrar em transe e falar para o povo em nome dos Céus.

Nos anos 1840s, Hong instituiu o Batismo e ele mesmo batizou todos os seus seguidores. À medida que o grupo cresceu, outros passaram a SE batizar. Mas, já em 1847, Hong teve seu próprio Batismo negado. Dentro do Cristianismo, a primeira referência que temos sobre Batismo é João “Batista” desenvolvendo esse rito no rio Jordão, para remissão dos pecados através do arrependimento (Marcos 1.4). O próprio Jesus passou pelo ritual de Batismo, o que é entendido como sendo um rito passado de um Cristão mais antigo para um mais novo. Quanto a ser praticado por uma autoridade, Filipe é referido como tendo batizado um eunuco do reino de Meroe (sul do Egito) que passava pela estrada entre Jerusalém e Gaza (Atos 8.38). A prática do Auto-batismo parece ser original do culto Taiping, e faz referência a rejeição que a Seita tinha por parte dos muitos missionários circulando pela China. De fato, o não reconhecimento dos Taiping como Cristãos foi um dos motivos de eles não receberem apoio Inglês. Os Ingleses, mais tarde, seguiriam a estratégia comercial de oferecer ajuda militar aos Qing em troca de favores fiscais. Desde o missionário Roberts, vários outros (inclusive Católicos) foram enviados até os Adoradores de Deus entre 1853 e 1861 para questionar sua fé. A resposta foi inicialmente política, com Hong assumindo o sistema Ariano (uma heresia, segundo Roma) até a completa repulsão dos missionários que foram enviados pelos EUA. De forma simples, Hong afirmava que sua revelação sobre Deus e Jesus era superior a todas as tradições Cristãs, estando ele em perfeita comunhão com Deus e Moisés. A similaridade entre os Adoradores de Deus e os “filhos de Israel no Egito”, de fato, era amplamente reforçada pelo movimento.

A Rebelião Taiping se alimentou da desorganização governamental em Canton. Quando os Taiping atingiram províncias mais educadas, estudiosos eminentes como o general Tseng Kuo-fan (1811 - 1872) rejeitaram a ideologia Taiping e ajudaram os Qing a desmantelar o levante. Esses “homens educados” eram cerca de 6 milhões de Chineses concentrados sobretudo no norte Manchu e constituíam exemplos ou referências; eram artistas, poetas, escritores - homens moralmente superiores para guiar a população de suas localidades. Os “homens educados” eram cercados de regalias e tiravam seu suporte do ensino Confucionista de obediência e hierarquia. Tais intelectuais rejeitaram fortemente os Taiping - em especial suas idéias de igualdade entre os homens e aceitação num Paraíso simplesmente mediante a conversão religiosa. Eles acabaram enfraquecendo muito a divulgação Taiping nas zonas mais urbanas do país, o que restringiu o movimento aos espaços rurais.

O FIM DOS TAIPING

Até 1860, os Taiping expandiram seu Reino Celestial até controlar o vale do rio Yangtze, anexando as províncias Jiangsu, Anhui, Hubei, Jiangxi, Zhejiang e até ocupando a antiga capital Nanjing. Trata-se de uma grande planície agrícola cortando a China de oeste para leste, com o rio sinuoso dificultando manobras militares. Para combater um inimigo que se espalhava em território imenso, os Qing permitiram aos clãs locais terem seus próprios exércitos. Isso não acontecia desde a dinastia Han, que unificou a China. Os acordos entre os Qing e a Inglaterra forneceram não apenas homens, mas também armamento ao Império.

O conflito entre o Império e os Taiping foi terrível em termos da morte de pessoas. Todos os Taiping foram sumariamente condenados à morte por traição contra o Imperador. Já em 1854, o exército Taiping estava cercado e sem alimentos. Hong então disse que sobrevivessem comendo "maná", ou - em sua compreensão - ervas silvestres. Ele próprio não sobreviveu assim e os últimos revoltosos foram esmagados pela união de tropas Imperiais, Inglesas e Indianas. Com a nova configuração das tropas Imperiais, os Taiping passaram a ser atacados de forma descentralizada, perdendo batalha após batalha e terminando destruídos em 1864.

Os métodos Chineses de guerra eram extremamente violentos e o conflito Taiping era visto, por eles mesmos, como uma disputa étnica. Geralmente não eram poupados os feridos nem feitos prisioneiros. Durante a pior fase dos conflitos, os Taiping chegaram a decapitar 100 mil Manchus enquanto cantavam. De forma análoga, as tropas Imperiais arrasaram completamente pelo menos 600 cidades, matando pelo menos 1 milhão de Hakkas, na taxa de 30 mil por dia.

A China vivia uma crise populacional nos anos 1840s. A perda severa de mão de obra durante a Rebelião foi, de certa forma, o estopim para uma "transformação Malthusiana'', ou seja, a mudança para uma forma de trabalho mais voltada ao avanço tecnológico, com menos emprego de pessoas e mais produtividade. As zonas rurais Chinesas que passaram pelo regime Taiping experimentaram um largo desenvolvimento tecnológico, de alfabetização populacional (antes, apenas os “homens educados” podiam ler), infraestrutura e organização, observáveis mesmo hoje. Como resultado, essas províncias com exércitos próprios logo estariam lutando entre si e desafiando o governo Qing por privilégios. Isso levaria à queda da monarquia Chinesa, em 1912.

A divulgação Cristã na China cresceu significativamente desde o misionário Robert Morrison em 1807, porém de forma ilegal. Ironicamente, o Cristianismo ganhou força após a 1ª Guerra do Ópio em 1842. O movimento de contenção do Cristianismo pelos Qing foi definitivamente refreado pelos acordos feitos com os Ingleses desde então: em 1870, estimavam-se 400 mil Chineses cristianizados; em 1885, esse número chegava a 560 mil; no início do séc. 20, beirava 1,5 milhões.

Algumas idéias difundidas entre os Taiping se mantiveram, mesmo com a destruição do movimento e de todos os seus integrantes. Entre elas estava a propriedade comunal das terras agrícolas. Líderes como Sun Yat-sen (1866 - 1925, primeiro presidente Chinês) e Mao Zedong (1893 - 1976, chefe do movimento Comunista) foram definitivamente influenciados por essa concepção de uso da terra, um pouco como era a distribuição de bens na Igreja Primitiva. Após a Revolução Comunista (1949), em 1966 todas as religiões foram banidas da China. Porém, desde os anos 1980s o governo Chinês permite a existência de algumas igrejas Protestantes e Católicas, cuja liderança permanece subordinada ao Partido Comunista.

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ANOTAÇÕES DA CHINA


BOARDMAN, Eugene P. Christian influence upon the ideology of the Taiping Rebellion. The Journal of Asian Studies, v. 10, n. 2, p. 115-124, 1951.

BURTON, Ernest De Witt. The Earliest Letters of the Apostle Paul. The Biblical World, v. 6, n. 3, p. 203-212, 1895.


Confucianism - wikipedia

DEEKS, Ian. An Arrogant Rejection of Foreign Ideas or a Tactful Rejection of Subservience?: The Gentry’s Rejection of Christianity in Nineteenth Century China. China in World History Series, v. 2, 2008.


Hong Xiuquan - wikipedia

Opium Wars - wikipedia

Petruzzello M, St Pauls contributions to the new testament, britannica.com

SMALARZ, Matthew. Hong Xiuquan and the Subversion of Christianity. The Histories, v. 2, n. 2, p. 6, 2019.

Qing dynasty - wikipedia

XU, Lixin Colin; YANG, Li. Stationary bandits, state capacity, and the Malthusian Transition: The lasting impact of the Taiping Rebellion. World Bank Policy Research Working Paper, n. 8620, 2018.

Um comentário:

  1. É um assunto bastante diferente, senti falta de algumas imagens para ilustrar o apanhado histórico.

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