terça-feira, 26 de abril de 2022

O Evangelho de Paulo



Basílica de São Paulo, em Roma - ilustração feita após o incêndio de 1823. Em um texto de Caio, o presbítero, do séc. 3, cita-se: 'Mas posso apontar a morada dos Apóstolos; pois se você for ao Vaticano ou à Via Ostiana, encontrará o repouso daqueles que fundaram esta Igreja'.

O Cristianismo começou com Pedro liderando o grupo que antes era encabeçado por Jesus. Mas essa crença foi disseminada sobretudo por Paulo de Tarso, em suas viagens pelo Mediterrâneo. Paulo era um Fariseu (isto é, um debatedor das Sinagogas) nascido na Grécia, bem educado e conhecedor da legislação Romana. Após um evento transformador no caminho entre Jerusalém e Damasco/Síria, ele aderiu ao Cristianismo e fundou muitas igrejas no mundo Romano, até morrer na prisão ou ser executado. Seus restos mortais estão guardados até hoje num prédio sagrado de Roma, chamado sugestivamente de Basílica de São Paulo. Grande parte do Novo Testamento são cartas que Paulo escreveu para as igrejas que ele mesmo fundou. Muitas dessas cartas foram produzidas enquanto ele estava encarcerado.

Sobre Paulo e muitas outras coisas, os sécs. 1 e 2 não deixaram tantos vestígios quando gostaríamos. Era uma época de conflitos internos muito sérios no Império Romano; até o grande incêndio de Roma (18-23 / julho / 64 d.C.) e a famosa erupção do Vesúvio (24-25 / outubro / 79 d.C.) aconteceram nesse período. Não sabemos o que Paulo pregava quando chegava nas cidades Romanas. As obras que temos são textos feitos para igrejas já existentes, ainda que jovens. Aparentemente, em muitas viagens missionárias Paulo estava acompanhado de uma mulher grega chamada Tecla, e os textos deixados por ele foram escolhidos ou modificados por seus aprendizes de forma a ocultar o nome dela. O detalhe intrigante é a data dessas cartas, escritas antes de 56 d.C. O Evangelho mais antigo, nomeado como da autoria de João Marcos, um aprendiz de Paulo e depois bispo de Alexandria, data de aprox. 60 d.C., depois de Paulo estar morto.

Não há pinturas ou prédios especiais retratando a vida de Jesus que sejam anteriores ao séc. 3 d.C. No entanto, se Marcos produziu seu texto pós-biográfico tardiamente, servindo de modelo para os textos seguintes, podemos estar certos que as informações sobre Jesus chegaram até ele. Aparentemente, era uma tradição oral, não um material escrito.

Em outras palavras, não faz sentido procurar nas cartas de Paulo por elementos dos Evangelhos: eles não existiam ainda, pelo menos não como textos. Seria mais correto procurar nos Evangelhos por elementos da pregação de Paulo. Também podemos pensar: o que Paulo sabia sobre Jesus, para ensinar às igrejas que fundava? Ele não andou com o Messias que pregava; então, exatamente o que Paulo sabia?

O APRENDIZADO DE PAULO

Paulo teve sua experiência religiosa em 34-37 d.C., na Síria. Ele passou por um tempo de estudo em comunidades Cristãs que já existiam fora de Jerusalém e então partiu como pregador para várias cidades costeiras no Mediterrâneo, eventualmente retornando para Antioquia/Síria. Já na 2ª viagem missionária, Paulo começa a escrever para as igrejas que fundou. A cronologia das cartas de Paulo é a seguinte: 1ª e 2ª Tessalonicenses (51 d.C., escritas em Corinto/Grécia), Gálatas e 1ª Coríntios (52 d.C., escritas em Antioquia), Filipenses, Filemon e 2ª Coríntios (53-54 d.C., escritas em Éfeso/Grécia e Jerusalém), Romanos (55-56 d.C., escrita em Corinto), Efésios, Colossenses, Filipenses, Filemon, 1ª e 2ª Timóteo, Tito (57-59 d.C., escritas enquanto Paulo era prisioneiro em Roma).

Paulo pode ter aprendido sobre o Cristianismo em Jerusalém, onde foi recrutado como oficial para perseguir os Cristãos. Desde pelo menos 30 d.C. já circulavam documentos Romanos sobre os Cristãos. Na sua conversão em Damasco/Síria, Paulo esteve com o grupo de Ananias e foi mandado para o grupo de Pedro, em Jerusalém. Depois, ele seguiu para a igreja de Antioquia, onde passou pelo menos 1 ano. Quando voltou a Jerusalém, novamente para encontrar Pedro, ele levou consigo o jovem João Marcos, que viria a ser o primeiro Evangelista. A partir de seu retorno a Antioquia, Paulo começou a percorrer as cidades do Mediterrâneo. Foram cerca de 15 anos e 2 viagens (ida/volta) entre Jerusalém e Antioquia antes de Paulo começar a enviar as cartas que temos na Bíblia, mas ele afirma na carta aos Gálatas que seu conhecimento de Jesus foi provido pelo próprio Senhor, e não por algum homem.

A partir dos ensinamentos de Pedro, que discursava para multidões, assim como dos grupos onde esteve, é difícil pensar que Paulo não tenha aprendido sobre a vida de Jesus. No entanto, chama a atenção que as cartas não são uma exposição biográfica, como os Evangelhos - antes, são discussões de como aplicar a fé Cristã na comunidade religiosa e no entendimento da vida, sobretudo as perseguições por parte de Roma.

Paulo não conta sobre o nascimento de Jesus, nem tampouco sobre sua vida andando pela Galiléia. No entanto, ele sabia sobre uma descendência real do Senhor, como é enfatizado por Mateus e depois Lucas através de curiosas linhagens.

Romanos, Cap. 1
2. Este Evangelho Deus prometera outrora pelos seus profetas na Sagrada Escritura, acerca de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor, descendente de Davi quanto à carne, que, segundo o Espírito de santidade, foi estabelecido Filho de Deus no poder por sua ressurreição dos mortos.

Fora esse detalhe, Paulo fala somente sobre a Última Ceia, que ele mesmo instituiu como um ritual ou Sacramento.

1ª Coríntios, Cap. 11
23. Eu recebi do Senhor o que vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão e, depois de ter dado graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim.

Tal representação da Ceia é repetida por Marcos, Mateus e Lucas. O Evangelho de João, um texto provavelmente de origem Samaritana, traz uma lavagem dos pés dos discípulos. Paulo não apresenta o traidor, nem tampouco a prisão ou açoite de Jesus. Ele parte direto para o Sepultamento.

1ª Coríntios, Cap. 15
3. Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado, e ressurgiu ao terceiro dia, segundo as Escrituras, apareceu a Cefas, e em seguida aos Doze. Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maior parte ainda vive (e alguns já são mortos). Depois, apareceu a Tiago, em seguida a todos os apóstolos. E, por último de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo.

Esse relato de sepultamento de Jesus por Paulo é extremamente breve, sem referência a lugar, guardas ou anjos na tumba. Jesus simplesmente volta ao 3º dia, aparecendo para várias pessoas. Paulo não faz menção a Maria Madalena, única testemunha da ressurreição citada em todos os Evangelhos, nem às outras Marias (mal identificadas). Em Marcos, Jesus aparece para duas Marias e Salomé, depois para dois que iam ao campo, depois para os Onze (Judas já estava morto). Para Mateus, Jesus aparece a duas Marias e depois aos Onze, na Galiléia. Para Lucas, Jesus é visto por duas Marias e Joana, depois pelos Onze. Para João, a ressurreição é vista por Maria Madalena e depois pelos Onze. Então vemos, curiosamente, que a tradição relatada por Paulo sobre a Ressurreição não era a dos evangelistas que conhecemos!

Na verdade, Paulo foi até um pouco além e emendou, brilhantemente, sua própria experiência com Jesus, como se ele mesmo tivesse presenciado Jesus voltando dos mortos.

Quando Paulo fala sobre seu aprendizado do Cristianismo, também de forma breve, ele conta algo curioso:

Gálatas, Cap. 1
11. Asseguro-vos, irmãos, que o Evangelho pregado por mim não tem nada de humano. Não o recebi nem o aprendi de homem algum, mas mediante uma revelação de Jesus Cristo.

13. Certamente ouvistes falar de como outrora eu vivia no judaísmo, com que excesso perseguia a Igreja de Deus e a assolava. Avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso das tradições de meus pais. Mas, quando aprouve àquele que me reservou desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça, para revelar seu Filho em minha pessoa, a fim de que eu o tornasse conhecido entre os gentios, imediatamente, sem consultar a ninguém, sem ir a Jerusalém para ver os que eram apóstolos antes de mim, parti para a Arábia. De lá, regressei a Damasco.

18. Três anos depois, subi a Jerusalém para conhecer Cefas, e fiquei com ele quinze dias. Dos outros apóstolos não vi mais nenhum, a não ser Tiago, irmão do Senhor.

O nome "Tiago" é repetido muitas vezes no Novo Testamento. Entre os Doze, por exemplo, aparecem Thiago Maior (filho de Zebedeu) e Thiago Menor (filho de Alfeu). Além disso, Marcos se refere a um Tiago irmão de Jesus.

Marcos, Cap. 6
3. Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Não vivem aqui entre nós também suas irmãs? E ficaram perplexos a seu respeito.

Possivelmente, Paulo se refere a esse último Tiago, que andaria no grupo de Pedro, em Jerusalém. O livro de Tiago é atribuído a ele. Embora o irmão de Jesus não seja contado entre os Doze, e também não apresente um Evangelho, podemos supor que tanto Pedro quanto ele guardassem uma narrativa em primeira mão sobre a vida de Jesus, de quem Paulo teria aprendido.

Ainda, vale pensar que essas duas testemunhas, assim como os outros Dez, na verdade, não deixaram relatos sobre a vida de Jesus. Tiago, em especial, deixa uma recomendação forte sobre cuidar dos mais necessitados. Isso não é diferente do ensino de ensino de Paulo aos Coríntios:

1ª Coríntios, Cap. 13
1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine.

2. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada.

3. Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos Pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria!

2ª Coríntios, Cap. 9
12. Realmente, o serviço desta obra de caridade não só provê as necessidades dos irmãos, mas é também uma abundante fonte de ações de graças a Deus.

Tal serviço Cristão aparece muito nos Evangelhos, marginalmente ou, pelo menos, com a conotação textual de demonstrar a divindade de Jesus. É possível que o grupo de Pedro, do qual Paulo aprendeu, partilhasse entretanto da forma de Paulo ensinar.


O CRISTIANISMO SEGUNDO PAULO

Para Paulo, o Cristianismo não se iniciava com a vida de Jesus, e não havia o que imitar nos atos do Senhor. O Cristianismo era pós-Jesus, se iniciava com sua morte e ressurreição. De fato, ele via Jesus como tendo SE entregado para ser crucificado na forma de um sacrifício a Deus. Esse sacrifício significaria o perdão do Pecado Original e a aproximação definitiva entre Deus (na forma do Espírito Santo) e os homens. Tal aproximação separaria comportamentos Carnais (dirigidos pelo Pecado) de comportamentos Espirituais (dirigidos por Deus). Não há paralelo disso nos Evangelhos.

Romanos, Cap. 5
12. Por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram... De fato, até a lei o mal estava no mundo. Mas o mal não é imputado quando não há lei.

14. No entanto, desde Adão até Moisés reinou a morte, mesmo sobre aqueles que não pecaram à imitação da transgressão de Adão (o qual é figura do que havia de vir).Mas, com o dom gratuito, não se dá o mesmo que com a falta. Pois se a falta de um só causou a morte de todos os outros, com muito mais razão o dom de Deus e o benefício da graça obtida por um só homem, Jesus Cristo, foram concedidos copiosamente a todos.Nem aconteceu com o dom o mesmo que com as conseqüências do pecado de um só: a falta de um só teve por conseqüência um veredicto de condenação, ao passo que, depois de muitas ofensas, o dom da graça atrai um juízo de justificação.

17. Se pelo pecado de um só homem reinou a morte (por esse único homem), muito mais aqueles que receberam a abundância da graça e o dom da justiça reinarão na vida por um só, que é Jesus Cristo!

18. Portanto, como pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida. Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão justos.

20. Sobreveio a lei para que abundasse o pecado. Mas onde abundou o pecado, superabundou a graça. Assim como o pecado reinou para a morte, assim também a graça reinaria pela justiça para a vida eterna, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.

É interessante que, mesmo tendo sido compostos por seguidores de Paulo (pelo menos Marcos e Lucas), os Evangelhos Canônicos não apresentam Jesus com uma clara distinção entre Carne e Espírito.

Lucas, Cap. 24
38. Mas ele lhes disse: Por que estais perturbados, e por que essas dúvidas nos vossos corações? Vede minhas mãos e meus pés, sou eu mesmo; apalpai e vede: um espírito não tem Carne nem ossos, como vedes que tenho. E, dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e os pés. Mas, vacilando eles ainda e estando transportados de alegria, perguntou: Tendes aqui alguma coisa para comer?

Ao invés disso, a distinção "paulina" e de fato derivada dos ensinos de Platão (428-348 a.C.), aparece no evangelho de João, o mais tardio de todos.

João, Cap. 1
9. [O Verbo] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Mas a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus,os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da Carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus.

14. O Verbo se fez Carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade.

Assim, considerando a provável origem Samaritana do evangelho de João (séc. 2 d.C.), assim como a inimizade entre Judeus e Samaritanos, mesmo durante a ocupação Romana, podemos curiosamente pensar que o texto de João seja um fruto tardio da pregação paulina aos Gentios. O elemento paulino transparece muito menos nos Evangelhos Canônicos, amplamente influenciados pela tradição Judaica dos grupos onde foram compostos.

Paulo também tinha formação Judaica e trazia fortes sinais disso na sua crença sobre a Ressurreição. O Messias dos Judeus viria no último dia da humanidade, para resgatar seus fiéis, e Paulo via esse Messias em Jesus.

1ª Tessalonicenses, Cap. 4
16. Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá do céu e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós, os vivos, os que estamos ainda na terra, seremos arrebatados juntamente com eles sobre nuvens ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor.

Os Evangelhos também trazem essa idéia, como um evento futuro associado a Jesus.

Marcos, Cap. 14
61. Mas ele calou-se, e nada respondeu. O sumo sacerdote lhe tornou a perguntar, e disse-lhe: És tu o Cristo, Filho do Deus Bendito? E Jesus disse-lhe: Eu o sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu.

Sobre os eventos pós-Ressurreição, Paulo não diz nada. Nos Evangelhos, há relatos vagos sobre muitos feitos de Jesus ressuscitado. Marcos e Mateus falam sobre uma ordem para ir pelo mundo e batizar. Em Lucas, Jesus preside a uma ceia póstuma, come com os discípulos e leva-os de Jerusalém para Betânia. Em João, Ele fez “muitos feitos”, apareceu junto ao mar de Tiberíades, repetiu a pesca fantástica, comeu com os discípulos, falou em particular com Pedro. Pela data tardia de composição dos textos, esperaríamos encontrar detalhes dos feitos de Jesus, e não há nenhum (mesmo a pesca de João parece-se muito com a repetição de um trecho anterior). Isso faz pensar em uma tentativa de emendar no texto ditos sobre Jesus que não circulavam de forma organizada, como se alguém montasse uma colcha de retalhos. Há falta de sincronia entre os Evangelhos e o texto de Lucas, em especial, tem esse aspecto de retalhos emendados.

Possivelmente, os conhecimentos de Paulo sobre Jesus tinham essa forma desorganizada, anterior aos textos que conhecemos. Na composição desses textos, tanto a ordem dos fatos foi “editada” como alguns eventos foram retirados e se perderam no tempo.


ENSINOS DE JESUS

Por fim, dentro da idéia de um Evangelho oral, fragmentado, vale a pena trazer alguns outros ensinamentos Cristãos que aparecem nos textos de Paulo e mais tarde fariam parte dos Evangelhos.

No método de ensino Oriental, decorar e enumerar vários mandamentos, tradições, provérbios ou sabedorias era uma forma de demonstrar sapiência. Mateus e Lucas estendem bastante seu texto ao tentar reunir tais sabedorias - provavelmente disseminadas entre o povo da Galiléia - como falas de Jesus. Quando tentam “encaixar” assuntos muito diferentes, esses evangelistas produzem algo exótico e retalhado como o “texto” de Provérbios. Paulo também deixa transparecer seu conhecimento de alguns desses ensinos.

ABA - Um desses ensinamentos, bastante significativo, é o uso da expressão "Aba, pai", uma forma carinhosa de se dirigir a Deus como se fosse uma filho falando ao Pai. Trata-se de uma expressão única de Jesus, bastante incomum dentro do Judaísmo. Paulo, no entanto, a utiliza duas vezes:

Romanos, Cap. 8
15. Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai!

Gálatas, Cap. 4
6. A prova de que sois filhos é que Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!

AMOR AOS INIMIGOS - A escola de Salomão já sinalizava o perdão como forma de conseguir a paz. Esse comando é caracteristicamente repetido por Jesus e por Paulo.

Provérbios 25
21. Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer; e se tiver sede, dá-lhe água para beber; porque assim lhe amontoarás brasas sobre a cabeça; e o Senhor te retribuirá.

Romanos, Cap. 12
17. Não pagueis a ninguém o mal com o mal. Aplicai-vos a fazer o bem diante de todos os homens. ... 19. Não vos vingueis uns aos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: A mim a vingança; a mim exercer a justiça, diz o Senhor. Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber. Procedendo assim, amontoarás carvões em brasa sobre a sua cabeça.

Mateus, Cap. 5
38. Tendes ouvido o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. ... 43. Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem. Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos?

PAGAMENTO JUSTO DAS DÍVIDAS - Num episódio bem característico, Jesus foi desafiado quanto a sua fidelidade (financeira) para com Roma. Paulo repete a fala icônica do mestre quase como aparece nos Evangelhos.

Romanos, Cap. 13
7. Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito.

Marcos, Cap. 12
14. ... É permitido que se pague o imposto a César ou não? Devemos ou não pagá-lo? Conhecendo-lhes a hipocrisia, respondeu-lhes Jesus: Por que me quereis armar um laço? Mostrai-me um denário. Apresentaram-lho. E ele perguntou-lhes: De quem é esta imagem e a inscrição? De César, responderam-lhe. Jesus então lhes replicou. Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. E admiravam-se dele.

AMOR AO PRÓXIMO - Esse ensino Cristão, bastante divulgado, aparecem no texto de Paulo sintetizado aos 10 Mandamentos.

Romanos, Cap. 13
8. A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, a não ser o amor recíproco; porque aquele que ama o seu próximo cumpriu toda a lei. Pois os preceitos: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e ainda outros mandamentos que existam, eles se resumem nestas palavras: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. ... 10. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é o pleno cumprimento da lei.

Marcos, Cap. 12
29. Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é este: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que estes não existe.

RESTRIÇÕES ALIMENTARES - Essa fala bastante notória de Paulo, que desafiava os preceitos alimentares dos Judeus e o conectava com a pregação aos Gentios, também surge nos Evangelhos. Apesar disso, a relação de Jesus com animais “impuros” como os porcos não é de proximidade.

Romanos, Cap. 14
14. Estou convencido no Senhor Jesus de que nenhuma coisa é impura em si mesma; somente o é para quem a considera impura.

Marcos, Cap. 7
15. Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa manchar; mas o que sai do homem, isso é que mancha o homem.

CHEGADA INESPERADA DO JUÍZO - A expectativa de um julgamento inesperado, antes que as pessoas tenham tempo de pedir perdão por seus atos, é um aviso bastante explorado por Mateus e Lucas, com diversas imagens evocadas.

1ª Tessalonicenses, Cap. 5
3. Quando os homens disserem: Paz e segurança!, então repentinamente lhes sobrevirá a destruição, como as dores à mulher grávida. E não escaparão.

Marcos, Cap. 13
30. Na verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas aconteçam. Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão. Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai. Olhai, vigiai e orai; porque não sabeis quando chegará o tempo.

Nos Evangelhos, esse anúncio da tragédia muitas vezes foi entendido como uma pós-fecia, ou seja, o anúncio futuro de algo que já aconteceu, como se Jesus previsse em 30 d.C. a destruição da Cidade Sagrada pelos Romanos, o que se deu em 70 d.C. Sem dúvida é provável que Mateus e Lucas tenham feito essa conexão (pois foram escritos após o fim de Jerusalém) e estendido os relatos sobre o Apocalipse. Porém, Paulo e Marcos são sucintos e não dão a entender um período de torturas, mas simplesmente o final.

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Paulo deixou escrito no muro

Evans CA, Jesus tradition in Paul, in: Encyclopedia of the historical Jesus, p. 446-450, ed. Routledge, 2008.

Furnish VP, Jesus in Paul's Gospel, in: Jesus according to Paul - chap. 4, Cambridge University Press, p. 66-92, 2010.

https://www.conformingtojesus.com/charts-maps/en/paul%27s_letters-journeys_chart.htm

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