domingo, 19 de maio de 2013

Sodomia & Gomorria

Ló e sua família são retirados de Sodoma por anjos

Duas cidades se tornaram símbolos da ira divina e até hoje inspiram a imaginação das pessoas: Sodoma e Gomorra, símbolos da ira divina. Aqui vamos discutir um pouco sobre o que levou essas cidades à destruição e o que elas representavam para o Oriente Médio, na época em que existiram.

A primeira referência às cidades aparece no começo do livro de Gênesis, logo após Abraão e Ló dividirem entre si as terras vizinhas ao rio Jordão.

E aconteceu nos dias de Anrafel, rei de Sinar, Arioque, rei de Elasar, Quedorlaomer, rei de Elão, e Tidal, rei de Goim, que estes fizeram guerra a Bera, rei de Sodoma, a Birsa, rei de Gomorra, a Sinabe, rei de Admá, e a Semeber, rei de Zeboim, e ao rei de Belá (esta é Zoar). Todos estes se ajuntaram no vale de Sidim (que é o Mar Salgado).

Doze anos haviam servido a Quedorlaomer, mas ao décimo terceiro ano rebelaram-se. E ao décimo quarto ano veio Quedorlaomer, e os reis que estavam com ele, e feriram aos refains em Asterote-Carnaim, e aos zuzins em Hã, e aos emins em Savé-Quiriataim, e aos horeus no seu monte Seir, até El-Parã que está junto ao deserto. Depois tornaram e vieram a En-Mispate (que é Cades), e feriram toda a terra dos amalequitas, e também aos amorreus, que habitavam em Hazazom-Tamar.

Então saiu o rei de Sodoma, e o rei de Gomorra, e o rei de Admá, e o rei de Zeboim, e o rei de Belá (esta é Zoar), e ordenaram batalha contra eles no vale de Sidim, contra Quedorlaomer, rei de Elão, e Tidal, rei de Goim, e Anrafel, rei de Sinar, e Arioque, rei de Elasar; quatro reis contra cinco.

E o vale de Sidim estava cheio de poços de betume; e fugiram os reis de Sodoma e de Gomorra, e caíram ali; e os restantes fugiram para um monte. E tomaram todos os bens de Sodoma, e de Gomorra, e todo o seu mantimento e foram-se. Também tomaram a Ló, que habitava em Sodoma, filho do irmão de Abrão, e os seus bens, e foram-se. (Gn 14.1-12)

Trata-se de uma cena de guerra ocorrida por volta de 3000 a.C. O território ao redor do Jordão era povoado por pastores e agricultores que habitavam vilas sob o domínio ou ao redor de cidades-estado rodeadas por muralhas. Várias delas são citadas nesse trecho. Sodoma, Gomorra, Admá (ou Adamá), Zeboim e Belá (Zoar) eram as chamadas cidades da planície, uma faixa de terra muito fértil e irrigada ao redor do Mar Morto (ou também Mar Salgado). Aparentemente, as cidades-estado exerciam poder político umas sobre as outras, o suficiente para que 4 delas se rebelassem contra a principal (Elão), que também reuniu seus aliados. Como a disputa se deu nas terras de pastoreio que couberam a Ló (isto é, o leste do Jordão), ele foi feito refém dessa guerra.

Anrafael é apontado pelos arqueólogos como Amirapaltu ou também Kamu-rabi, um dos grandes reis que iniciaram a unificação da Babilônia, então repartida em muitos pequenos reinos. Outros reis na região eram Khudur-Lagamar ("servo da deusa Lagamar" ou Quedorlaomer), Eri-Aku (Arioque) e Tudkhula (Tidal). Eles já haviam conquistado os Refains, Zuzins e Emins, tidos como povos de gigantes guerreiros. Aparentemente, os reis das cidades da planície rebelaram-se contra os reis babilônicos (leia-se deixaram de pagar-lhes tributos) e estes chegaram ao Jordão para reafirmar seu poder capturando as cidades rebeldes.

Abraão aparece com um exército para afastar os babilônicos, juntando suas forças com o rei de Sodoma, provavelmente a cidade mais poderosa da planície. Temos aí o aparecimento de Melquisedeque, rei de Salém (provavelmente um aliado do oeste do Jordão), a quem o poderoso Abraão entrega o primeiro dízimo registrado na Bíblia. A passagem citando o conflito de poderes, entretanto, não dá a entender sobre os usos e costumes nas cidades da planície, onde Ló (outro líder tribal) habitava com sua família (ou clã, o que pode significar centenas de pessoas).

ONDE FICAVAM AS CIDADES

As cidades da planície eram tidas como plantadas em terreno muito fértil, que Ló preferiu para si quando repartiu as terras com Abraão.

Olhou então Ló e viu todo o vale do Jordão, todo ele bem irrigado, até Zoar; era como o jardim do SENHOR, como a terra do Egito. Isto se deu antes de o SENHOR destruir Sodoma e Gomorra. Ló escolheu todo o vale do Jordão e partiu em direção ao leste. (Gn 13.10)

A Bíblia sem dúvida dá vários indícios de onde as cidades situavam-se ao redor do Mar Morto:

[Os anjos instruem a Ló] E aconteceu que, tirando-os fora, disse: Escapa-te por tua vida; não olhes para trás de ti, e não pares em toda esta campina; escapa lá para o monte, para que não pereças. (Gn 19.17) [ou seja, Sodoma - a cidade principal do vale de Sidim - ficava na planície, perto das montanhas]

Ló partiu para as montanhas e... “Apressa-te, escapa-te para ali; porque nada poderei fazer, enquanto não tiveres ali chegado. Por isso se chamou o nome da cidade Zoar. Saiu o sol sobre a terra, quando Ló entrou em Zoar.” (Gn 19.22-23). Essa cidade existe até hoje, no sul do Mar Morto. Então Sodoma deveria estar a oeste dela. Abraão podia observar Sodoma de onde estava fixado, logo, era preciso que a cidade ficasse numa altitude bem abaixo das colinas de Samaria.

Grande parte da dificuldade em se localizar hoje os restos dessas cidades da Era do Bronze (3500-2000 a.C.) está no fato de que o relevo e o clima mudaram bastante no Oriente Médio. Alguns locais submergiram sob o mar, outros eram vales férteis e hoje são parte de desertos. Rios a que os textos se referem mudaram seu curso ou desapareceram. No caso das cidades da planície, a periferia do Mar Morto mudou bastante: o Mar Morto, localizado sobre uma falha tectônica, era bem menos baixo (~ 300 m abaixo do nível do mar) do que é hoje.

Buscando vestígios de cidades na região ao redor do Mar Morto, várias ruínas soterradas foram encontradas. Como a água do Mar Morto não serve para consumo, especula-se que as cidades da planície abasteciam-se da água de vários ribeiros com 20-50 Km de extensão (dos quais só restam os leitos secos) que desciam das colinas de Moab. As cidades-ruína encontradas foram chamadas de Bab-edh-dhra (provavelmente Sodoma), Numeira (provavelmente Gomorra), Safi, Feifa e Khanazir. Despejando sedimentos no solo rico em minerais das margens do Mar Morto, os ribeiros devem ter feito da planície um terreno muito fértil, talvez até “como o jardim do Senhor”. Numa sociedade movida pelo pastoreio e cultivo de grãos, seria equivalente as cidades da planície eram a região mais rica de Canaã. As pesquisas no local encontraram, na mesma profundidade onde estão os restos da cidade, vestígios fossilizados de cevada, trigo, uvas, figos, linho, grão de bico, ervilhas, favas e azeitonas.


Cidades ancestrais e os rios fósseis que as abasteciam

Sodoma era a maior das cidades, e se a nomeação das ruínas está correta, ela ocupava uma área de 9-10 acres (~ 40 Km², ou a área da cidade de Palmas, capital de Tocantins), cercada por muralhas de pedra com 7 m de espessura. A população devia ser de aproximadamente 1000 pessoas. No lado nordeste, foram encontrados os restos do que devia ser o portal da cidade, guardado por duas torres de vigia, que davam acesso à muralha: "E vieram os dois anjos a Sodoma à tarde, e estava Ló assentado à porta de Sodoma; e vendo-os Ló, levantou-se ao seu encontro e inclinou-se com o rosto à terra" (Gn 19.1).

O imenso cemitério entre Sodoma e Gomorra e os restos miscigenados de cerâmica no local dão a entender que era uma área comum usada pelas várias cidades para seus funerais.

COM O QUE SE PARECE A IRA DE DEUS

Então o SENHOR fez chover enxofre e fogo, do SENHOR desde os céus, sobre Sodoma e Gomorra, e destruiu aquelas cidades e toda aquela campina, e todos os moradores daquelas cidades, e o que nascia da terra. E a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal. Abraão levantou-se aquela mesma manhã, de madrugada, e foi para aquele lugar onde estivera diante da face do SENHOR. Olhou para Sodoma e Gomorra e para toda a terra da campina; e viu que a fumaça da terra subia, como a de uma fornalha. (Gn 19.24-28)

De fato, as escavações arqueológicas descobriram que as cidades mais ao norte da planície foram destruídas quase simultaneamente por volta de 2350 a.C., ao que parece, em um fantástico incêndio. A ira divina pode ter vindo sobre as cidades segundo o comentário de Gênesis sobre a batalha contra os babilônicos: "Ora, o vale de Sidim era cheio de poços de betume e, quando os reis de Sodoma e de Gomorra fugiram, alguns dos seus homens caíram nos poços e o restante escapou para os montes" (Gn 14.10).

O betume é uma forma “inacabada” de petróleo, e os poços de betume são conhecidos por expelir gás metano. Tanto o gás quanto o betume são muito inflamáveis, então uma"centelha divina" poderia  transformar em enorme fogueira toda aquela região. Além disso, lembrando que o vale do Jordão está sobre uma falha tectônica, a ocorrência de terremotos ali é bem comum, e existem pesquisadores que acreditam na devastação das cidades por um tremor simultaneamente com o incêndio. É possível que uma quantidade de magma tenha vindo à superfície, incendiando os poços de betume ou fazendo jorrar betume em chamas para o alto e sobre as cidades.

Hoje, as ruínas das cidades da planície “aparecem” às margens do Mar Morto, abaixo de quase 1 m de sedimentos. Com a aridez aumentando e elevação do terreno ao longo dos milênios, os ribeiros que vinham de Moab cessaram de fluir e o Mar Morto esticou suas bordas por uma área maior e também ao sul, tragando o que restou das cidades queimadas. O número considerável de esqueletos encontrados sugere que a população não deve tempo de escapar do desastre: como na famosa erupção do Vesúvio que destruiu a cidade de Pompéia, os habitantes das cidades da planície foram carbonizados junto com as cidades, enquanto Abraão observava estarrecido, do outro lado do Mar Morto, nas colinas de Hebron.

O Alcorão (~600 d.C.) traz uma versão semelhante da destruição de Sodoma, reforçando a hipótese de uma explosão vulcânica. No texto, os anjos que retiraram Ló e sua família explicam-se:

E quando se cumpriu o Nosso desígnio, reviramos a cidade nefasta e desencadeamos sobre ela uma ininterrupta chuva de pedras de argila endurecida (sura 11.82)

Então, destruímos os demais, e desencadeamos sobre eles um impetuoso torvelinho; e que péssimo foi o torvelinho para os admoestadores (que fizeram pouco caso)! (sura 26.172-173)

E desencadeamos sobre eles uma tempestade. E que péssima foi a tempestade para os admoestados! (sura 27.58)

COMO ATRAIR A IRA DIVINA

Quando Deus anuncia a Abraão que destruiria Sodoma e Gomorra, onde Ló (e seu clã) havia ido morar, Ele diz que passaria pelas cidades em pessoa para ver se o que falavam delas era verdade:

As acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas e o seu pecado é tão grave que descerei para ver se o que eles têm feito corresponde ao que tenho ouvido. Se não, eu saberei”. (Gn 18.20)

Bem, sabemos o final dessa “inspeção divina”. O livro de Gênesis não dá evidências claras sobre o que se dava de tão terrível nas cidades da planície. No entanto, em suas visões o profeta Ezequiel cita as cidades para compará-las à Jerusalém que o Senhor também castigaria:

[Jerusalém, ] sua irmã mais velha era Samaria, que vivia ao norte de você com suas filhas; e sua irmã mais nova, que vivia ao sul com suas filhas, era Sodoma. Você não apenas andou nos caminhos delas e imitou suas práticas repugnantes, mas em todos os seus caminhos logo você se tornou mais depravada do que elas. Juro pela minha vida, palavra do Soberano Senhor, sua irmã Sodoma e as filhas dela jamais fizeram o que você e as suas filhas têm feito. Ora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: Ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados. Eram altivas e cometeram práticas repugnantes diante de mim. Por isso eu me desfiz delas conforme você viu. (Ez 16.46-50)

Dessa forma, o terrível pecado das cidades parece estar ligado à falta de generosidade e arrogância. Sodoma é citada no livro judaico chamado de Mishnah (que significa estudo, revisão). Esse livro é uma versão escrita das tradições orais no tempo dos fariseus (530 a.C. - 70 d.C.). O livro foi escrito pelo rabino Yehudah haNasi por volta de 220 d.C. Nele, encontramos

Há quatro tipos entre os homens: Aquele que diz: "O que é meu é meu e o que é seu é seu" - este é o tipo mais comum, embora alguns digam que este é o tipo de Sodoma. Aquele que diz: "O que é meu é teu e o que é teu é meu" - ele é um homem ignorante. Aquele que diz: "O que é meu é teu e o que é teu é teu" - ele é um homem santo. E aquele que diz: "O que é seu é meu, e o que é meu é meu" - ele é um homem mau. (Pirkei Avot, cap. 13)

Daí, podemos mais uma vez inferir que Sodoma e Gomorra eram cidades de egoísmo abundante. Além disso, os povos semitas valorizam por demais a lei de hospedagem, isto é, a necessidade de acolher bem aos viajantes que chegam na casa de alguém. Isso aparece implicitamente por toda a Bíblia (como por exemplo em Ex 22.21), com os espias de Josué sendo acolhidos na casa de Raabe (Js 2.1), José e Maria sendo acolhidos em um estábulo, quando não encontraram lugar para pernoitar (Lc 2.7), Jesus sendo acolhido por Zaqueu (Lc 19.5) e Paulo por Judas de Damasco (Atos 9.11). O Alcorão igualmente valoriza essa prática. Por outro lado, quando os anjos apareceram a Ló na porta de Sodoma e foram acolhidos por ele, os habitantes da cidade que os viram logo organizaram uma milícia para violentar ou humilhar os visitantes, como se fazia com os vencidos numa guerra.

Os dois anjos chegaram a Sodoma ao anoitecer, e Ló estava sentado à porta da cidade. Quando os avistou, levantou-se e foi recebê-los. Prostrou-se, rosto em terra, e disse: "Meus senhores, por favor, acompanhem-me à casa do seu servo. Lá poderão lavar os pés, passar a noite e, pela manhã, seguir caminho. Não, passaremos a noite na praça", responderam. Mas ele insistiu tanto com eles que, finalmente, o acompanharam e entraram em sua casa. Ló mandou preparar-lhes uma refeição e assar pão sem fermento, e eles comeram. Ainda não tinham ido deitar-se, quando todos os homens de toda parte da cidade de Sodoma, dos mais jovens aos mais velhos, cercaram a casa. Chamaram Ló e lhe disseram: "Onde estão os homens que vieram à sua casa esta noite? Traga-os para nós aqui fora para que tenhamos relações com eles". Ló saiu da casa, fechou a porta atrás de si e lhes disse: "Não, meus amigos! Não façam essa perversidade! (Gn 19.1-7)

Ló não era natural da cidade, mas de repente teve de se confrontar com uma prática daquele povo que todos os semitas abominariam. Muitos teólogos associam aqui uma prática homossexual disseminada em Sodoma, o que certamente não parece ser o caso, dada a atitude de Ló, inconcebível nos dias de hoje:

"Não, meus amigos! Não façam essa perversidade! Olhem, tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las para que vocês façam com elas o que bem entenderem. Mas não façam nada a estes homens, porque se acham debaixo da proteção do meu teto". (Gn 19.7-8)

A ABOMINAÇÃO DE SODOMA

Não há dúvidas de que o extermínio das cidades da planície foi um evento genocida, ou seja, com o objetivo de destruir todo um povo com determinada característica que o Senhor achou extremamente nociva ao seu povo, que começava a crescer no lado oeste do Jordão. A destruição de Sodoma e Gomorra (e demais cidades vizinhas, com exceção de Zoar) foi o 2º evento mais destrutivo da história bíblica, perdendo apenas para o Dilúvio.

As cidades da planície ficavam em território dos Cananeus (descendentes de Canaã, neto de Noé). Os Cananeus habitaram a região entre o Mediterrâneo e o vale do Jordão de 8000 a 1000 a.C., sendo conhecidos a partir de 4000 a.C. como comerciantes de azeite, vinho, pistache, trigo e cevada. Entre os principais povos com os quais se relacionavam estavam o Egito e a Suméria, que compravam tinturas de conchas. As escavações arqueológicas na região revelaram bastante sua cultura: os deuses principais eram Baal (senhor dos montes) e Astarte (a deusa da fertilidade, conhecida como Ishtar entre outros povos). Baal era retratado como um jovem guerreiro e vingador, geralmente segurando uma lança. Astarte era descrita como uma mulher sedutora, geralmente de quadris largos e seios grandes, às vezes também uma grávida.

Os cultos de Baal eram realizados ao redor de pilares sagrados nos montes (Jz 2.13, 1Rs 11.5), com o sacrifício de animais como oferenda, a exemplo do que os hebreus faziam. No entanto, entre os restos de sacrifícios foram encontrados ossos de porcos, um animal tido como imundo pelos hebreus, e também restos de crianças. Os animais e as crianças tinham seu sangue recolhido em reentrâncias com formato e tamanho de xícaras ao redor dos pilares, e depois eram enterrados ao redor deles. Já os cultos de Astarte eram realizados em templos, onde sacerdotisas e sacerdotes separados se ofereciam à prática de relações sexuais com o objetivo de produzir a reprodução dos animais e das plantas sobre a terra. Curiosamente, o povo Cananeu originalmente adorou a Javé, constituindo um contraponto aos Sumérios na região. Com o passar do tempo, entretanto, absorveram deuses Sumérios e elaboraram suas próprias divindades pagãs (isto é, ligadas à terra).

Os Cananeus também tinham lugares de adivinhação, como os gregos. Eram basicamente cavernas com espaço para 1 ou 2 pessoas, as quais se comunicavam por orifícios na pedra com outras cavernas vizinhas ocupadas pelos sacerdotes ou adivinhos. Dessa forma, as vozes dos adivinhos pareciam vir da própria terra! Vários lugares assim foram encontrados na Grécia e também em Canaã, assim como nas bordas da planície ao redor do Mar Morto, muitas vezes com objetos rituais deixados em seu interior.

O profeta Ezequiel usa a palavra “abominação” especialmente para definir os ídolos que existiam em toda terra de Canaã. Aparentemente, esse desvio de um povo originalmente ligado aos hebreus foi o que despertou a ira do Senhor, de forma semelhante ao que aconteceria mais tarde no Êxodo, quando os hebreus passaram a cultuar o deus-boi Ápis, do Egito, fazendo-lhe um ídolo revestido de ouro (Ex 32.1-6).

O texto de Judas dá uma referência diferente ao pecado de Sodoma e Gomorra:

Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram; e aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia; assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno. (Jd 1.5-7)

Aqui, Judas Tadeu, um dos apóstolos, dá a entender que grandes motivos de condenação ao inferno eram a vinda de anjos à Terra para se relacionarem com humanos (Gn 6.1-7) e a fornicação (também traduzida como prostituição) de Sodoma e Gomorra, que “foram após outra carne”. Na Bíblia, o termo “prostituição” é ligado ao ato sexual, mas também fortemente ligado à idolatria:

E sucedeu que, como Gideão faleceu, os filhos de Israel tornaram a se prostituir após os baalins; e puseram a Baal-Berite por deus. (Jz 8.33)

Quando alguém se virar para os adivinhadores e encantadores, para se prostituir com eles, eu porei a minha face contra ele, e o extirparei do meio do seu povo. (Lv 20.6)

Disse mais o SENHOR nos dias do rei Josias: Viste o que fez a rebelde Israel? Ela foi a todo o monte alto, e debaixo de toda a árvore verde, e ali andou prostituindo-se. (Jr 3.6)

O fato de “ir após outra carne” pode ter muitas interpretações, mas considerando-se as falas de Jesus, podemos entender que se trata de acreditar em homens e não em Deus, os tais “adivinhadores” que conduziam os homens e eram comuns nas cidade da planície, enfurecendo o Senhor: "Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens. E, chamando a si a multidão, disse-lhes: Ouvi, e entendei: O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem. Então, acercando-se dele os seus discípulos, disseram-lhe: Sabes que os fariseus, ouvindo essas palavras, se escandalizaram? Ele, porém, respondendo, disse: Toda a planta, que meu Pai celestial não plantou, será arrancada. Deixai-os; são condutores cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova". (Mt 15.8-14)

Um dos livros apócrifos escrito por volta de 600 a.C., conhecido como livro de Jasher (ou ainda "Sepir Ha Yasher", ou ainda Sabedoria dos Justos) comenta sobre as abominações de Sodoma e Gomorra e a batalha onde os reis da cidades da planície lutaram contra os babilônicos. Nesse livro, conta-se que habitantes das cidades costumavam ir por 4 vezes ao ano para um vale com suas famílias e lá entregarem-se a relações sexuais entre eles, trocando esposas e esposos, jovens e velhos, para depois retornarem a suas casas e ocupações sociais, sem dizer uma palavra (cap. 18). Não há como negar que esse habito se parece muito com os "bacanais", rituais pagãos de fertilidade que existiram na Grécia e em Roma, realizados nos solstícios e equinócios.

O Livro de Jasher ainda conta sobre uma lei das cidades sobre dar prata aos que apareciam pedindo por comida. Então esperavam que o viajante morresse de fome, para depois pegar de volta a prata que haviam dado. Na estória, uma das filhas de Ló ilude os homens da cidade para levar pão a um faminto e acaba sendo presa e morta numa fogueira por ter ajudado o viajante (cap. 19). Essa estória também se pareia muito bem com o tratamento dado pelos homens da cidade aos viajantes (anjos) que Ló recebeu em sua casa.

Dessa forma, embora o termo “sodomia” tenha adquirido conotações sexuais ao longo da história, Sodoma e Gomorra parecem ter sido aniquiladas devido a violações explícitas do código hebreu sobre o qual haviam surgido, tanto por sua adoração a deuses pagãos como por sacrifícios de inocentes e o enaltecimento do egoísmo como se fosse uma virtude.

O PARENTESCO COM OS HEBREUS

Esse é exatamente o ponto que coloca o genocídio das cidades como uma eliminação daquilo que poderia se propagar ao povo de Abraão, no lado oeste do Jordão. Por volta de 2350 a.C. A dinastia dos reis nas cidades da planície era aparentada com os hebreus. A aceitação de Ló e seu clã em Sodoma mostra exatamente isso: se era lei matar de fome os estrangeiros ou quem os ajudasse, como Ló se estabeleceu facilmente lá, vindo dentre os Caldeus junto com Abraão?

Também, quando o Senhor revela a Abraão o seu plano para destruir as cidades, Abraão começa uma espécie de “pechincha” para convencer o Senhor a não realizar Seu intento.

Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra? Então disse o SENHOR: Se eu em Sodoma achar cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles. E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza. Se porventura de cinqüenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco. E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta. E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei por amor dos vinte. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez. E retirou-se o SENHOR, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão tornou ao seu lugar. (Gn 18.23-33)

O que se segue é justamente um par de anjos chegando a Sodoma para retirar de lá a Ló, sua esposa e as duas filhas. Abraão conseguiu salvar os justos, mas não impediu que as cidades fossem destruídas. O sofrimento de Abraão e seu esforço pelas cidades, em mais de uma ocasião, novamente reforça quanto os hebreus no oeste do Jordão eram ligados aos Cananeus do outro lado. Essa ligação, da mesma forma que havia possibilitado a Ló se estabelecer em Sodoma, muitas vezes permitiu que os Cananeus e até os Moabitas levassem seus costumes (e principalmente seu culto pagão) para o povo hebreu. Mesmo depois da destruição das cidades, não faltaram profetas falando contra os cultos dos “altos” (ou postes-ídolos) e de Baal entre os hebreus.

Se era abominável ao Senhor ver esses cultos vindo ao Seu povo a partir dos estrangeiros, quanto mais seria de outros hebreus?

Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel. Porque a porção do SENHOR é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança. Achou-o numa terra deserta, e num ermo solitário cheio de uivos; cercou-o, instruiu-o, e guardou-o como a menina do seu olho. … Ele o fez cavalgar sobre as alturas da terra, e comer os frutos do campo, e o fez chupar mel da rocha e azeite da dura pederneira. Manteiga de vacas, e leite de ovelhas, com a gordura dos cordeiros e dos carneiros que pastam em Basã, e dos bodes, com o mais escolhido trigo; e bebeste o sangue das uvas, o vinho puro. … 

E, engordando-se Jesurum, deu coices (engordaste-te, engrossaste-te, e de gordura te cobriste) e deixou a Deus, que o fez, e desprezou a Rocha da sua salvação. Com deuses estranhos o provocaram a zelos; com abominações o irritaram. Sacrifícios ofereceram aos demônios, não a Deus; aos deuses que não conheceram, novos deuses que vieram há pouco, aos quais não temeram vossos pais. … Porque a sua vinha é a vinha de Sodoma e dos campos de Gomorra; as suas uvas são uvas venenosas, cachos amargos têm. … Esconderei o meu rosto deles, verei qual será o seu fim; porque são geração perversa, filhos em quem não há lealdade. ... Porque um fogo se acendeu na minha ira, e arderá até ao mais profundo do inferno, e consumirá a terra com a sua colheita, e abrasará os fundamentos dos montes. Males amontoarei sobre eles; as minhas setas esgotarei contra eles. (Dt 32)

VAI LÊ TAMÉM, Ó...

terça-feira, 7 de maio de 2013

ONDE NOÉ PAROU A ARCA


Entre as principais controvérsias da religião com a ciência está a famosa Arca de Noé. Aparentemente, o texto bíblico faz referência a eventos do ano 6000 a.C., ou seja, no meio do que chamaríamos de Pré-história, ou mais propriamente “Período Neolítico”, que quer dizer “pedra polida”. Embora nos venha logo à mente homens barbudos vestindo peles e carregando tacapes ou clavas para caçar dinossauros, a verdade é que a Pré-história simplesmente se refere ao não uso de escrita. Tecnologicamente, estamos falando de pastores vivendo em casebres nas áreas de pastoreio, barcos de pesca e navios carregando tecidos pintados e conchas (para fazer tintas), cerâmicas pintadas e até uso de ouro martelado sobre madeiras variadas. Talvez isso seja bem diferente da famosa imagem dos “Flinstons”.

Segundo uma interpretação bíblica muito difundida, todas as pessoas e os animais do mundo seriam descendentes dos tripulantes da Arca: Noé, Sem, Cão, Jafé, suas respectivas esposas e muitos casais de animais. O parágrafo abaixo define bem o plano de Senhor para o “final dos tempos”:

De todos os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea. Também das aves dos céus sete e sete, macho e fêmea, para conservar em vida sua espécie sobre a face de toda a terra. Porque, passados ainda sete dias, farei chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites; e desfarei de sobre a face da terra toda a substância que fiz. (Gn 7.2-4)

A CIÊNCIA DIZ QUE NÃO

A Bíblia fala das águas cobrindo os cumes das montanhas, de forma que nada restasse da vida terrestre, e em especial nada de humano. E isso teria ocorrido por volta de 6000 a.C. É aqui que começam os problemas com a ciência: não há sinais de uma mortandade gigantesca de plantas ou animais ocorrida em menos de 65.5 milhões de anos atrás, quando um grande meteoro atingiu o Golfo do México. Claro que esse último genocídio global deixou rastros como florestas imensas apodrecidas ou queimadas, além de detritos impregnados nas rochas e uma formidável cratera. Os humanos ainda não existiam, e não há nada semelhante que tenha ocorrido durante a permanência humana na Terra.

Além disso, um dilúvio global coloca o problema da origem de toda essa água. Para cobrir todos os montes da Terra em 40 dias, seria preciso uma precipitação (ou taxa de chuva) acima de 200 metros por dia, o que significaria a água subindo essa distância todos os dias. Os lugares mais chuvosos do mundo dificilmente chegam a uma taxa de 1 m por dia, durante uma pequena parte do ano, o que se agrava pelas dificuldades de escoamento da água. Além disso, toda a água do planeta elevaria o nível dos oceanos em apenas 2-5 metros (para os povos que vivem em ilhas, isso já representaria um dilúvio). Simplesmente não há água suficiente para cobrir a superfície da Terra!

O número de espécies animais e vegetais existentes tornaria impossível colher exemplares de todos eles. A variedade genética dos animais que existem hoje não poderia ser produzida pela reprodução deles a não ser em dezenas de milhões de anos. Pensando na queda do meteoro, temos algo aceitável. Mas desde 6000 a.C., muito pouca coisa mudou: todos os macacos seriam muito semelhantes, assim como todos os leões e mesmo todas as pessoas. O mundo que conhecemos parece muito mais velho do que o dilúvio.

Por fim, uma precipitação fantástica de água doce (a menos que presumamos que choveu água salgada) teria destruído grande parte da vida marítima, adaptada à água salgada. Também não há sinais de que isso tenha ocorrido nos últimos milhões de anos.

PENSANDO NO DILÚVIO

Em quem acreditar? A resposta mais simplista até coloca a ciência como uma obra de Satanás para enganar o homem, como se Deus atuasse de forma mais ou menos secreta, e Suas obras não pudessem ser conhecidas... (bem, então temos toda a Bíblia mostrando o quê?). Outra resposta simplista é fazer da Bíblia um livro alegórico, com textos surgidos da imaginação de um autor perdido no tempo. Os dois lados são problemáticos e distanciam-se muito de uma “busca pela sabedoria” (Pv 1).

Ao recordar no texto da Bíblia algo que ocorreu milhares de anos antes da sua própria época, e especialmente muito antes da escrita, Moisés entretanto tornou a Bíblia uma referência histórica como jamais houve. Se pensarmos que ele precisou de uma tremenda inspiração divina para isso, ainda, talvez devêssemos olhar cuidadosamente seu texto.

PROPÓSITO

Moisés escreveu o texto do gênesis para recordar as origens do seu povo, cuja identidade já havia sido fortemente ameaçada pelo cativeiro no Egito. Os povos escravizados rapidamente perdem sua identidade, e isso ficou muito claro quando o povo construiu um bezerro de ouro como deus, reproduzindo assim o ídolo Ápis do Egito. Assim, ele registrou um conhecimento que tinha do próprio povo e do que lhe foi provido pelo Senhor. Não podemos pensar que isso tenha a intensão de uma descrição de verdade absoluta, mas que seja algo necessário e suficiente para as pessoas que receberam tal conhecimento.

Na história de Noé, Moisés nos conta como Deus preservou a dinastia de Sete enquanto eliminava a de Caim, que havia produzido um povo violento no leste no Éden. Seguindo o que o livro de Gênesis fala dos patriarcas, Noé devia ser um líder político-religioso e o significado de seu nome - “conforto” - indica que talvez ele tenha vivido uma época de relativa paz, ao contrário de seus ancestrais. De forma surpreendente, todos os ancentrais de Noé (de Adão a Matusalém e Lameque) morreram de “causas naturais” pouco antes do dilúvio, após habitarem a terra por muitos séculos. E na idade em que os filhos de Noé foram gerados (~ 100 anos), seus antecessores também registravam o nascimento dos sucessores dinásticos, de maneira que deverímos prestar especial atenção à passagem do poder de Noé para seus filhos, e especialmente Sem, cuja descendência sabemos que levaria até Davi. Há mesmo a possibilidade de que o dilúvio não represente uma extinção de pessoas, mas de linhagens tribais ou mesmo de aldeias inteiras, das quais apenas uma teria restado.

De fato, a Bíblia coloca os filhos de Noé como fundadores de grandes nações. Sem, o filho mais velho, cujo nome significa “cinzento”, teria originado os povos semitas da Síria, Palestina e Pérsia. Cão significa “negro” e o Salmo 105 sugere que os egípcios seriam seus descendentes; dele teriam vindo os cananitas e etíopes. Jafé significa “largo” (Gn 9.27) e teria originado os povos da Ásia, como armênios, medos, gregos, curdos, eslavos, etc. Assim, Noé seria o ponto comum de todas as nações descendendo de Sete e Adão.

Por outro lado, a Bíblia fala pouco de Noé, especialmente no que se refere ao Dilúvio. Sabemos que ele seguiu o conselho de Deus para construir um barco de proporções bem delineadas. A Bíblia registra, de fato, mais detalhes do barco do que dos animais (sabemos apenas que alguns eram puros - e seria sacrificados depois - e outros não), da família de Noé (nada há sobre as esposas deles) e quase nada há sobre a vida a bordo da embarcação. E eles ficaram mais de 300 dias navegando! Esse lapso é significativo, pois indica que as histórias guardadas por Moisés não vieram dos personagens (Noé ou sua família), mas de pessoas que souberam do ocorrido. Por outro lado, a atenção aos detalhes da embarcação pode sugerir um vislumbre dela ou da necessidade de uma embarcação colossal para preservar os animais importantes. Noé novamente aparece como uma ponte entre o passado remoto e a atualidade (do neolítico) através de uma calamidade.

CONTEÚDO

Fala-se de uma inundação que destruiu o mundo. Mas Noé não teria como saber disso, nem tampouco os que vieram após ele. Eles saberiam, é claro, da destruição de uma grande faixa de terra (o lugar onde vivem) pelas águas. Esse tipo de inundação é comum... todos os povos já presenciaram desastres semelhantes. De fato, quase todos os povos guardam lendas de super-inundações, mesmo os da África, onde esse tipo de ocorrência sempre foi muito raro pela altitude dos terrenos.

Existem pelo menos 35 histórias de inundações destruindo povos inteiros, nas mais diferentes culturas, todas com semelhanças e diferenças com a história de Noé.

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diversas estórias

Algumas delas guardam semelhanças notáveis, como a lenda Masai sobre um homem chamado Tumbainot. A população da Terra era então muito desobediente aos deuses, até o dia em que um homem chamado Nambija matou seu colega Suage e Deus decidiu destruir tudo com uma grande chuva. Tumbainot havia se casado com a viúva do irmão, e então agradou a Deus, que lhe avisou sobre a destruição. Ele construiu um barco, tomou as duas esposas e seus filhos (3 de cada esposa), junto com um casal de animais de cada espécie. Então choveu muito, a Terra foi inundada e todos morreram, exceto os que estavam no barco. Quando as chuvas pararam, ele soltou uma pomba, que retornou. Depois soltou um corvo, que não voltou, e Tumbainot soube que as águas haviam baixado. O sinal divino de que a ira havia passado foi o aparecimento de 4 arco-íris no céu.

Os Masai (ou Maasai) estão entre os habitantes mais antigos da África. O rastreamento genético apontou sua origem nas terras ao sul da Núbia (Egito) e Etiópia, tendo eles provavelmente se deslocado para o sul com o passar do tempo (atualmente estão na margem leste do Lago Vitória). Outras histórias Masai como a criação do jardim de Deus após a queda de um grande dragão, a proibição de que o homem comesse de uma certa fruta e a expulsão do homem pela “estrela da manhã” após ser tentado por uma serpente faz pensar em uma conexão direta com o Oriente Médio... e talvez a descendência de Cão, o filho de Noé. Por outro lado, povos africanos onde a conexão com o Oriente Médio é clara (como o Egito) não têm qualquer história de um dilúvio.

Um pouco menos surpreendente é a semelhança do relato bíblico com a lenda de Utnapishtim, o Longínquo, um personagem da saga babilônica de Gilgamesh. O que sabemos dessa história foi escrito por volta de 800 a.C. em placas de argila. Ela fala sobre um antigo imperador da cidade de Uruk, chamado Gilgamesh, que era o mais poderoso de todos os homens e também um tirano. O povo clamava por causa da opressão de Gilgamesh, e os deuses fizeram então um semelhante dele, Enkidu, que o poderia desafiar. Enkidu aprendeu entre as feras do campo, foi encontrado por um caçador e conduzido à cidade. Após lutar com o tirano, os dois tornaram-se irmãos e partiram pelo mundo em busca de aventuras. Entretanto, numa delas Enkidu morre e Gilgamesh corre pelo mundo em desespero pela perspectiva da própria morte. Um dia ouve sobre Utnapishtim, o Longínquo, a quem os deuses haviam concedido a vida eterna e de quem ele queria aprender como não morrer. Gilgamesh adentra o mundo dos deuses por uma gigantesca e escura caverna (uma alusão talvez à morte), chegando a um jardim maravilhoso próximo ao sol (deus Shamah, o magnífico). Outros deuses orientam ele e este encontra o barqueiro de Utnapishtim, que o conduz até o ancião, que vivia além da foz do grande rio*.

Utnapishtim disse que Gilgamesh não poderia dormir se quisesse conhecer o segredo da vida eterna. Mas, cansado, ele adormeceu por 7 dias. Utnapishtim então conta a ele que os homens faziam muito barulho e isso havia incomodado o deus Enlil, que resolvera destruir o mundo com uma grande tempestade. Mas outro deus, Ea, contou o plano a Utnapishtim, que morava então em uma casa de madeira de colmo. Utnapishtim desmontou sua casa e com ela fez um grande barco, onde levou sua mulher, uma tripulação e sementes de todas as coisas vivas. Quando a tempestade chegou, até os deuses de assustaram e fugiram para o alto do firmamento. A deusa Ishtar então arrependeu-se de ter deixado que Enlil destruísse o mundo. A tempestade foi violenta por 7 dias e então acalmou-se. Por mais 7 dias as águas foram baixando, até que Utnapishtim soltou uma pomba, que voltou. Ele soltou no dia seguinte um corvo, que não retornou, e então ele soube que havia terra seca. Quando Enlil soube que alguns homens haviam sobrevivido, a deusa Ishtar acalmou-o e ele abençoou o casal em seu barco, concedendo-lhes a vida eterna. Mas disse para morarem além do mar, porque eram diferentes.

Utnapishtim curou Gilgamesh da sua jornada e contou-lhe sobre uma planta que restaurava a juventude dos homens, para que ele não voltasse de mãos vazias. O herói colheu essa flor, mas uma serpente roubou-a no caminho (as serpentes costumam privar o homem da vida eterna...). Por fim, Gilgamesh voltou a Uruk como tinha saído e escreveu sua história.

Muitos acreditam que o dilúvio bíblico e a história de Utnapishtim sejam na verdade uma só, dada a localização próxima das suas origens e a origem comum das culturas suméria - babilônica - hebraica (afinal, Abraão era da terra de Ur, cuja capital era Uruk). Assim como na Bíblia, os planos da embarcação de Utnapishtim são detalhados, e é dito que todos os homens se converteram em barro (o que pode sinalizar uma inundação real). Noé enfrentou 40 dias de tempestade (o numeral 40 costuma ser usado para indicar “muitos”), permanecendo mais de 300 dias na Arca, de onde nenhum relato veio. Diferentemente, Utnapishtim ficou apenas 2 semanas a bordo da embarcação e trata de descrever cada um desses dias, ainda que diga, apenas, que só havia escuridão. A estória que Gilgamesh escreve não enfoca Utnapishtim como um patriarca, isso fica subentendido do texto (afinal, Gilgamesh era parte deus e morava em uma cidade habitada por homens e deuses).

UM DILÚVIO BEM REAL

Embora existam muitos argumentos contra um dilúvio universal, as histórias citando uma inundação destruidora no Oriente Médio são tão parecidas entre si que não podemos ignorar isso. Pela cronologia bíblica, tal inundação teria acontecido por volta de 6000 a.C. (portanto antes da 1ª dinastia do Egito em 3100 a.C., mas encontrando a origem dos Masai e dos povos semitas) e certamente foi devastadora o suficiente para que os clãs na região fossem exterminados. Pelo auxílio divino (e todas as lendas concordam com isso) foi que um deles sobreviveu para repovoar a região.

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Uma inundação candidata para isso é a tomada do Mar Negro pelas águas do Mediterrâneo, entre 7000 e 5000 a.C. Originalmente o Mar Negro era um grande lago formado pelo derretimento das geleiras da última glaciação. Essa vida de água doce é evidenciada pelos restos de animais e conchas no fundo. Mais baixo que o Mediterrâneo, o Mar Negro ficou isolado até que mudanças no terreno permitiram as águas do Mediterrâneo inundar a planície conhecida atualmente como Mar de Mármara e daí escoarem para o Mar Negro. Pode parecer um processo lento, mas as evidências geológicas são de que em menos de um ano o Mar Negro elevou-se em mais de 100 metros, cobrindo uma área de quase 40 000 Km² (mais ou menos o tamanho do estado do Rio de Janeiro), principalmente na margem noroeste.

Em 1997, essa tese foi apresentada pelos geólogos William Ryan e Walter Pitman, que estudavam a região. Em 2000, operando um submarino, o arqueólogo Robert Ballard (o mesmo que encontrou o Titanic afundado) encontrou vestígios de construções no fundo do Mar Negro, mostrando que era uma área habitada pelas pessoas. Ele avalia que o lago deve ter tragado mais de 1 Km de terra por dia durante quase 1 ano, revolvendo com força os sedimentos do fundo (ou “transformando tudo em barro”). Ao final da catástrofe, a água salgada matou toda vida que existia ali e criou o gigantesco cemitério submerso que existe no Mar Negro atualmente. Curiosamente, bem ao sudeste do Mar Negro ficava uma terra habitada desde a antigüidade mais remota, conhecida como Urartu. A capital de Urartu ficava bem aos pés da montanha conhecida como Ararat, e a pronúncia antiga de Urartu também era Ararat.

E lembrou-se Deus de Noé, e de todos os seres viventes, e de todo o gado que estavam com ele na arca; e Deus fez passar um vento sobre a terra, e aquietaram-se as águas. Cerraram-se também as fontes do abismo e as janelas dos céus, e a chuva dos céus deteve-se. E as águas iam-se escoando continuamente de sobre a terra, e ao fim de cento e cinqüenta dias minguaram. E a arca repousou no sétimo mês, no dia dezessete do mês, sobre os montes de Ararate. (Gn 8.1-4)


É possível que a liderança tribal de Urartu descendesse do único clã poupado quando o Mar Negro subiu, e então Noé nos dá uma afirmação precisa não da história de um homem, mas do destino que todo um povo teve. Eles habitavam as margens de um grande lago no Neolítico, num período sócio-histórico conhecido pelos arqueólogos pelo nome “Ubaid”, onde desenvolveram o cultivo de grãos e a criação de gado. Eram um povo camponês que habitava pequenas vilas construídas com blocos de pedra, que teve suas terras destruídas (e provavelmente eles mesmos pereceram) numa inundação colossal. A inundação destruiu os praticantes de outros cultos (a linhagem de Caim) e também o lago de onde tiravam seu sustento, poupando apenas um líder tribal, seja ele Noé, Utnapishtim ou Tumbainot, que Deus colocou depois a oeste da catástrofe, para refazer todo o seu mundo. Dessa terra nasceria Abraão, ancestral de Davi e de Jesus.

ONDE A ARCA PAROU, AFINAL

Um ponto comum nas principais histórias sobre o dilúvio é justamente esse: um grande barco carregando animais e a família do patriarca, que certa hora parou sobre os montes. Tudo indica que essa embarcação divinamente inspirada realmente existiu. E, incrivelmente, muitas pessoas esperam encontrar a Arca - de madeira - parada sobre alguma montanha, 8000 anos depois.

Faze para ti uma arca da madeira de gofer; farás compartimentos na arca e a betumarás por dentro e por fora com betume. E desta maneira a farás: De trezentos côvados o comprimento da arca, e de cinqüenta côvados a sua largura, e de trinta côvados a sua altura. Farás na arca uma janela, e de um côvado a acabarás em cima; e a porta da arca porás ao seu lado; far-lhe-ás andares, baixo, segundo e terceiro. (Gn 6.14-16)

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Na terra de Ararat, em um monte conhecido como Durupinar, um homem chamado Ron Wyatt encontrou em 1960 uma estrutura de pedra que lembra por demais o formato de um barco. Mesmo as medidas do “barco” podem ser as da Arca, se considerarmos que o “côvado” usado por Noé como aproximadamente 50 cm (essa era a medida do “côvado Egípcio”). Entretanto, análises feitas por pessoal menos ansioso por encontrar Noé mostraram se tratar simplesmente de rocha vulcânica erodida, de forma que a Arca de Wyatt nada mais é do que uma formação natural. Apesar disso, há um intenso turismo nessa região da Turquia, promovido por pessoas que desejam ver a Arca ainda esperando pelos nossos olhos, 8000 anos depois. Ron Wyatt já encontrou também a Arca da Aliança e amostras do DNA de Cristo...

Se tomarmos o monte Ararat (e não a terra Ararat) como ponto de parada, chegamos a uma montanha com 3600 m de altura desde a sua base, cujo topo atualmente está coberto permanentemente pelas neves. Bem no alto há uma estranha formação (e ninguém sabe exatamente do que se trata, pela dificuldade de acesso ao local) que lembra um barco emborcado. As dimensões do objeto sob a neve também lembram a arca de Noé, porém com um comprimento de 15 Km. Essa “anomalia do Ararat” apareceu pela 1ª vez em fotos aéreas da OTAN, e logo começaram as especulações sobre uma prova do dilúvio sendo ocultada. Uma expedição em 1960 dinamitou um dos lados da formação e constatou que se tratava simplesmente de uma mistura exótica de gelo e lava solidificada, formada em tempos mais “vulcânicos” da montanha..

Na encosta do Ararat, uma equipe chefiada por Bob Cornuke encontrou em 2006 os restos de uma grande construção de madeira. Em 2008, outra equipe chefiada por Ahmet Ertugrul e Yeung Wing-Cheung encontrou ali indícios de ocupação humana pré-suméria e dataram a madeira no local como tendo mais de 5000 anos. Como o Ararat é uma montanha que está em processo de elevação, é bem possível que o seu cume estivesse numa altura habitável há 8 milênios atrás. Foi feito um vídeo no local (de autenticidade muito questionável, pois as autoridades presentes foram todas dispensadas no dia da filmagem) e trazidos resquícios de lá, mas nada indica que seja mesmo a Arca, exceto a esperança das pessoas.

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*O “grande rio” pode ser o Tigre ou o Eufrates, que desaguam no Golfo Pérsico, uma das possíveis localizações do Éden.

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