domingo, 6 de outubro de 2019

Salomão, Jesus e as leis

A Sabedoria de Salomão, do ilustrador James Tissot (1836-1902). No relato bíblico, há uma criança morta e duas mulheres disputam a criança que restou. O rei Salomão ordena que a criança seja repartida ao meio (o que felizmente não acontece), para saber qual delas se sacrificaria pelo filho.

As leis são formas de controle coletivo do comportamento das pessoas. Elas fazem com que as pessoas adiram aos hábitos, rituais e modos de agir determinados por um governo. Moisés instituiu leis sobre o povo judeu, as primeiras que a Bíblia ou o Tanakh (livro judeu da Lei) relatam. Mas há outras formas de governo, não amparadas na rigidez de uma lei, mas no aconselhamento que guia as atitudes das pessoas.

AS LEIS DE MOISÉS

Moisés é o primeiro legislador judaico documentado na Bíblia. Sua identidade é misteriosa, podendo ser uma pessoa real ou até a fusão de vários personagens como um sacerdote de Baal de quando os egípcios expulsaram os Hyksos de volta para a Palestina (1500 a.C.), um sacerdote do deus sol do faraó Akenathen (1350 a.C, pai do famoso Tutankhamon) e algum sacerdote midianita, povo de fora da Palestina que Moisés reconheceu como seu. O que sabemos é que tudo sobre ele foi bem re-composto pelos sacerdotes do rei Josias (649-609 a.C.) a partir de antigos escritos encontrados no 1º Templo e há muito perdidos, junto com o próprio templo (587 a.C.). O resultado foi algo como a lenda grega de Odisseu / Ulisses (que andou por todo mundo e participou de várias batalhas entre homens e entre deuses) ou um desenho de Shrek costurado com retalhos de muitos contos.

Fosse quem fosse, é certo Moisés que não foi o primeiro legislador com que os judeus tiveram contato. As estórias sobre Moisés trazem partes da lenda de Sargão, um poderoso rei Sumério de 2400-2300 a.C. Da mesma época vem o código de Urukagina, outro rei da região entre os rios Tigre e Eufrates, de onde partiu Abraão, supostamente o ancestral de todo povo judeu. Em outras palavras, Abraão e sua família eram conhecedores de um código de leis, que levaram para a Palestina. Muito tempo depois, a lei elaborada por Moisés ia bem além dos 10 Mandamentos, incluindo procedimentos religiosos, regras de higiene, vegetais que devem ser plantados e animais que podem ser criados ou caçados, questões rurais sobre o cercamento de terras, disputas entre autoridades, etc, os quais são detalhados nos livros de Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Ela traz diversos elementos de leis do 1º Império Babilônico (do qual faziam parte Ur e outras cidades lendárias). Tais leis compunham a história dos hebreus e dos povos ao seu redor (Cananeus), com os quais se casavam e disputavam terras.

Existe uma discussão bastante válida sobre essas similaridades serem devido a um parentesco das leis (a Babilônica é mais antiga e há o relato bíblico de parentesco dos povos), a influência cultural (pois se tratava de uma região mais avançada e rica que a Palestina) ou simplesmente resultarem de uma similaridade cultural (eram povos semitas, organizados em cidades-estado¹ baseadas na vida agro-pastoril de uma região com clima, animais e vegetação parecidos). A regra de Talião - vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, chicote por chicote - por exemplo está presente no código de Moisés (Êxodo 21.23-25 e Deuteronômio 19.21), assim como em muitos códigos de leis semitas, colocando uma equivalência entre o crime e a pena.

Por outro lado, as leis mosaicas favoreciam os homens em detrimento das mulheres, igualando uns e outros entre si; as leis babilônicas separavam a sociedade em castas segundo o nascimento - aos escravos não era assegurado nenhum direito. Tanto a lei mosaica como a babilônica são supostamente originadas dos deuses de cada povo, embora tratem de problemas rigorosamente mundanos. A lei babilônica estabelecia crimes civis como agressão, roubo, violação de propriedade, etc e crimes morais como adultério, desrespeito, etc. Já a lei mosaica punia também crimes contra a tradição cultural (ex. usar certos vegetais e peles), além de crimes religiosos como a falta com obrigações rituais, culto a outros deuses ou desrespeito a dias e locais sagrados. No entendimento de Moisés como sacerdote, toda ação humana se relacionava a Deus (fosse um roubo, o plantio de certo vegetal ou ações rituais) e todos deviam o culto religiosos; já no entendimento babilônico (politeísta), as leis vinham do deus Shamah (sim, o sol ou fogo) através do rei para estabelecer seu império político. Não importavam ao rei detalhes culturais ou religiosos.

Tanto em um código de leis como no outro, há uma estrutura básica de crime X > punição Y. Em casos de acusação sem provas, aparece crime X > juiz ou consulta divina > punição Y. Essa estrutura, embora às vezes apele para o julgamento divino de YHWH ou alguma divindade babilônica (geralmente o rio Eufrates), basicamente dispensa as divindades de intervir em favor dos homens e retira por completo o significado racional das leis. Por exemplo, em Levíticos 13 há todo um procedimento ritual a respeito da lepra, que consiste em como o sacerdote reconhecer os leprosos, afastar eles do acampamento e como permitir que voltem. A prática efetiva é menos complexa do que lavar o machucado e passar mertiolate, mas era uma determinação sagrada, imutável e inquestionável. Certamente era útil em se tratando de uma doença contagiosa e o Novo Testamento nos testemunha que as cidades judaicas, mesmo 15 séculos depois de Moisés, ainda tinham hordas de leprosos perambulando por fora de seus muros. E então apareceu Jesus².

A NÃO-LEI DE SALOMÃO

Salomão foi o 3º rei dos judeus, sucedendo Davi. Seu pai teve pelo menos 6 herdeiros de suas concubinas (que na verdade eram as princesas do territórios conquistados), além de diversos filhos não-herdeiros. Entre os herdeiros estavam Amon (de Ainoã, a 1ª esposa), Quileabe (de Abigail), Absalão (de Maaca), Adonias (de Hagite), Sefatias (de Abital) e Itreão (de Eglá) (2ª Samuel 3). Salomão era filho de uma concubina secundária, Bate Seba, que não era princesa de reino algum, mas um caso extra-conjugal de Davi, e nem mesmo era o filho mais velho dessa relação. Mas as guerras mataram os filhos de Davi, sempre enviados como representantes do rei, e também um filho matou ao outro, até que Salomão sucedeu ao trono, apontado pelo rei junto ao profeta Natã, o sacerdote Zadoque e o levita Benaia (1ª Reis 1.26). Em seu reinado, mesmo Salomão mandou matar seu meio-irmão Adonias, julgando que tentasse usurpar o trono (1ª Reis 2.23,24).

Salomão desfrutou de poder e riqueza ainda maior que Davi, pois representava uma união de várias nobrezas, sacerdotes e profetas, além de Israel estar posicionado na rota das caravanas. Elas viajavam entre o Mediterrâneo, os portos da Fenícia, Líbano e Síria, Egito, Mar Vermelho, Etiópia, Iêmen, Índia e China. Tratava-se de uma poderosa rota comercial por onde se transportava animais (como mulas, elefantes e camelos), marfim, madeira (cedros), peles, grãos, ouro, tecidos valiosos (como cânhamo e seda), temperos, perfumes, ópio e incenso. Os impostos nos mercados e portos das caravanas geravam riquezas imensas, o que fez Salomão estender colônias de judeus para o Egito, Etiópia e Iêmen, em acordos com os governantes dessas terras. Mas além da riqueza, Salomão ficou conhecido por sua sabedoria como governante, um presente concedido pelo próprio Deus, que afirmou que não houve nem haveria jamais ninguém mais sábio que ele (1ª Reis 3.9,10). Esta história também foi contada pelos sacerdotes do rei Josias, quase 4 séculos mais tarde, retirada de escritos em um templo (construído por Salomão*) que chegava perto de seu fim.

Salomão manteve uma equipe de estudiosos ou sábios, que tentaram reunir em escritos toda a sabedoria do seu mundo. Possivelmente ele tentou reproduzir algo que soubera do Egito (onde os nobres de Thebas eram finamente educados em escolas³). De fato, as relações políticas entre Israel e o Egito tinham se tornado muito mais intensas, a ponto de diversas vezes os exércitos egípcios terem retomado territórios de Israel que haviam sido perdidos para outros povos. Entre as relações de Salomão, ficou famosa a rainha de Sabá, uma terra de guerreiros provavelmente na Etiópia, com quem foram trocados presentes de imenso valor.

Salomão não fez grandes esforços para suprimir os cultos cananeus. Além de adorar a YHWH, deus de Salomão e Davi e a quem o rei dedicou seu Templo, o povo cultuava outras divindades como Baal, Moloque e Asherá, menos exigentes, a quem os cultos eram feitos no altos dos montes, vales profundos ou sob as árvores, respectivamente. Reis muito posteriores ainda lidaram com essa variedade religiosa em Israel. Como o culto ao Deus Único não era apenas um elemento repetido na lei de Moisés, mas o 1º ítem dos 10 Mandamentos gravados nas tábuas da Arca da Aliança, podemos inferir que a lei de Moisés já era bastante fraca no reinado de Salomão (apesar de a Arca estar guardada no Templo que ele construiu). Talvez 5 séculos já tivessem se passado! A lei seria reavivada mais tarde, porém há indícios de que Salomão pretendia uma transformação diferente em seu povo, o que foi provido pelo seu livro de Provérbios.

O Livro de Provérbios que temos hoje é, em grande parte, uma construção apócrifa. Ele começou a ser produzido no reinado de Salomão, copiando-se um texto famoso do faraó Amenemope (1001-992 a.C.) sobre o comportamento esperado dos nobres e juntando trechos discutidos exaustivamente e com a ajuda dos sábios Lemuel e Agur, de clãs do deserto. Essa coleção de instruções foi estendida pelos sábios do rei Ezequias (715-687 a.C.), o construtor, que versavam sobre o sábio, o tolo (que despreza a sabedoria) e o simples (ignorante a ser ensinado). Depois o livro ganhou textos dos sábios do rei Josias (640-609 a.C.), que encontraram o livro da Lei de Moisés em algum canto do Templo e adicionaram aos provérbios ensinamentos sobre temor a Javé, ardor no trabalho, modéstia, humildade, generosidade, misericórdia e honestidade. Mais tarde o livro ainda ganhou trechos dos sacerdotes que acompanhavam Esdras no estabelecimento do 2º Templo (aprox. 450 a.C.), os quais falavam em valorizar a Sabedoria como uma entidade, uma espécie de Espírito Santo que falava contra o mal, a soberba e a arrogância, o mau caminho e a boca perversa. Todos, apesar da composição diversificada, atribuíram seus escritos ao lendário rei Salomão.

Não é fácil ler os Provérbios, pois trata-se de pequenos trechos fragmentados e espalhados, talvez propositalmente, de forma que possam ser re-arranjados para se adaptar às mais diversas situações. A diferença da lei de Moisés está justamente aí: a flexibilidade. Moisés deixou um tratado de punições para os mais diversos crimes (que incluem mesmo plantar vegetais diferentes), de modo a deixar claro o que NÃO SE DEVE FAZER. Salomão por outro lado pretendeu criar um sistema de aconselhamento simples, de forma que o homem mais comum pudesse ser guiado para FAZER as melhores escolhas. Seu código ou programa inclui belas descrições dos sofrimentos humanos e das principais causas de sofrimento como riquezas, prazeres momentâneos e falsas esperanças.

A PROPOSTA DE JESUS

Jesus nasceu bem fora do ciclo das realezas da Judéia (terra dominada por Roma, onde ficava Judá, parte sul de Israel, repartida em 930 a.C., após o reinado de Salomão) e mesmo da Galiléia (parte norte), onde ficava a cidade de Nazaré. Jesus frequentava as sinagogas pequenas na planície pastoril da Galiléia, que conduzia à região de pesca e comércio ao redor do grande lago de Tiberíades, onde começava o rio Jordão. O Templo que ele conheceu nas peregrinações a Jerusalém era o 3º Templo, uma construção imensa de uns 50 anos e ocupando todo o topo de uma montanha, feito já na Era Romana a partir do 2º Templo, que foi erguido sobre as ruínas do Templo de Salomão. Uns 1000 anos haviam se passado desde esse rei construtor lendário, e também 600 anos desde que a Lei de Moisés fora reencontrada por outro rei construtor. Seu povo havia estado no exílio da Babilônia, tinha sido dominado pelos gregos após Alexandre o Grande, que esvaziaram o Templo por toda uma geração, e depois pelos romanos. Estes últimos implicavam com a infidelidade dos sacerdotes ao seu rei-deus Tiberius Caesar Divi Augusti Filius Augustus (reino 14 a 37 d.C.). Os sacerdotes se defendiam formando um tribunal, o Sinédrio, que julgava as questões de fé e costumes segundo a lei mosaica. Em paralelo a eles havia o rei Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, construtor do Templo, e também vassalo** de Roma.

Os escritos sobre Jesus são quase tão problemáticos quanto os sobre Salomão. Nenhum texto sobre Jesus foi produzido fora do contexto religioso, independente da pregação sobre o Messias. Existem 3 evangelhos sinóticos, isto é, alinhados: Mateus, Marcos e Lucas. Marcos parece ser o mais antigo deles. Um suposto documento Q teria dado origem a Mateus e Lucas, além de partes incluídas pelos próprios evangelistas, únicas de cada escrito. Lembremos que talvez Mateus tenha sido companheiro de Jesus em suas andanças, embora o livro de Mateus traga muitas coisas de Paulo (a quem sabemos a autoria, por seu caráter romano de escrita), que não esteve pessoalmente com Jesus, e com quem os outros 2 evangelistas andavam. O livro de João é tão autêntico quanto os demais em sua historicidade, João era chamado de “discípulo amado” pela sua relação próxima de Jesus, e no entanto bem pouco do livro de João se alinha com os demais evangelhos. Fica quase impossível destilar um Jesus a partir do material que temos sobre Ele, porque esse material apresenta personagens diferentes, dependendo do autor.

A relação de Jesus com a lei mosaica, no meio desses 4 intérpretes que viram e entenderam coisas diferentes, é no mínimo curiosa. Certas horas Jesus valoriza a Lei, cobrando seu seguimento àqueles que o acompanham. Outras vezes, Jesus se diz superior à lei e a reinterpreta por completo (o que só não parece absurdo de uma lei com inspiração divina sendo atualizada pelo Filho de Deus).

E Jesus, tomando a palavra, falou aos doutores da lei, e aos fariseus, dizendo: É lícito curar no sábado? (Lucas 14.3)

Jesus parece devoto a um Pai Celestial, advogando ora por Ele entre os homens que sofrem, ora perante Ele e pelos homens que sofrem. Ele parece interessado em retirar o sofrimento das pessoas, se elas tiverem fé e chegarem suficientemente perto Dele, o que João interpreta como “sinais” da divindade de Jesus - algo para ser visto e falado - e não uma prioridade Sua. Por suas transgressões ou re-interpretações da lei de Moisés, o Sinédrio trama contra Jesus (ao contrário de João Batista, que foi alvo de Herodes Antipas) e, após condená-lo à morte, nomeia homens para caçar seus seguidores. Estaria o Sinédrio sendo puritano e extirpando um baderneiro? Os evangelhos nos propõem que não; eles são chamados de “víboras” e aproveitadores do seu status social. A perseguição do Sinédrio aos Cristãos parecia exagerada, a menos que estes desafiassem seriamente a eles ou a Roma***.

Jesus cita leis de Moisés e várias partes do livro de Isaías, até hoje o mais popular dos profetas. Como frequentador das sinagogas e do Templo, após a reforma de Josias, sem dúvida Ele possuía conhecimento do sistema de leis antigo. Mas Jesus fazia releituras delas e, de forma inovadora, apresentava seus ensinos como “parábolas”. As parábolas e fábulas são pequenos contos, bastante usados no Oriente Médio e na Europa Medieval para transmitir valores morais. As estórias de Jesus tinham semelhança com a realidade ao seu redor, e cada uma delas poderia gerar (e gerou) longos estudos, embora Ele mesmo dissesse que ensinava assim para que os homens ouvissem e não compreendessem. Algumas parábolas são elaboradas, como a do Semeador, outras aparecem apenas como um pequeno parágrafo, bem ao jeito de um Provérbio.

Administrador desonesto (Lucas 16.1-9);
Amigo importuno (Lucas 11.5-8);
Bodas (Mateus 22.1-14);
Bom samaritano (Lucas 10.29-37);
Casa vazia (Mateus 12.43-45);
Coisas novas e velhas (Mateus 13.51-52);
Construtor de uma torre (Lucas 14.28-30);
Credor incompassivo (Mateus 18.23-35);
Dever dos servos (Lucas 17.7-10);
Dez virgens (Mateus 25.1-13);
Dois alicerces (Mateus 7.24-27);
Dois devedores (Lucas 7.40-43);
Dois filhos (Mateus 21.28-32);
Dracma perdida (Lucas 15.8-10);
Fariseu e publicano (Lucas 18.9-14);
Fermento (Mateus 13.33);
Figueira (Mateus 24.32-33);
Figueira estéril (Lucas 13.6-9);
Filho pródigo (Lucas 15.11-32);
Grande ceia (Lucas 14.15-24);
Jejum e casamento (Lucas 5.33-35);
Joio e trigo (Mateus 13.24-30,36-43);
Juiz iníquo (Lucas 18.1-8);
Lavradores maus (Mateus 21.33-46);
Meninos na praça (Mateus 11.16-19);
Ovelha perdida (Lucas 15.3-7);
Pai vigilante (Mateus 24.42-44);
Pedra rejeitada (Mateus 21.42-44);
Pérola de grande valor (Mateus 13.45-46);
Primeiros lugares (Lucas 14.7-11);
Rede (Mateus 13.47-50);
Rei que vai para a guerra (Lucas 14.31-32);
Remendo com pano novo (Lucas 5.36);
Rico e Lázaro (Lucas 16.19-31);
Rico sem juízo (Lucas 12.16-21);
Semeador (Mateus 13.3-9,18-23);
Semente (Marcos 4.26-29);
Semente de mostarda (Mateus 13.31-32);
Servo fiel (Mateus 24.45-51);
Servos vigilantes (Mc 13.33-37);
Talentos (Mateus 25.14-30);
Tesouro escondido (Mateus 13.44);
Trabalhadores da vinha (Mateus 20.1-16)

A parábola do Semeador até serviu de eixo para o famoso livro Pastor de Hermas, que foi um instrumento importante de evangelização nos 1os séculos. Por um lado, ela dá a idéia de que aproximar-se de Deus pode ser impedido pelo Diabo ou pelas seduções do mundo, problemas, dinheiro, etc. Por outro lado, ela dá a idéia de um cuidado repetitivo de Deus ao tentar ensinar sua mensagem, como um semeador que sempre volta ao campo. O ensino de Jesus prevê uma interação grande entre cada pessoa e seu ambiente, não é uma regra independente do contexto. Essa possibilidade de discussão e nova interpretação é um elemento significativo do ensino nos povos semitas, o que até coloca a rigidez da lei de Moisés como algo estranho a eles. Tal dualidade entre discutir/ensinar e obedecer cegamente aparece, no Novo Testamento, a todo momento - afinal, a lei do Estado não era a lei de Moisés, e o Sinédrio não poderia condenar quem quer que fosse sem a aprovação de Herodes e Roma (no tempo de Jesus, o poder romano era simbolizado pelo governador Pôncio Pilatos).

Essa metodologia de ensino de Jesus, que não foi levada seriamente nos séculos seguintes, se parecia muito mais aos Provérbios re-ordenáveis de Salomão do que aos aos estatutos detalhadíssimos de Moisés. Já em 49 d.C, o 1º Concílio Cristão - feito por seguidores presenciais como Pedro - já debatia permitir ou proibir a adesão dos gentios ao movimento religioso, o que não se encaixa de forma alguma nos métodos de ensino flexíveis propostos por Salomão e por Jesus. Reparemos que Jesus não se privou de ensinar a ricaços, fariseus, leprosos, samaritanos, romanos, publicanos, etc. Muitos deles nem eram judeus para seguir sequer os Mandamentos, mas ainda assim haveria uma interpretação pessoal a darem para as estórias que Jesus contava. E era por isso que as multidões o cercavam.

A TENTATIVA DE JOÃO

Quem chegou mais próximo a Jesus quanto ao ensino foi João. Porém, ele era muito menos criativo ou conhecedor dos homens. Talvez mais profeta e menos contador de estórias. O tal discípulo amado, quando tomou os milagres de Jesus tal qual uma ferramenta de ensino, dando para eles uma interpretação messiânica, mais ou menos os tornou em parábolas. Delas pode ser tirado um outro ensino, que não é seu conhecimento literal como texto.

Transformação de água em vinho (2:1-11);
Cura do filho do oficial romano (4:46-54);
Cura do paralítico na piscina de Bethesda (5:1-15);
Multiplicação dos pães (6:5-14);
Andar sobre a água (6:16-21);
Cura do cego de nascença (9:1-7);
Ressurreição de Lázaro (11:1-45)

João é enfático no caráter sobrenatural dos eventos que relata, e passa muito longe de tentar criar um sistema de leis. Seu objetivo é oferecer provas da divindade de Jesus. 

Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras. (João 14.10)

João registrou apenas uma parábola:

O que ceifa recebe galardão, e ajunta fruto para a vida eterna; para que, assim o que semeia como o que ceifa, ambos se regozijem. Porque nisto é verdadeiro o ditado, que um é o que semeia, e outro o que ceifa. (João 4.36,37)

No lugar onde Mateus apresenta as parábolas de Jesus, o evangelho de João, como em várias outras partes, apresenta Jesus refletindo sobre os acontecimentos. Isso é algo que Jesus faz muito no livro de João e raramente nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. João também não mostra nada semelhante ao Sermão da Montanha. Ao contrário dos outros evangelhos, não há uma receita mundana para a felicidade, mas sim Jesus discorrendo sobre as motivações de Deus. Compreender ao Senhor, para João, é mais importante do que tudo. João fala de alguém que realizava milagres, perdoava (8.3-11), se declarava a representação de Deus, era humilde (13.1-17), pregava o amor de uns pelos outros (15.12), estaria com seus discípulos apesar da morte (14.21). Nessa atribuição de intenção por parte de Deus (e dane-se a Lei), João chega próximo ao que Jesus ensinava.

Hoje, com os 4 evangelhos e mais as cartas de Paulo nas mãos, somos levados a cruzar muitas informações entre eles. Mas a comunidade para a qual João ensinava não tinha isso. Eles dependiam inteiramente de João para conhecer a Jesus e ele não lhes apresentava um conselheiro, mas a personalidade de um Deus vivo e o próprio Messias a quem deviam orar pela Salvação em um mundo que estava chegando ao seu fim. Lembremos que João também é o autor de Apocalipse ou Revelação.

Sendo um livro didático, na mais ajustada descrição, o evangelho de João compartilha com o leitor a interpretação da vida segundo Jesus. Pelo menos os pensamentos que ele põe na boca de Jesus. O Espírito Santo inspira uns e outros segundo Ele mesmo escolhe, e ninguém o controla (3.8); as pessoas comuns não o podem entender (3.11,12); os servos de Deus o adorarão independente de lugares sagrados (4.23,24); as obras de Deus não são interrompidas (5.17); a fé é o maior dos milagres (6.28-36); o pecado escraviza a vontade dos homens (8.39-47); os homens devem amar a Deus e uns aos outros, para serem filhos de Deus, que os liberta de sua escravidão (13,34,35).

O evangelho de João não é um guia abrangente como os Provérbios, nem direcionado às situações cotidianas como as parábolas de Jesus, mas um guia de conduta incrivelmente flexível, onde sabe-se o que Deus espera da conduta humana. Mas não há especificações exatas sobre ela. Como se, na expectativa do Reino de Deus, entre os que desejam aproximar-se do Senhor, a Lei fosse completamente obsoleta.

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¹ Uma cidade-estado é geralmente uma cidade cercada por muros, com a região agrícola fora dos muros. Nela não há um prefeito, mas um rei que governa uma área pequena, geralmente na margem de um rio, com sua própria língua, tradição e leis.

² Afora as curas milagrosas de Jesus, a cura da lepra, assim como de muitas outras parasitoses, só foi alcançada no séc. 20 com o desenvolvimento dos antibióticos. A grande inovação de Jesus, entretanto, foi o tratar com leprosos como se fossem qualquer pessoa. Na sociedade judaica, a lepra não era apenas uma moléstia contagiosa, mas também um sinal de impureza espiritual e maldição.

³ Num grau avançado de informação para sua época, os egípcios enviavam e recebiam rolos e tabuletas de correspondência de seus diversos territórios. Os faraós, então, muito antes de sentarem-se no trono, sabiam dos pormenores políticos e culturais de lugares tão distantes quanto a Palestina e a planície dos rios Tigre e Eufrates. As cartas de Amarna, por exemplo, dão relatórios da migração dos semitas desde que foram expulsos do Egito e em cada lugar onde desafiaram a autoridade do faraó.

* O Templo de Salomão ou 1º Templo foi destruído durante a tomada de Jerusalém pelo rei Nabucodonosor II (587 a.C.), do 2º Império Babilônico. As datas na Bíblia sugerem uma obra iniciada no fim do reinado de Salomão, para abrigar a Arca da Aliança. Ele empregou centenas de trabalhadores para produzir uma construção monumental, que levou 7 anos para ser terminada. Além do pagamento de muitos trabalhadores, o templo ainda usou materiais bastante valiosos (madeiras, tecidos caros, ouro e marfins) em sua confecção, o que acabou sendo um símbolo da era de prosperidade durante o reinado de Salomão. O Templo foi reconstruído quando os judeus voltaram da Babilônia e muitos séculos depois ele foi reformado/ampliado por Herodes o Grande, um vassalo de Roma, ao longo de 46 anos. Foi essa estrutura judaico-romana que Jesus visitou.

** A relação de vassalagem ou clientela implicava que um rei obedecia a outro. Havia a lei do rei maior (Tibérius), e a ela se emendavam os termos da lei do rei menor (Antipas). Não poucas vezes, os reis da Galiléia e da Judéia eram educados em ricas famílias romanas, para assegurar sua fidelidade cultural. Além do pagamento regular de impostos ao rei maior, o rei menor também abrigava legiões de patrulhamento, que serviam para garantir sua segurança em caso de ataque estrangeiro. As legiões no entanto não eram submissas a lei do rei menor, nem respeitavam os costumes das populações, o que fazia os habitantes terem grande repulsa por eles.

*** A impressão que temos a partir do Novo Testamento é de que o Cristianismo começou como uma série de pequenos grupos, com os quais os governos não teriam motivo de preocupação. Logo, qualquer ação contra os Cristãos parece motivada unicamente por um fundamentalismo acerca da lei de Moisés. O Concílio em 49 d.C. sobre os gentios serem aceitos como Cristãos sem tornarem-se judeus mostra que, embora pregada por judeus, a Cristandade chegou primeiramente aos gentios vivendo a leste da Síria. As muitas reações negativas a Paulo podem falar em contrário a uma passividade dos governos por onde ele andou quanto ao Cristianismo, mas em Israel é provável que a reação negativa acontecesse justamente porque o Cristianismo quebrava a separação de castas judeus vs. gentios. O Sinédrio não tinha autoridade sobre os gentios, e talvez assim perdesse seu poder sobre os judeus também.

Quanto a Roma, os judeus eram de certa forma proscritos por não aderirem ao culto dos césares. Os Cristãos também não aderiam a isso. As perseguições dos romanos a judeus e Cristãos após a destruição de Jerusalém (70 d.C.) sugerem, de certa forma, que Roma nem via diferença de uns e outros.

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PISTAS MUITO FALSAS, NÃO VÁ POR AQUI

Akhenaten - wikipedia
Code of Hammurabi - wikipedia
Code of Ur-Nammu - wikipedia
History of leprosy - wikipedia
Pink AW, Things omitted from John's gospel, biblehub.com
Urukagina - wikipedia

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