No mapa da esquerda, a cor verde mostra áreas Islâmicas (verde mais intenso = percentual maior da população sendo Islâmica) e a cor azul mostra áreas Cristãs da África. Estão em branco as áreas de maioria com religiões tibais/tradicionais. São nomeados os principais rios do continente. Kush: uma das rainhas Candace e sacerdotes; Cartago: o grande porto da cidade; Alexandria: a grande biblioteca; Axum: cena do evangelho de Abba Guerima; Faras: um bispo e a figura de São Pedro (clara), seu patrono.
Um discurso muito tradicional a respeito dos negros, especialmente no Brasil, se refere, no campo religioso, às tradições do Candomblé e até mesmo da Umbanda. Fala-se do Candomblé como uma religião Africana mãe (esquecendo a pluralidade de culturas do continente Africano). Por isso, ao resgatar suas bases históricas, os negros brasileiros quase inevitavelmente recaem sobre o Candomblé como símbolo de identidade. Muito raramente se fala (e de fato isso não é ensinado, pelo menos no Brasil) o quanto os negros de todo mundo, mas especialmente da África e dos Estados Unidos, contribuíram para o curso histórico do Cristianismo e do Islã. Aqui, tentarei reunir brevemente algum material sobre essa participação crucial dos negros no Cristianismo, deixando outros debates (não menos importantes) para outras ocasiões.
Em primeiro lugar, tendemos a associar a identidade negra com a África. Isso é quase uma verdade. Embora de maioria negra com etnias variadas (ex. Zulu no sul, Somali no extremo leste, Niger no norte, ao sul da Espanha, Bantu na região do rio Congo, Sudanês na região do Mar Vermelho, etc), a África também é habitada por povos brancos. A foz do rio Nilo sempre foi uma região muito farta em caça, pesca e agricultura. Por isso, muitos povos das vizinhanças da África tentaram e conseguiram se fixar na região, em especial os Semitas (Cananeus, Hebreus, Persas, etc) e os Gregos. Por isso as terras baixas do Sinai e do Egito são até hoje habitadas por povos “de pele clara”. Uma referência à aparência clara e bronzeada de sol dos povos Semitas pode ser vista no livro de Cânticos (Cânticos 1.5,6, 5.10,11).
Afastando-se da foz do Nilo, prevalecem os povos negros. E então vemos o continente africano também dividido por grandes desertos, demarcando regiões como Norte (faixa costeira junto ao Atlântico e Mediterrâneo, ao norte das montanhas Atlas), Nilo (extremo nordeste), Etiópia (extremo leste), Sudeste (planícies dos rios Zambezi, Limpopo e Orange) e as grandes planícies dos rios Congo e Niger (ao sul do Saara). Cada uma dessas 6 regiões se desenvolveu mais ou menos isoladamente.
Costa norte, Nilo e Etiópia
A região do Nilo (formalmente Egito, na parte baixa, e Núbia, na parte montanhosa) foi uma das primeiras a avançar cultural e tecnologicamente em todo mundo. Pelo menos a partir de 2000 a.C. já existiam governos locais submissos a pelo menos um governo central, chamados Baixo Egito e Alto Egito (Núbia). Entre os grandes faraós, houve sucessões de famílias reais brancas (do Baixo Egito) e negras (do Alto Egito). O que mais conhecemos do Egito dos faraós corresponde ao tempo em que o Alto Egito expulsou os Semitas, tornou-se dominante e estendeu seu poder político até Canaã. É bem provável que a esposa Egípcia de Salomão (em aprox. 1000 a.C.) fosse uma princesa Núbia.
Por volta de 600 a.C., os Gregos fundaram a cidade de Cirene, no norte da África, atual Líbia. Em 300 a.C., liderados por Alexandre (o Grande), conquistaram Canaã e depois o Egito. Começa nessa época o Período Intertestamentário (entre o Velho e o Novo Testamentos) dos quais a Bíblia Católica guarda registro, mas não a Bíblia Protestante. Foram anos de dominação descritos nos vários livros dos Macabeus (alguns dos quais são apócrifos), que contam sobre movimentos religiosos e políticos numa Israel controlada por estrangeiros. Como os textos da Torá são vinculados à realeza Judaica, vários desses textos nunca foram reconhecidos. No Egito em especial, a cidade portuária de Alexandria se tornou um símbolo de desenvolvimento urbano, sendo elogiada em quase todos os livros da Antiguidade (ainda mais porque são livros gregos).
Muitos Judeus foram transferidos de Canaã para Cirene, para formarem um posto de defesa da região Norte, sobretudo contra os Romanos. Séculos mais tarde, Cirene iria liderar a difusão do Cristianismo na costa norte.
Outra jóia da região Norte foi a cidade de Cartago, fundada por navegadores Fenícios (os habitantes cananeus das famosas cidades comerciantes de Tiro e Sidom). Quando Alexandre invadiu a Fenícia, os ricos comerciantes de Tiro mudaram-se para Cartago, que cresceu até ser o pior oponente de Roma: um de seus príncipes, Hannibal Barca, liderou um exército de elefantes em 218 a.C. desde o norte da África até a Espanha e daí, por detrás dos Alpes (imagine elefantes caminhando pelas montanhas nevadas), para atacar Roma pelo norte. Além disso, Cartago desenvolveu o posto marítimo mais avançado da antiguidade, tornando-se um polo de desenvolvimento urbano. Em 146 a.C., Roma atingiu seu poder máximo quando finalmente derrotou Cartago. Apesar disso, logo Cartago se tornou uma metrópole romana no norte da África, e viria a ser um dos propagadores do Cristianismo.
No séc. 4 d.C., a Cartago Cristã produziu um de seus maiores legados. Aurelius Augustinus de Thagaste (tanto seu nome Aurelius, como de sua mãe, Mônica, são nomes das tribos Bérberes). Ele seria o futuro bispo de Hippona Regia, tendo estudado e começado seus trabalhos em Cartago. De lá, ele se tornou um dos teólogos mais influentes do Cristianismo Romano. Santo Agostinho, como viria ser chamado, defendeu a composição do homem como um ser de natureza espiritual e mortal, onde uma e outra teriam se tornado inimigas após o pecado de Adão. Agostinho foi um grande inimigo do aborto induzido pois, além do assassinato, tal prática favoreceria a natureza mortal/pecaminosa do homem. Em seus livros “Confissões” e “Cidade de Deus”, ele apresenta primeiro a natureza vil do homem e, depois, coloca a Graça como a única forma (e não dependente do homem) de contornar tal natureza. Isso o colocou contra figuras importantes do seu tempo como Pellagio, os Donatistas (para quem os sacramentos eram criações divinas poluídas pelos homens) e os Coptas, para quem Jesus tinha uma natureza completamente distinta dos homens. Agostinho foi, sem dúvida, a origem da vida simples e devota dos monges característicos da Idade Média, além de embasar parte da Reforma Protestante no séc. 16. O próprio Martinho Lutero foi um monge eremita Agostiniano.
Norte “branco” da África
Quando Jesus nasceu e o Cristianismo teve seu início, Alexandria (então comandada pelos Romanos) era um dos centros intelectuais do mundo, graças a sua famosa biblioteca. Após a morte de Jesus, o apóstolo João Marcos seguiu para lá, fundando o 1º centro Cristão na África. Aproveitando as estradas romanas para enviar evangelistas, em 150 anos Alexandria se tornou o centro de uma Diocese Católica no norte da África contando com cerca de 400 comunidades. Cartago e Cirene rapidamente se uniram ao Cristianismo, como oposição ao domínio Romano. O livro de Atos nos conta sobre os Cireneus ouvindo a pregação do Evangelho:
E constrangeram um certo Simão, Cireneu, pai de Alexandre e de Rufo, que por ali passava, vindo do campo, a que levasse a cruz. (Marcos 15.21)
E havia entre eles alguns homens Chíprios e Cireneus, os quais entrando em Antioquia falaram aos Gregos, anunciando o Senhor Jesus. E a mão do Senhor era com eles. (Atos 11.20,21)
E na igreja que estava em Antioquia havia alguns profetas e doutores, a saber: Barnabé e Simeão, o negro, Lúcio Cireneu, e Manaém, que fora criado com Herodes o tetrarca, e Saulo. (Atos 13.1)
Quando a perseguição aos Cristãos se intensificou após uma revolta dos Judeus em 115 d.C., muitos líderes de Alexandria fugiram para Cartago e Cirene. Um dos mártires associados a essa perseguição foi Perpétua, uma jovem nobre de Cartago que, recusando-se a adorar os deuses romanos, foi presa e torturada até a morte na arena da cidade em 211 d.C. Em pouco tempo, as tribos Bérberes e negras do norte da África, que comandavam a região da Tunísia até o Marrocos, haviam aderido ao Cristianismo. Além disso, dada a forma como o Cristianismo se desenvolveu no norte da Europa (isto é, desvinculado de uma autoridade central), muitos historiadores acreditam que os 1os catequizadores partiram de Alexandria.
Norte negro da África
As primeiras referências à África Negra aparecem com Moisés tendo uma esposa cuxita (Números 12.1) e Salomão sendo visitado pela rica rainha de Sabá (1ª Reis 10.1). Sabá era a capital da Núbia, reino montanhoso nas terras mais altas do Nilo. Após a decadência do Novo Império (séc. 8 a.C.), os Núbios fundaram 25a dinastia do Egito, elevando Sabá a capital de um imenso império. Não por acaso, a palavra Egípcia para ouro é “nub”. Por volta de 520 a.C., o poderoso rei persa Cambises II/Xerxes, protagonista das estórias de Heródoto, havia invadido o Baixo Egito para reclamar a herança de sua mãe, uma princesa Egípcia. Cambises partiu dali para invadir a Núbia, mas foi repelido violentamente.
Cambises instruiu-os [seus emissários] sobre o que deviam fazer na Etiópia, enviando-os para lá com presentes ao rei: um traje de púrpura, um colar de ouro, braceletes, um vaso de alabastro cheio de essência e um barril de vinho de palmeira. … [O rei Etíope respondeu] “Levai a ele este arco de minha parte e dizei-lhe que o rei da Etiópia o aconselha a vir fazer-lhe guerra com forças bem numerosas e quando os Persas puderem vergar um arco igual a este, tão facilmente como ele … Continuando, perguntou-lhes como se alimentava o rei dos Persas e qual a idade mais longa entre eles. Os espiões responderam que o alimento básico do rei era o pão e esclareceram-no sobre a natureza do fermento. Acrescentaram que a idade mais avançada entre os Persas era de 80 anos, ao que ele retrucou não admirar que homens que se alimentavam de esterco vivessem tão pouco … Respondeu ele que a maioria [dos Etíopes] chegava a 120 anos, atingindo alguns idade mais avançada; que se alimentavam de carne cozida, sendo o leite sua principal bebida. … Conduziu os emissários à prisão. Todos os presos estavam agrilhoados com correntes de ouro, pois, entre os Etíopes, o mais raro e mais precioso de todos os metais é o cobre. (Heródoto, História, Tália XX a XXIII)
Apesar da derrota, Xerxes re-nomeou a capital com o nome de sua irmã, Meroe, e tal nome foi aceito como tratado de paz pelos Kushitas/Núbios. O reino de Kush era possivelmente politeísta, mas foi apontado como Judeu por vários historiadores antigos. Tal reino subsistiu até o séc. 4 d.C., mantendo relações de tolerância limitada com o Baixo Egito dominado pelos gregos e depois pelos romanos.
Kush/Meroe
Logo após a morte de Jesus, encontramos um nobre Núbio (ou Etíope, segundo a denominação grega) abraçando o Cristianismo:
E o anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te, e vai para o lado do sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que está deserta. E levantou-se, e foi; e eis que um homem Etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos Etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros, tinha ido a Jerusalém para adoração. Ele regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías. (Atos 8:26-28)
Tratava-se de um nobre seguidor do Judaísmo, possivelmente convertido a partir dos profetas e pregadores de Alexandria. Aqui, Candace não é um nome próprio, mas um título das rainhas do reino de Kush/Núbia/Etiópia (a denominação varia de acordo com quem escreveu os relatos sobre tal reino). Nos tempos de Atos, devia se tratar da rainha Amantitere (22-41 d.C.). Embora Kush/Núbia fosse um reino extremamente rico pelo seu ouro e fabricação das melhores armas do mundo antigo, o comércio de Alexandria com a Índia lentamente suplantou o comércio de Alexandria com a Grécia, o que empobreceu Kush e enriqueceu seus vizinhos mercadores navais, o reino negro de Axum, nas bordas do Mar Vermelho.
Reinos negros a leste do Nilo
Imitando o acontecido entre Filipe e o eunuco, em 333 d.C. o rei Ezana de Axum foi batizado Cristão por um de seus serviçais, que havia crescido junto com ele. Esse serviçal, Frumentius, foi consagrado bispo de Axum/Etiópia. No mesmo ano, Kush foi invadido e anexado ao reino de Axum, formando um contínuo Cristão que se estendia, agora, por uns 10 000 Km de oeste a leste, desde a costa norte do Marrocos, circundando o Saara, até Cirene, Cartago, a diocese em Alexandria e agora a grande Axum, que ia do litoral leste até a nascente do Nilo.
Seguindo a conversão de Axum, ao longo do séc. 6, enquanto Roma se fragmentava e as estórias de Arthur e seus cavaleiros eram escritas, cada vez mais reinos negros ao sul do Egito, em direção à nascente do Nilo, se uniram ao Cristianismo: Nobadia (543 d.C.), Makuria (567 d.C.) e Alodia (580 d.C.). Tais reinos nasceram na margem leste do Nilo, a partir de povoados antes dominados pelos Kushitas. A primeira tradução da Bíblia grega foi feita no séc. 6, justamente para a língua Ge'ez, falada na Núbia e Axum.
A diocese de Roma era importuna ao ditar normas para o Cristianismo, mas era útil por repelir militarmente os “inimigos de Cristo”. Após um período de empobrecimento (com a riqueza agora indo para a diocese de Constantinopla), em 480 d.C. Roma finalmente caiu vítima dos povos Germânicos e Góticos (norte-africanos) que controlava. Embora um novo poder Cristão já estivesse em atividade na cidade/porto de Constantinopla, a fragmentação de Roma abriu caminho para um poderoso inimigo do Cristianismo: o Islã.
Chegada do Islã
Os povos Persas começaram a se unir ao Islã em 630 d.C., nas cidades sagradas de Meca e Medina. Em menos de 10 anos, toda Arábia estava convertida ao Islamismo. Até 650 d.C., o Islã havia chegado ao Egito. Quando finalmente Alexandria foi tomada e o patriarca Copta aprisionado, muitos líderes Cristãos fugiram para Cartago e os reinos Núbios. Apesar da tensões iniciais, a igreja Copta pôde se manter em Alexandria, com uma certa submissão e controle dos califas. Indo ao sul pelo Nilo, os Árabes se depararam com o mesmo povo guerreiro que repeliu a invasão de Cambises II/Xerxes no passado.
Houve duas grandes batalhas contra os Núbios, a partir do Nilo. Na primeira, os arqueiros de Makuria praticamente exterminaram os invasores (lembremos do desafio colocado pelo rei Etíope aos enviados de Xerxes). No 2º ataque, Makuria e Nobadia se uniram e a movimentação dos seus exércitos era tão rápida que até mesmo os invasores árabes ficaram impressionados:
"Um dia eles investiram contra nós e desejavam continuar o conflito com espadas. Mas eles foram rápidos demais e suas flechas nos cegaram. Mais de 250 soldados ficaram cegos. Nós finalmente pensamos que o melhor a fazer com tal povo era estabelecer a paz." (escritor árabe al-Baladhuri)
Nobadia, Makuria e Alodia
Em 651 d.C., foi firmado um pacto chamado Bakt, inédito no mundo Islâmico: os árabes do Egito respeitariam as fronteiras com a Núbia; os cidadãos de cada país poderiam viajar livremente ao outro país, sem todavia se estabelecer, tendo garantida a sua segurança; a mesquita em Dongola seria respeitada; a Núbia daria anualmente 360 escravos ao governador de Assuã (Egito); os árabes dariam à Núbia trigo, vinho e tecidos. Com tal pacto, que durou por 5 séculos, a Núbia Cristã se transformou no principal aliado dos Fatimidas, dinastia árabe que controlava o Egito. Enquanto isso, o Cristianismo era quase varrido do norte da África. Mesmo a grande biblioteca de Alexandria foi destruída, num dos eventos históricos de maior perda para o patrimônio cultural do mundo.
Em poucos anos, apenas 4 cidades do norte da África mantinham bispos Cristãos. Na Núbia, por outro lado, o Bakt gerou um enriquecimento considerável: os emissários Núbios eram vistos frequentemente em peregrinações a Jerusalém e grandes catedrais Católicas foram erguidas. Uma das maiores era a de Faras, capital de Nobadia, em cujas paredes de pedra foram encontradas pinturas retratando atividades dos nobres. Mais ao sul, Dongola, capital de Makuria, possuía muitas igrejas e um palácio real de 11 metros de altura, enfeitado com tijolos vermelhos, casas com canos hidráulicos e salas de banho aquecidas, além de grandes pinturas de nobres, anjos e santos em suas paredes, mesmo as das casas. Mais ao sul ainda, Soba, a capital de Alodia, tinha jardins, monumentos magníficos e igrejas que luziam em ouro e tijolos vermelhos. Além do ouro, os solos da Núbia também eram muito férteis, produzindo cevada, painço, permitindo as criações de animais, produção de peles e tecidos e uma arte ceramista muito valorizada no mundo antigo, sobretudo proveniente de Faras e Dongola.
Cinco grandes bispos Católicos (porém Coptas, não submissos a Constantinopla), com suas respectivas “cortes” eram da Núbia. Esses reinos Cristãos legaram ao mundo textos religiosos misturando grego, copta e Ge’ez: textos canônicos (fragmentos dos evangelhos), códices contando a vida e as palavras dos santos (por exemplo, o milagre de São Ménas*), a homilia (ensinamento) de Pseudo-Crisóstomo, livros de missa e uma ladainha endereçada à Cruz.
Na metade do século 9, apareceu lá um personagem que mais tarde seria lembrado nas Mil e Uma Noites, do séc. 18. A tribo Bedja, da Etiópia, começou incursões militares no território Núbio, o que interrompeu os valiosos pagamentos do Bakt. Como resposta, tanto o líder Bedja (Ali Babá - sim, ele mesmo) e o rei Georgios II de Makuria (a sucessão do trono era matrilinear, como em Meroe) foram chamados a Bagdá para negociar com o califa al-Mu’tasim. Foi um expedição sem precedentes, que durou 2 anos, de um rei Cristão ao centro do mundo Islâmico, e que inspirou muitas estórias. A paz foi estabelecida e Georgios retornou para Dongola com grandes presentes, sendo acompanhado em seu retorno pelo próprio patriarca de Alexandria.
Após a queda dos Fatimidas em 1170, as relações da Núbia com o mundo Islâmico deterioraram-se rapidamente. A idade de ouro da Núbia chegou ao fim aproximadamente na mesma época.
Axum
Em seu apogeu, correspondia ao lugar onde estão hoje o norte da Somália, Djibouti, Eritréia e costa do Sudão, além do Yemen e sul da Arábia Saudita, do outro lado do Mar Vermelho. As origens do reino de Axum são controversas: vários historiadores apontam uma descendência do antigo reino negro de Da’amot, outros falam em uma migração de Kush e outros ainda se referem aos Hyksos. Talvez todos estejam em parte corretos. Por exemplo, a tradição Católica aponta Axum como o destino final da Arca da Aliança. O que sabemos com certeza é que, logo no séc. 1 a.C., quando Cartago foi derrotada e começou expansão Romana, Axum despontou como uma potência comercial ao mediar as rotas marítimas entre Roma, Arábia e Índia. Até o séc. 3 d.C., Axum era tão poderosa quanto Roma, Pérsia e a China.
No séc. 4 d.C., o rei Ezana tornou-se Cristão e aliou-se com a florescente Igreja de Bizâncio (Roma Oriental), Cartago e Núbia. Cidades portuárias como Axum (a capital), Yeha, Hawalti-Melazo, Matara, Adulis e Cohaito despontaram como centros de venda de marfins, ouro, incenso e especiarias. Junto com isso foram levantadas grandes catedrais Católicas sobre bases de 1 a 2 metros de granito. No séc. 6 d.C., Axum e Constantinopla (capital de Roma Oriental) sofreram duramente com a Praga de Justiniano (peste negra), sinal de havia fluxo de pessoa entre as duas metrópoles e uma era quase tão povoada quanto a outra. Além disso, a relação inicial com o Islã era muito favorável: durante a disputa entre Maomé e os Persas, Axum acolheu não só o profeta mas todos os seus partidários.
“Se fordes à Abissínia [Axum], encontrareis um rei sob o qual ninguém é perseguido. É um país de justiça onde Deus vos dará o alívio de vossas misérias” (Maomé)
Nada sobrou de pinturas de Axum, seja porque não existiram ou porque não resistiram ao tempo. Dos textos, por outro lado, devemos grande parte da tradição Cristã a esse reino. Os monges de Axum traduziram textos considerados apócrifos por outras Igrejas, como o Livro de Henoc, o Livro dos Jubileus, a Ascensão de Isaías, o Pastor de Hermas e o Apocalipse de Esdras. Somente as cópias em Ge’ze nos sobraram, da antiguidade. Ainda, preservaram obras teológicas como Querillos, as Regras de São Pacômio e o Physiologos, uma coleção de notícias semilendárias sobre os animais, plantas e minerais, acompanhadas de conclusões morais.
Apesar do início amigável, tanto Axum quanto os califas disputavam os portos comerciais no sul da Arábia. Por isso, um dos motivos (e o principal) da decadência de Axum foi o enrijecimento dos reinos Islâmicos e as cada vez mais freqüentes quebras dos tratados de paz (por um e outro lado). Para se ter uma idéia, no séc. 15 o Islã teria chegado até o sul da Espanha (criando a dinastia dos riquíssimos reis mouros de Córdoba) e até Constantinopla, uma das cidades mais poderosas do mundo, seria tomada. Mas, no final do séc. 7, a perda de espaço comercial já forçou Axum a intensificar seu investimento em agricultura. Como os solos eram pobres e as técnicas de cultivo primitivas, a produção de alimentos declinou assustadoramente rápido.
Os Bedja (de Ali Babá) também foram em parte responsáveis pelo desmantelamento de Axum. Suas expedições militares forçaram o povo a migrar para regiões mais montanhosas, com solos mais pobres. A capital foi transferida para Ku’bar (até hoje não encontrada). No final do séc. 10, praticamente apenas a tradição religiosa da velha Axum se mantinha, sendo aos poucos absorvida nas tradições pagãs dos povos próximos não convertidos pelo Islã. Uma rainha Etíope desconhecida (há inúmeros nomes para ela) parece ter dado fim ao que sobrava de Axum:
“No que concerne ao país dos abissínios, há inúmeros anos ele é governado por uma mulher; ela matou o rei dos abissínios que era conhecido sob o título de Hadānī. Até hoje ela domina com toda independência seu próprio país e os arredores do território do Hadānī, no sul da Abissínia. É um vasto território, sem limites determinados, cujo acesso é difícil em razão dos desertos e isolamentos” (Ibn Hawkal)
“Ao despejar Abba Petros (Pedro) devidamente eleito, ao aceitar Minas, o usurpador, os reis que nos precederam violaram a lei (...). Por causa disso, Deus se enfureceu contra nós (...). Nossos inimigos se levantaram e levaram muitos de nós como cativos. Eles queimaram o país e destruíram nossas igrejas (...) nos tornamos errantes (...). O céu cessou as chuvas e a terra não mais nos dá os seus frutos (...). Atualmente, somos como ovelhas abandonadas e sem um guardião” (carta do rei de Axum ao rei de Dongola)
No séc. 11, quando começaram as Cruzadas**, cidades da Etiópia como Lalibela assombraram os cavaleiros europeus por possuírem igrejas (a maioria sem uso) e uma remota tradição Católica.
Fim da História
Até o séc. 15, a expansão Islâmica praticamente extinguiu o Cristianismo do norte da África. Por isso, os escravos do norte Africano que chegaram ao Brasil, a partir do séc. 18, eram Islâmicos, do Sudão, chamados "malês" (de "imali", ou "que adotou o Islã"). Apesar do domínio Islâmico na Idade Média, a Igreja Copta resiste até os dias atuais e até produziu santos Católicos. Além disso, tanto a teologia quanto a tradição Católicas devem muito ao que foi produzido em Cirene, Cartago, Núbia e Axum em seu período Cristão. E, no caso da Igreja Protestante, a obra de Santo Agostinho e o estabelecimento das primeiras comunidades na Europa baseadas em Alexandria trariam grandes mudanças, a partir do séc. 16.
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* Segundo a lenda, Ménas ou Minas foi um mártir Cristão, avisado de seu martírio por um anjo. Após ser executado, colocaram fogo em seu corpo, mas o corpo não queimou. Nem tampouco se decompôs ao ser transportado por muitos lugares. A tradição Copta associa vários milagres posteriores à proximidade de tal corpo.
** As Cruzadas foram um movimento liderado pela Igreja Bizantina (com sede em Constantinopla) para unir os reis Cristãos da Europa em prol da reconquista de Jerusalém. Embora Jerusalém logo tenha sido tomada pelos cavaleiros, durante séculos houveram batalhas e a cidade voltou ao domínio árabe em 1291, permanecendo assim até o início do séc. 20.
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