segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A igreja do outro mundo


Este texto foi adaptado da reportagem do New York Times "Escape Roy Moore's Evangelicalism", de 27/nov/2017

Apesar das recentes emergências de documentos retratando o racismo no Brasil, ainda somos um dos poucos lugares onde brancos e negros convivem nas mesmas igrejas. E talvez as igrejas ainda sejam uns dos poucos lugares onde não se fala em racismo. Nos EUA, 155 anos após a abolição e muitos movimentos raciais, a situação ainda é bastante desanimadora.

A IGREJA BRANCA

Kaitlyn Schiess possui um pedigree evangélico invejável. Ela cresceu em igrejas evangélicas no Colorado e Virgínia e se formou na Liberty University antes de entrar no Seminário Teológico de Dallas no ano passado, para se preparar para uma carreira na igreja. Mas ultimamente ela ficou frustrada com o fracasso dos Evangélicos em vencer o preconceito no meio deles. Ao longo da semana, como Roy Moore (candidato ao senado dos EUA pelo estado do Alabama), enfrentou mais uma vez alegações de abuso de adolescentes, muitos Evangélicos levaram-se a sua defesa. Roy Moore é um político conhecido nos EUA por suas ações "cristianistas" como instalar um monumento dos 10 mandamentos no Supremo Tribunal Federal (contra a lei) e defender políticas de fundo racista, anti-homossexual e anti-islâmico. Algo como a famosa "bancada Evangélica" no Brasil. Além disso, ele já apareceu outras vezes na mídia por ser flagrado em relacionamentos com adolescentes, por recebimentos ilícitos e acusações de favorecimentos de parentes em contratos do governo. Também, em nada diferente dos nossos políticos.

Para Schiess, os Evangélicos defendendo Moore é um sinal de que um novo ritual substituiu a adoração dominical e os estudos bíblicos. Trata-se de uma prática devocional profana, com imenso poder para moldar as crenças dos Evangélicos. Esta liturgia é o consumo de notícias conservadoras em canais de TV pagos. Os liberais adoram queixar-se sobre a desinformação dos conservadores, mas a queixa de Schiess é mais profunda: os apresentadores de TV Sean Hannity e Tucker Carlson não são apenas provedores de notícias distorcidas, mas altos sacerdotes de uma religião falsa. Nos EUA, a Fox News é o equivalente do Jornal Nacional brasileiro, uma referência de divulgação. Mas é uma divulgação vinculada a um público religioso, e Schiess alerta que eles forjam o que muitos americanos sabem do seu país. Assim como ocorre no Brasil.

Não é segredo que os seres humanos - nos ambientes religioso e secular - geralmente agem mais com impulsos do que lógica. Cientistas sociais documentaram nossa tendência a rejeitar evidências confiáveis, se elas desafiarem nossas crenças. As horas de testemunho das vítimas não impedirão os evangélicos americanos de verem Roy Moore como um mártir cristão perseguido pelos liberais. Suas lealdades são fortemente influenciadas pela mídia conservadora, mais do que pelo ensino nas suas igrejas, disse Schiess. "Esse é o desafio para os líderes da igreja hoje, penso eu - redescobrir como formar nossa lealdade a Deus e ao seu reino". Quando perguntei a Schiess sobre a política evangélica branca, esta foi a sua resposta: “Preste atenção ao culto, tanto dentro como fora da igreja, porque a igreja não está fazendo o seu trabalho”. Os seres humanos participam de atos devocionais rituais e coletivos. E a maneira como adoramos tem conseqüências políticas. Ela molda nossa resposta ao mal e nossa reação a pessoas diferentes de nós mesmos.

Alguns Evangélicos ficaram tão frustrados com o cativeiro de sua tradição dentro de um grupo político em particular - e as idolatrias da supremacia branca - que retiraram radicalmente o Cristianismo do ativismo político. Mas adoração, afinal de contas, não é algo que acontece apenas na igreja.

SEGREGAÇÃO

O filósofo James K. A. Smith argumentou que nossas vidas são atravessadas por atos inconscientes de culto, seja no que buscamos na internet ou nas orações por um filho. Nós somos animais litúrgicos porque desejamos o Reino de Deus, somos o que amamos. Por isso, erradicar nossas idolatrias significa uma mudança de estilo de vida radical. Alguns conservadores desiludidos abraçaram o que o escritor cristão Rod Dreher chama de "Opção de Bento": um retiro do mundo para preservar os valores da civilização cristã durante esta nova Era das Trevas, no espírito de São Bento. Na prática, isso se traduz em cercar-se tanto quanto possível por aqueles que compartilham seus mesmos valores, abster-se quase totalmente do mundo exterior.

Ele argumenta que os cristãos devem parar de tentar fazer a América “boa novamente". Devem parar de defender predadores como o Sr. Moore, não importa o que façam. “O conhecimento se tornou poderoso contra os cristãos tradicionais", escreve o Sr. Dreher em "The Benedict Option".

Num momento em que muitos americanos vivem em comunidades segregadas econômica e etnicamente, parece duvidoso que uma “retirada do mundo” estimule a empatia. O desejo de eliminar o externo e diferente realmente foi o que permitiu a eleição de Donald Trump: um impulso de associar-se apenas a pessoas iguais e, pior, com a certeza de uma perseguição pelas forças do mal.

Luma Simms gosta de dizer que ela tentou a “opção de Bento”. Ela emigrou do Iraque para a Califórnia quando jovem. Seu pai era ortodoxo sírio, sua mãe católica caldéia, mas o desejo de misturar-se ao Novo Mundo levou ela a se converter ao protestantismo Evangélico. "Quando me perguntei o que significava se tornar americana, parte da resposta era abraçar uma visão de mundo Evangélica", ela me contou. "Eu queria estar no lado político que acreditava que a América era boa". Depois que Simms se tornou mãe, ela começou a se preocupar com a influência da cultura secular em seus filhos. Bem como com a politização do mundo Evangélico. Em 2006, sua família mudou-se para o Arizona para se juntar a uma igreja em células que promovia educação em casa. "Nós estávamos protegendo nossos filhos, querendo-os cidadãos mais fortes. Quando a cultura americana começasse a desmoronar, eles teriam sido bem disciplinados e educados, para se tornarem líderes”, ela disse.

A comunidade que frequentava era tão restrita e dogmática que a afastou de sua filha mais velha e ela interrompeu o contato com seus próprios pais. A igreja "fez pessoas como nós verem quase todos fora desse círculo como um inimigo em potencial", disse-me Simms. Após uma disputa quanto à autoridade do pastor, a igreja se desintegrou em 2010. Embora essa situação lembre muito os movimentos cristãos mais radicais dos anos 1920, mesmo as igrejas convencionais podem, inadvertidamente, encorajar a quarentena cultural: a maioria dos americanos frequenta igrejas onde um único grupo étnico representa mais de 80% da congregação.

Os reformadores têm trabalhado há muito tempo para construir pontes multi-raciais na academia cristã e na mídia, mas esses esforços por si só não mudarão as comunidades religiosas. Aquemini Uwan é uma niger-americana que se aventurou mais do que a maioria dos negros nas cidadelas do evangelicalismo branco. No ano passado, ela se formou no Westminster Theological Seminary em Glenside, estado da Filadélfia. Durante a maior parte do tempo lá, era a única negra em seu curso. Hoje, ela escreve artigos para mídia evangélica branca, como a revista Christianity Today. Mas continuou a frequentar "uma igreja predominantemente negra".

Uwan acredita que, nas igrejas multi-raciais, a adoração é diferente. "Adorar requer ser vulnerável. Há o que os teólogos chamam de intrusão escatológica. É uma antecipação do que vamos experimentar com Deus ao redor do trono nos novos céus e na nova Terra. Nos faz sair de nosso próprio mundo por uma hora ou duas. Você está perdido em adoração, em admiração. Em um ambiente dominado por brancos, você tem que fortalecer a si mesmo o tempo todo, porque sua ortodoxia está sempre em questão devido à sua cor. Não há como ser vulnerável e honesto”, disse ela.

Quando o Rev. Dr. Martin Luther King Jr. observou que 11 horas em uma manhã de domingo (horário dos cultos dominicais lá) é a hora mais segregada na América, ele estava reconhecendo o poder especial que o ritual e a comunidade têm de alimentar ou enfraquecer o amor e o ódio. “Não há substituto para compartilhar o pão e o vinho com pessoas diferentes de você”, disse Schiess, a respeito de sua crítica aos Evangélicos. Ela lembrou a luta contra ídolos falsos: "A Fox News cria uma forma um medo, uma caricatura das pessoas. Se a comunhão Cristã fosse feita em igrejas com populações diversas, isso acabaria com o medo”.

UM NOVO MUNDO EVANGÉLICO

Depois de passar do Catoliscismo ortodoxo para o Evangelicalismo americano, nossa entrevistada, Simms, retornou ao Catolicismo, movida pelo equilíbrio de outro mundo e a compaixão terrena. "Os sacramentos nos elevam", disse ela. Para os católicos, o pão e o vinho não são metáforas para o corpo e o sangue de Jesus, mas o real - um canal milagroso e carnal entre Deus e a criação. O Vaticano enfatizou a doutrina do ";corpo místico de Cristo" - que inclui, pelo menos potencialmente, todos os seres humanos - em resposta ao racismo, ao genocídio e a outras atrocidades do século XX. A teologia Católica não é inerentemente mais moral do que o Protestantismo, e os sacramentos não salvaram a Igreja Católica de hipocrisia e crime ao longo dos séculos. Mas, para alguns Evangélicos, uma sensação mais forte de participação no santo mistério oferece uma sacudida metafísica ao sistema - numa altura em que a relação entre culto evangélico e política parece quebrada.

Richard Rohr, um frade franciscano e prolífico autor que dirige o Centro de Ação e Contemplação em Albuquerque, ficou surpreso quando sua editora lhe disse que seus livros sobre contemplação cristã e liturgia são mais populares entre os jovens Evangélicos - que vêem uma direta conexão entre mudança de adoração e mudança de política. "Os evangélicos com quem trabalho estão desiludidos com a incapacidade de seus pais para lidar com o racismo, o sexismo e a homofobia - as questões que destroem nosso país", ele me disse. Outros jovens cristãos estão buscando novas formas de culto fora das igrejas tradicionais. Se você está se perguntando qual é o futuro da religião não tão organizada, olhe para a comunidade que cresceu em torno de "The Liturgists", um podcast hospedado por Michael Gungor, músico, e Mike McHargue, um escritor científico (ambos são ex-evangélicos).

Em 2014, começamos a partir de uma sensação de solidão existencial", disse-me o Sr. Gungor. "Eles transmitem música litúrgica, meditações e entrevistas com teólogos e ativistas. O podcast criou uma comunidade com uma vida própria. Os ouvintes se encontram através das mídias sociais e os anfitriões viajam pelo país para convocar eventos onde os fãs comem, bebem e adoram juntos - grupos que muitas vezes continuam reunidos depois que o Sr. Gungor e o Sr. McHargue deixam a cidade". À medida que a América desinstitucionaliza e se afasta da religião, as pessoas - especialmente os Evangélicos - perderam algo. Sua comunidade se tornou principalmente virtual, com eles vendo pessoas numa tela e não em carne e sangue, e "há dados mostrando que isso os leva à solidão e à depressão", disse o Sr. McHargue.

"O núcleo de cada podcast é "você não está sozinho", e isso atrai pessoas, mas nós não podemos realmente estar com eles. Temos que atraí-los para algum tipo de prática comunitária". Um a dois milhões de ouvintes baixam o podcast a cada mês, e certamente é uma das subculturas mais teologicamente diversas na internet. A audiência inclui ateus, Evangélicos, protestantes liberais, Católicos e Ortodoxos, todos buscando uma nova comunidade espiritual. Todas essas pessoas têm uma coisa em comum: o instinto de que a adoração deve ser um ato de humildade, não de arrogância. Deve ser uma experiência desconcertante, não repetindo o que é fácil e familiar. A batalha pela alma no Evangelicalismo, a luta para destacá-lo da supremacia branca, da misoginia - e do instinto de defesa de políticos como Roy Moore - exige argumentos sólidos e evidências.

Esperamos todos que o esforço de pensadores, ativistas e inclusive os pregadores Cristãos possa  avançar sobre os hábitos e relacionamentos dentro das comunidades de adoração. Essas comunidades precisam novamente ter o poder remodelar corações, apaziguar pessoas irritadas, transformá-las em corações mansos e mais amorosos. Como Cristo pretendia.

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