sábado, 11 de novembro de 2017

A guerra das árvores - uma nova visão da política de Canaã

À esquerda, um desenho raro de William Jenk Morgan, mostrando o profeta Aías amaldiçoando a esposa de Jeroboão. À direita, mapa de Israel dividida.

Foram uma vez as árvores a ungir para si um rei, e disseram à oliveira: Reina tu sobre nós. Porém a oliveira lhes disse: Deixaria eu o meu azeite, que Deus e os homens em mim prezam, e iria governar as árvores? Então disseram as árvores à figueira: Vem tu, e reina sobre nós. Porém a figueira lhes disse: Deixaria eu a minha doçura, o meu bom fruto, e iria governar as árvores? Então disseram as árvores à videira: Vem tu, e reina sobre nós. Porém a videira lhes disse: Deixaria eu o meu mosto, que alegra a Deus e aos homens, e iria governar as árvores? Então todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu, e reina sobre nós. E disse o espinheiro às árvores: Se, na verdade, me ungis por rei, vinde, e confiai-vos debaixo da minha sombra; mas, se não, meu fogo consumirá até aos cedros do Líbano. (Juízes 9:8-15)

Hoje, há muito deserto na região da Síria, Líbano e Israel. Mas a desertificação dessas áreas é obra humana e ocorreu principalmente na Idade Média, com a devastação de florestas para construir castelos e armas durante as Cruzadas (séc. 9-12), durante o domínio romano (séc. 1 a.C.-5 d.C) e também devido ao comércio de madeira que abastecia os navios fenícios no mundo antigo. Áreas como Israel, no período romano e ainda mais nos tempos do Velho Testamento, era uma "terra de leite e mel" repleta de grandes florestas de carvalho e pinheiros, fechadas o suficiente para que exércitos não pudessem passar por ali.

O entorno de Jerusalém, ainda mais, é um terreno montanhoso, como quase toda Judéia. Os vales eram férteis e os topos das montanhas ao norte eram rodeados de grandes árvores e abrigaram pequenas vilas, que se tornaram cidades fortificadas na Era do Bronze (3200 – 1200 a.C.) mais ou menos como a famosa Tróia dos gregos. Esse foi o período em que se organizaram as 12 tribos de Israel, como reinos dividindo espaço com as nações cananéias Moab, Amon, Filístia, Edon, Fenícia e Aram. Freqüentemente as cidades-estados guerreavam entre si ou eram subjugadas por uma nação maior. Os livros de Josué e 1ª Samuel estão cheios de narrativas dessas batalhas.

Davi estendeu seu reinado a partir do sul, na fronteira com a Filístia. Durante seu reinado (aprox. 1000 a.C.), a região de Jerusalém (Jebus-Shalim são referências ao povo e ao deus cananeu do sol poente) foi conquistada dos Jebuseus. Ao sul da montanha de Jerusalém estava a fortaleza-templo de Sião. Jerusalém era, até então, a fortaleza mais impenetrável daquela área, que resistiu aos ataques israelitas desde os tempos de Josué (1400 a.C.). Os habitantes que sobreviveram ao ataque foram finalmente feitos servos nos reinados de Davi e Salomão. Junto com Jerusalém, outras fortalezas ao redor foram tomadas:

Porém Davi tomou a fortaleza de Sião; esta é a cidade de Davi. ... Assim habitou Davi na fortaleza, e a chamou a cidade de Davi; e Davi foi edificando em redor, desde Milo para dentro. (2ª Samuel 5.7-9, 1ª Crônicas 11.7-8)

No livro de Juízes, há várias referências à “casa de Milo”, formada por nobres/sacerdotes cananeus, assim como as estelas dos reis cananeus trazem lembranças de batalhas contra a “casa de Davi” (Juízes 9). Aparentemente, Davi se aproveitou das fortalezas de tijolos ao redor para erguer uma grande muralha envolta de Jerusalém, ou mais propriamente várias muralhas, que aproveitavam as muralhas mais antigas de outras fortalezas como Milo e Sião. A nova grande capital de seu reino se estendeu por vários montes vizinhos. 

Era uma época de militarismos. Não apenas Davi iniciou a construção de cidades fortificadas, mas também foi seguido por seu único herdeiro vivo, Salomão. Entre uma coisa e outra, nos anos finais do reinado de Davi, os príncipes de Israel mataram um ao outro e um deles, Absalão, até tentou tomar-lhe o trono. Salomão, filho do famoso caso extra-conjugal de Davi e Bateseba, formou escolas de sábios para gerenciar o reino (os livros de Provérbios e Salmos são frutos dessas escolas), mas usou como mão de obra para suas construções os povos conquistados. Foram criados novos tributos ao seu povo, a fim de pagar pelos materiais das muralhas, das fortalezas e pelo sustento dos trabalhadores.

E esta é a causa do tributo que impôs o rei Salomão, para edificar a casa do Senhor e a sua casa, e Milo, e o muro de Jerusalém, como também a Hasor, e a Megido, e a Gezer. Porque Faraó, rei do Egito, subiu e tomou a Gezer, e a queimou a fogo, e matou os cananeus que moravam na cidade, e a deu em dote à sua filha, mulher de Salomão. Assim edificou Salomão a Gezer, e Beth-Horom [casa de Horon], a baixa, e a Baalate, e a Tadmor, no deserto daquela terra. (1ª Reis 9.15-18)

Baalate, ou Balatah, é uma cidade antiqüíssima, citada no Gênesis e situada entre os montes Gerizin e Ebal, provavelmente a ancestral da cidade sagrada de Siquém. Seu nome é uma referência ao carvalho, árvore imensa e possivelmente sagrada para os cananeus que a fundaram. Na narrativa de Abraão (Gênesis 12.6), ele vai até o “carvalho de Moré” na terra de Baalate/Siquém, que é o nome de um lugar. Em Gênesis 33.18, seu herdeiro Jacó vai até a cidade de Siquém e compra uma terra de Hermor, o patriarca local, onde levantou um altar para El. Ambas as narrativas são bem posteriores aos eventos, possivelmente re-escritas a partir dos papiros no Templo nos tempos do rei Josias de Judá (615 a.C.), mas trazem algo sobre a ocupação humana na área, que cresceu de um povoado para uma cidade. Existem resquícios humanos ali de 5000 a 1150 a.C. , depois a área ficou desabitada até 950 a.C., quando foi re-construída. Tal obra coincide com os reinados de Davi e Salomão.

MEIO AMIGOS

De fato, os israelitas não tomaram Baalate/Siquém. Registros egípcios (as cartas de Amarna, sobre as colônias egípcias em Canaã) falam dos filhos de Lab’ayu (Labão?) entregando Siquém aos Hapiru (Hebreus) nos tempos de Josué. Provavelmente se tratava de uma cidade sagrada em ruínas ou semi-desabitada, que foi favorecida por riquezas e comércio dos israelitas. Em Gênesis 34, um filho de Hemor (chamado Siquém) estabelece tratado de paz com Jacó, sendo circuncidados ele e sua família. A narrativa também é tardia (se bem que os egípcios usassem a circuncisão), mas não há qualquer registro de batalhas entre Baalate/Siquém e os israelitas.

Seria surpreendente se a Tadmor das obras de Salomão fosse o oásis de Tadmor, na Síria. O nome é uma referência às palmeiras que crescem ali. Esse grande oásis foi mais tarde ocupado pelos romanos e transformado numa bela e importante cidade de entreposto entre Roma e a Pérsia, chamada Palmira,  cheia de aquedutos, praças e pórticos de pedra, de onde também vem o nome "palmeira". A Tadmor dos romanos era de fato no deserto, mas bem distante de Jerusalém, o que significaria que Salomão estendeu fortalezas até a 200 Km de sua capital.

Josué esteve em Siquém, sem um relato de batalha. Embora pensemos usualmente em um domínio militar e religioso dos locais no movimento de “invasão” de Canaã pelos israelitas, tudo indica que foi mais uma ocupação de governos, com estabelecimento de tratados políticos e manutenção das populações locais, como seu um certo “partido político” se tornasse influente na região. Estudos arqueológicos recentes, por exemplo, mostram uma presença de 94% do DNA cananeu antigo (extraído de esqueletos de 1700 a.C., anteriores portanto Êxodo em 1500-1400 a.C.) no DNA de populações atualmente presentes em Canaã. Isso vai completamente contra o ideal de genocídio dos cananeus apresentado no livro de Josué. Em Siquém, Josué ergueu um altar (Massebah) de pedra que pode ser visto até os dias atuais (Josué 24), simbolizando o governo israelita e seu Senhor, mas referências posteriores citam em Siquém as casas de Baal-Berith e Milo (Juízes 9.4), que são famílias de nobres e sacerdotes dos deuses cananeus. Também há sinais dos cultos cananeus mantidos por ali, conforme a nomeação “casa de seu deus” quando o texto bíblico diz que se refugiaram do governo israelita.

O texto de juízes até nomeia um templo-fortaleza do deus Berith que foi destruído pelo juiz/rei Abimeleque. As ruínas dessa estrutura foram encontradas por arqueólogos e revelaram se tratar de um imenso templo, na verdade o maior da Canaã antiga, construído por volta de 1700 a.C., antes da dominação egípcia sobre a região. A camada de cinzas relativa ao incêndio causado por Abimeleque em 1125 a.C. também estava presente, confirmando que, embora não tão ruins, as relações entre cananeus e israelitas não eram sempre pacíficas.

A mistura entre as culturas israelita e cananéia se mostra ainda no status de Siquém como cidade sagrada, que se manteve para além da destruição do grande templo na época dos Juízes (1350-1050 a.C.) e até para além do reinado de Salomão (970-930 a.C), pois seu herdeiro Roboão foi a Siquém para ser coroado e honrado pelas famílias reais da Judéia (1ª Reis 11.43, 2ª Crônicas 10.1).

REIS, NOBRES E PROFETAS

Em Israel, os profetas (ex. Balaão, Samuel, etc) tinham grande influência sobre o povo e por isso mesmo eram mantidos próximos pelos líderes. Tais profetas pareciam residir nos templos israelitas e cananeus, onde recebiam ofertas variadas como pães, bolos e mel (1ª Reis 14.3), ou mesmo casas (1ª Samuel 7.17) pelas suas consultas. Saul, por exemplo, foi eleito rei pela influência do profeta Samuel de Siló. Saul tentou manter Samuel próximo a sua corte e, quando esse se afastou (conforme sugerido pelo texto bíblico, devido a tentativas de Saul de assumir a função religiosa), apontou a Davi como novo rei. 

Continuando a militarização iniciada por Davi, Salomão havia imposto tributos mais pesados ao povo para a construção do Templo, diversas muralhas ao redor de Jerusalém e fortalezas. Além disso, nomeou contramestres e obreiros para suas obras, que presidiam sobre servos cananeus:

Dos seus filhos, que ficaram depois deles na terra, os quais os filhos de Israel não destruíram, Salomão os fez tributários, até ao dia de hoje. Porém, dos filhos de Israel, Salomão não fez servos para sua obra (mas eram homens de guerra, chefes dos seus capitães, e capitães dos seus carros e cavaleiros). Destes, pois, eram os chefes dos oficiais que o rei Salomão tinha, duzentos e cinqüenta, que presidiam sobre o povo. (2ª Crônicas 8.8-10)

Os textos de 1ª Reis e 2ª Crônicas, por outro lado, indicam que havia israelitas trabalhando (e não só presidindo) nas obras de Salomão:

E esta foi a causa por que [Jeroboão] levantou a mão contra o rei: Salomão tinha edificado a Milo, e cerrou as aberturas da cidade de Davi, seu pai. E o homem Jeroboão era forte e valente; e vendo Salomão a este jovem, que era laborioso, ele o pôs sobre todo o cargo da casa de José. (1ª reis 11.27-28)

E lhe falou [o rei Roboão]: “Meu pai agravou o vosso jugo, porém eu ainda aumentarei o vosso jugo; meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões.” (1ª Reis 12.14, 2ª Crônicas 10.11)

A fim de manter a paz entre esses servos, provavelmente como seus antecessores, Salomão tolerava os templos e cultos cananeus. Os impostos pesados, no entanto, começaram a estimular revoltas populares que conseguiram o apoio de profetas como Aías de Siló. Esses movimentos populares deram autoridade a Jeroboão (Je-roboão, filho de Roboão), um dos encarregados de Salomão, que se tornou líder popular e por fim foi nomeado em 920 a.C. como novo rei pelo profeta Aías (1ª Reis 11.29-31). Ao contrário de Saul, cuja casa e exército foram derrotados pelas tropas de Davi, Roboão assumiu o trono de seu pai Salomão e manteve as tribos do sul unidas a ele.

DUAS REALEZAS

A “casa de José” era uma das famílias reais israelitas, constituída pelas tribos de Efraim e Manassés. A casa de José comandava uma faixa muito fértil de terras entre o rio Jordão e o Mediterrâneo, onde estavam situadas as cidades sagradas de Siquém e Siló. Isso indica que tal casa real era extremamente rica e poderosa, o suficiente para desafiar Salomão. Josué, líder da “invasão” israelita em Canaã, pertencia à tribo de Efraim e à casa de José, o que também testemunha a favor do poder de tal família. Salomão e Roboão, por outro lado, eram da igualmente poderosa casa de Judá. A existência de duas famílias mais poderosas na região leva alguns estudiosos a acreditar que, enquanto a casa de José era formada por uma nobreza Hyckso migrando a partir do Egito da 18ª dinastia, a casa de Judá e outras tribos descendiam de famílias reais israelitas/cananéias bem mais antigas, que jamais deixaram Canaã.

Como Saul perseguiu o líder popular Davi em defesa de seu trono, Salomão perseguiu a Jeroboão (1ª Reis 12.1-2). A aliança de Davi com Moab, a tolerância de Salomão com os cananeus e depois a aliança de Jeroboão com a nobreza egípcia fortalecem a teoria de dois centros de poder em Israel. Um deles antigo, mais ao sul, e outro novo e ligado ao Egito, ao norte. Possivelmente é dessa fonte ao norte que falavam as cartas de Amarna, sobre os reinos súditos em Canaã.

Com a morte de Salomão e a ação do profeta Aías de Siló, a tensão entre os dois centros de poder aumentou e por fim Israel foi dividida em 2 reinos: Judá ao sul, com Jerusalém como capital e Roboão como rei, e Israel ao norte, com Samaria como capital e Jeroboão como rei. Diversas vezes os dois reinos entraram em guerra um com o outro.

O texto bíblico é extremamente pesado com Jeroboão, descrevendo-o como um grande pecador. Desse texto sabemos que ele fortaleceu o culto ao deus-boi egípcio Ápis (o mesmo culto contra o qual Moisés lutou), temendo que a influência do templo de Salomão em Jerusalém levasse o povo a seguir o rei Roboão, de Judá. Foram implantados ídolos dourados em forma de boi nos templos de Beth-El e Dan. Ambos eram templos cananeus antigos e, novamente, observamos a força do Egito sobre a casa de José. Em 1ª Reis 13.1, vemos que, assim como era com Salomão, o rei tinha participação nos cultos dos templos. 

Jeroboão também destituiu os sacerdotes da tribo de Levi, que historicamente estavam ligados à unificação de Israel e são sempre apontados como nobres que não possuem terras. Voltando algumas gerações, Jeroboão repetia o pecado que custou o reinado de Saul.

Também [Jeroboão] fez casas nos altos; e constituiu sacerdotes dos mais baixos do povo, que não eram dos filhos de Levi. (1ª Reis 12.31)

A qualquer que queria, [Jeroboão] consagrava sacerdote dos lugares altos. (1ª Reis 13.33)

Jeroboão ainda acabou desafiado por um profeta estranhamente sem nome, chamado diversas vezes de “homem de Deus”, que os textos judaicos fazem supor ser Ido.

Os demais atos de Salomão, tanto os primeiros como os últimos, porventura não estão escritos no livro das crônicas de Natã, o profeta, e na profecia de Aías, o silonita, e nas visões de Ido, o vidente, acerca de Jeroboão, filho de Nebate? (2ª Crônicas 9.29)

No texto bíblico, as ações de Jeroboão se traduziram em o profeta Aías de Siló amaldiçoar ele e sua descendência. Seu filho, Abias, morreu ainda menino, supostamente vítima da maldição.

Antes tu fizeste o mal, pior do que todos os que foram antes de ti; e foste, e fizeste outros deuses e imagens de fundição, para provocar-me à ira, e me lançaste para trás das tuas costas. Portanto, eis que trarei mal sobre a casa de Jeroboão; destruirei de Jeroboão todo o homem até ao menino, tanto o escravo como o livre em Israel; e lançarei fora os descendentes da casa de Jeroboão, como se lança fora o esterco, até que de todo se acabe. (1ª Reis 14.9-10)

A despeito da maldição, outro príncipe – Nadabe – assumiu o trono de Israel (reino do norte) quando Jeroboão morreu, após 22 anos de reinado. Esse tempo não pode ser considerado curto; Roboão, filho de Salomão e rei de Judá, reinou por 17 anos. Em Judá não houve mais solidez do culto a Javé do que no norte. Roboão seguiu o culto da deusa cananéia Asherah, senhora das florestas e às vezes denominada esposa de Baal, deus do trovão e das tempestades. Apesar disso e mesmo invasões do Egito (aliado do reino do norte), Judá não foi amaldiçoado. Afinal, é o texto histórico de Judá que chegou a nós. Os textos do reino do norte talvez se encontrem entre os vários livros perdidos que são citados no Velho Testamento.

FIM DA HISTÓRIA

O reino do norte foi conquistado pelo Império Assírio em 722 a.C. e grande parte da população foi substituída por colonos de outros territórios ocupados. Por isso, os samaritanos (da capital antiga, Samaria) deixaram de ser considerados israelitas pelo povo de Canaã. Eles não receberam essa terra como herança da parte de Deus! O reino do sul, aliado da Assíria e depois do Egito, foi conquistado pelo Império Babilônico (assírios + medos + persas unificados pelo pai de Nabucodonosor) em 586 a.C., quando os nobres, profetas e sacerdotes de Judá foram levados para Babilônia.

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SOBROU ISSO AQUI

A dúvida de Moisés - loungecba.blogspot.com
Jebusite - wikipedia
Jerusalem 3000 - When did King David conquer Jerusalem, Israel ministry of foreign affairs, 1993
Sechem, All about archeology, 2010
Tel Dan Stele - wikipedia
Tribe of Joseph - wikipedia

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