domingo, 11 de janeiro de 2015

O Príncipe do Egito


Todos estamos acostumados ao Êxodo bíblico retratando uma disputa pessoal entre Moisés e Ramsés, príncipes do Egito criados juntos, com a diferença de que um deles se tornaria faraó e o outro lideraria os israelitas em uma cruzada para a Terra Prometida. O próprio Deus faria questão de lembrar esse evento pelos milênios seguintes. No entanto, essa imagem é bastante amadora.

Primeiro, porque as referências de nomes e datas são falhos no que se refere ao Egito do Velho Testamento. Os reis do Egito são quase sempre referidos simplesmente como Faraó, o que seria equivalente a chamar de César todos os reis romanos após Júlio César. Houve várias linhagens ou dinastias de faraós no Egito. Pelo menos um ou dois faraós estão envolvidos, o "faraó da opressão" que escravizou os israelitas, e do "faraó do Êxodo", em cujo governo ocorre a fuga dos israelitas. O livro rabínico Seder Olam Rabbah (século 2 d.C.) determina o início do Êxodo em 2448 AM (1313 a.C.). Esta data tornou-se tradicional no Judaísmo rabínico. Em 1ª Reis 6.1 afirma-se que o Êxodo ocorreu 480 anos antes da construção do Templo de Salomão, o que implicaria uma data secular do Êxodo em 1477 a.C.

Tanto uma data como a outra situam o Êxodo na 18ª Dinastia do Egito, no seu início ou no seu final. Essa dinastia representa um período politicamente crítico do Egito, que não poderia deixar de se refletir sobre os Israelitas (Hapiru, mais tarde Hebreus) ali morando. Os Israelitas haviam se movido para o Egito durante uma longa estiagem (pois o Nilo permite as lavouras no Egito mesmo sem que haja chuvas) quando José tornou-se vizir da nação mais poderosa da terra e atribuiu-lhes a terra de Goshen (Gênesis 45.10). Era comum o Egito ‘apadrinhar’ nações vizinhas em troca de produtos agrícolas e soldados. Porém, devido a disputas políticas entre as famílias nobres da 17ª dinastia, o Egito havia se fragmentado em pelo menos 12 pequenos reinos. Então os vizinhos Edomitas (aparentados com os Hapiru (Deuteronômio 23.7) e chamado de ‘os pastores’) invadiram as áreas férteis do Nilo e instalaram uma monarquia estrangeira conhecida como Hiksos. Embora amigáveis, em 1 século de domínio, os Hiksos nunca foram aceitos pelos egípcios. A 18ª dinastia representa a expulsão do último rei Hikso (Khamudi, 1530 a.C.) e a retomada do trono pelos egípcios. Ao fazerem isso, os egípcios contraíram um enorme senso de poder e repúdio aos estrangeiros. Os Edomitas mais militarizados foram repelidos, enquanto os Israelitas mais pacíficos foram escravizados.

Então subiu ao trono do Egito um novo rei, que nada sabia sobre José.” (Êxodo 1.8).

Devido à divergência de datas, existe mais de um candidato a faraó do Êxodo. Os principais são Tutmés/Tutmosis III (1485-1431 a.C.), da 18ª dinastia, e Ramsés II (1279-1213 a.C.), da 19ª dinastia. Tumés III foi um rei poderoso, conquistador das nações vizinhas. Seu poderoso exército desapareceu misteriosamente, talvez afogado no Estreito de Tiran, na embocadura do Mar Vermelho. Ramsés II, o Grande, foi chamado de ‘rei construtor’, devido às extensas e monumentais obras que deixou. Seu nome também é um dos raros mencionados na Bíblia. Acredita-se popularmente que esse faraó tenha empregado um número formidável de escravos em suas obras, mas também há, como no caso das grandes pirâmides, registros detalhados de gastos enormes nas obras. Não seria estranho pensar no pagamento de salários a centenas de milhares de trabalhadores.

O descrédito quanto a Ramsés II está justamente no fato de que o nome desse faraó consta de registros muito anteriores ao Êxodo:

José instalou seu pai e seus irmãos e deu-lhes propriedade na melhor parte das terras do Egito, na região de Ramsés, conforme a ordem do faraó. (Gênesis 47.11)

A história também distancia Ramsés II do Êxodo. Esse faraó estabeleceu um domínio pacífico (bem ao estilo egípcio) sobre toda Canaã, de onde empreendeu muitas campanhas contra o império Hitita, ao norte. Durante o tempo em que ele viveu, os Hapiru estavam sob o comando de Josué e Caleb (herdeiro da tribo de Judá), iniciando o período dos Juízes, em que o governo era fragmentado. Além disso, o relato bíblico atesta que os Hapiru estavam desorganizados e freqüentemente caíam sob nações mais poderosas:

Então os israelitas fizeram o que o Senhor reprova e prestaram culto aos baalins. Abandonaram o Senhor, o Deus dos seus antepassados, que os havia tirado do Egito, e seguiram e adoraram vários deuses dos povos ao seu redor, provocando a ira do Senhor. Abandonaram o Senhor e prestaram culto a Baal e aos postes sagrados. A ira do Senhor se acendeu contra Israel, e ele os entregou nas mãos de invasores que os saquearam. Ele os entregou aos inimigos ao seu redor, aos quais já não conseguiam resistir. Sempre que os israelitas saíam para a batalha, a mão do Senhor era contra eles para derrotá-los, conforme lhes havia advertido e jurado. Grande angústia os dominava. (Juízes 2.11-15)

Atualmente, e divergindo bastante do cinema, as evidências mais fortes são a favor de Tutmés II (pai) como o ‘faraó da opressão’. A história desse faraó deixa bastante a se pensar. Tutmés II teve duas esposas. A mais velha, também sua meia-irmã, chamava-se Hatshepsut. Talvez você já tenha ouvido esse nome, pois ela foi conhecida pelos arqueólogos, durante muitos anos, como a ‘rainha maldita’, com seu nome e figuras toscamente arrancados e apagados de todos os locais. Ela governou o Egito como faraó quando Tutmés II morreu, e não foi a primeira nem a última mulher a assumir o trono mais poderoso da Antigüidade. A outra esposa (quase 30 anos mais nova) de Tutmés chamava-se Iset. Dela nasceu Tutmés III, que declarou Hatshepsut maldita e tentou apagá-la da história. Muito pouco sobrou que pudesse falar sobre essa rainha.

Hatshepsut teve apenas uma filha, Neferure, coisa incomum para as rainhas, destinadas a produzir o sucessor do trono. Acredita-se que Hatshepsut, filha única de Tutmés I, possa ser a princesa que aos 15 anos adotou e nomeou Moisés (possivelmente uma conexão com a família real Tutmosis). As raras figuras que sobraram da rainha mostram-na segurando um garoto, sobre o qual não sobraram registros. Nesse caso, Moisés e o jovem Tutmés III teriam dividido a posição mais alta no Egito, com Moisés sendo, pela lei egípcia, o sucessor do trono. Esqueça a imagem dos dois príncipes disputando corrida em bigas puxadas por cavalos: Moisés era mais de 30 anos mais velho do que Tutmés III. Deve-se dizer que ele também era um sucessor profundamente odiado pelas famílias nobres, dados os anos que passaram sob governo estrangeiro. Quando Moisés mata um egípcio, alia-se aos Hapiru e desafia o faraó coroado Tutmés III, lidera os escravos em uma fuga cinematográfica e termina por destruir todo seu poderoso exército, conquistador de 17 nações, ele e a rainha sua mãe tornaram-se tão odiados no Egito quanto seria possível. Dignos de serem apagados, o que representava, para os Egípcios, privar alguém da vida após a morte.

Tutmés III tinha apenas 10 anos quando seu pai morreu (1495 a.C.). Apesar do misterioso filho de Hatshepsut ter seus 40 anos, não há registros de que tenha reivindicado o trono. Talvez tivesse se afastado do Egito, para a terra de Midiã. Ao invés disso, a própria rainha tomou a coroa e governou por 21 anos. Somente após sua morte foi que Tutmés III assumiu o trono, governando o Egito por quase 40 anos. Nos 18 anos após sua coroação, ele fez bom uso do poderoso exército que o pai havia reunido, conquistando todas as terras ao redor do Egito e tornando-se um dos faraós mais poderosos da história. Poderíamos compará-lo aos romanos Herodes o Grande, conquistador do Oriente Médio, ou Hadriano, conquistador da Bretanha. Apenas no seu reinado houve registro de uso de trabalho escravo no Egito. Mas então algo aconteceu por volta de 1446 a.C.

[O Faraó] Levou todos os carros de guerra do Egito, inclusive seiscentos dos melhores desses carros, cada um com um oficial no seu comando. (Êxodo 14.7)

Moisés estendeu a mão sobre o mar, e ao raiar do dia o mar voltou ao seu lugar. Quando os egípcios estavam fugindo, foram de encontro às águas, e o Senhor os lançou ao mar. As águas voltaram e encobriram os seus carros de guerra e os seus cavaleiros, todo o exército do faraó que havia perseguido os israelitas mar adentro. Ninguém sobreviveu. (Êxodo 14.27-28)

Tutmés III viveu ainda 15 anos, mas surpreendentemente não houve campanhas militares após 1446 a.C. Quando coroado, o novo rei não tinha desavenças com Hatshepsut… Mas 20 anos depois, 3 anos após a 1446 a.C., Tutmés III amaldiçoou a rainha precedente e seu filho a ponto de privá-los da vida pós-morte. Tratava-se de infligir as leis egípcias e fazer o que seria mais horrendo em sua cultura. O motivo foi tão grave que ele teria amaldiçoado Tutmés II também, não fosse seu pai.

Seu herdeiro, Amenemhat, morreu quando criança (talvez na 10ª praga). O segundo filho, que tomou o trono, Amenhotep II, foi um dos faraós mais militarmente fracos da história egípcia. O fabuloso exército de Tutmés II e Tutmés III havia simplesmente desaparecido, talvez sob 1400 metros de água, no Estreito de Tiran.

Mesmo enfraquecido, Amenhotep II liderou algumas campanhas militares… todas com o objetivo de capturar escravos entre o Egito e Canaã. Sua estela (uma espécie de lápide contando os feitos do rei) em Memphis descreve detalhadamente:

"Sua majestade trouxe 127 príncipes Retenu, 179 irmãos dos príncipes, 3600 Hapiru de de Kadesh Barnea, 15200 Shasu, 36300 Kharu, 15070 Nagasuitas, 30652 membros de suas famílias. Total: 89600 pessoas, 60 carruagens de prata e ouro, 1032 carruagens de madeira, 13500 armas de guerra.

Afinal, centenas de milhares de trabalhadores haviam se esvaído. Curiosamente, Kadesh Barnea era o nome dado pelos Egípcios ao Sinai. “Então vocês ficaram em Cades, onde permaneceram muito tempo.” (Deuteronômio 1.46). Faz pensar nos grupos que se recusavam a seguir Moisés.

Em 1406 a.C., exatamente 40 anos depois, o faraó Akhenaton convertia-se ao monoteísmo, possivelmente influenciado pelos fatos de que tinha notícias além de Cades. Abaixo estão fragmentos de uma carta recebida de Abdu-Heba, um de seus governadores:

"Os Hapiru estão agora capturando as fortalezas do Faraó. Nem um único governador permanece entre eles, meu senhor: todos estão perdidos. Zimrida de Laquis foi morto. Que o rei envie ajuda. Se não houver reforços este ano, todos os países do meu senhor, o rei, serão exterminados. ... A terra do rei está perdida para os Hapiru. E agora, de fato, uma cidade do território de Jerusalém, Bet-Ninib, foi capturada. ... Depois de tomar a cidade de Rubuda, eles agora estão tentando tomar Jerusalém ... Gezer, Ashkelon, e Laquis deram petróleo, alimentos e suprimentos para os Hapiru. ... Labaya e a terra de Siquém deram tudo aos Hapiru. O que eu fiz contra o meu senhor, o rei, que tu amas o Hapiru e odeias os governadores? ... Os Hapiru têm desperdiçado todo o território do rei.

Quando o Senhor, o seu Deus, os fizer entrar na terra, para a qual vocês estão indo para dela tomar posse, Ele expulsará de diante de vocês muitas nações: os hititas, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus. São sete nações maiores e mais fortes do que vocês. (Deuteronômio 7.1)

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DEIXADOS PARA TRÁS EM ROLOS DE PAPIROS

Joseph (patriarch) - wikipedia
Steve Rudd, The Date of the Exodus: 1446 BC, www.bible.ca.

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