O Brasil é um país religiosamente plural, com crenças se encontrando de uma forma única. Lá pelo séc. 16, os portugueses e espanhóis aportaram aqui trazendo o Catolicismo, que pouco a pouco foi se miscigenando à fé de muitas nações indígenas do litoral. Talvez a herança mais visível desse contato sejam as benzedeiras ou rezadeiras, que ainda são vistas nas áreas menos urbanas do país. Desde muito, um comércio bem brasileiro que até sempre produziu ganhos, especialmente nas classes mais pobres da sociedade, foi a produção de bolsas, patuás, etc com uma mistura de óstias, ervas conhecidas dos índígenas e magias africanas. No começo do séc. 17, começaram a chegar negros escravisados, aportando principalmente na Bahia, que trouxeram consigo a fé de diversas nações Yourubá: Guiné, Angola, Costa da Mina e Benin. Com o deslocamento da família real para o Brasil em 1808, o Rio de Janeiro passa a ser o principal porto de escravos. Aqui, numa situação em que essas pessoas foram forçadas a viver juntas, suas crenças se misturaram como não ocorreria na África. Cerca de 3,5 milhões de africanos foram trazidos para cá. Com o fim do tráfico negreiro em 1856, os africanos não chegavam mais e começou a se estabelecer o conceito de Crioulo, ou simplesmente negro brasileiro. Dessa forma, surgiram divindades com vários nomes (assim como Deus, no Antigo Testamento) e estórias que se sobrepõem parcialmente (como as de Jesus, no Novo Testamento). Algumas, até assumiram um caráter Cristão. Esse texto pretende traçar algumas semelhanças e diferenças entre Oxalá, que também é chamado Osalá, Orisalá ou Obatalá (para facilitar, será aqui nomeado apenas Oxalá) e Jesus (também Jeshua, Issa, etc).
O personagem africano possui diversos nomes (parecidos) justamente por integrar os panteões de várias nações da cultura Yorubá, na costa atlântica da África aio redor da foz do rio Níger (formado pela reunião dos rios Obá e Osum), onde hoje estão Benin, Nigéria e Camarões. Embora a cultura Yorubá se expanda por uma grande região na bacia do rio Níger, muito dela tem como centro o encontro do rio, da mata, do mar e os ventos do oceano. Sua cidade sagrada, Ile-Ifé, existe até hoje e tem como simbologia ser o ponto onde as divindades desceram ao plano material e iniciaram a criação do mundo. Existem numerosas versões orais de estórias sobre essas divindades, que só mais recentemente foram colocadas em forma escrita. Apenas aqui no Brasil os diversos Oxalás foram apresentados um ao outro. Por ser uma divindade de grande importância dentro dos Candomblés e na Umbanda, Oxalá ainda foi sincretizado com Jesus, a ponto de ser comum vermos imagens de Jesus nos terreiros, próximo a Exú, Iemanjá, etc. Da mesma forma, não é raro encontrar oferendas para Oxalá depositadas sob imagens de Jesus ou crucifixos em lugares públicos.
Dentro do Cristianismo, Jesus faz parte da Trindade, ou seja, Ele é uma manifestação de Deus. Temos assim o Pai (Javé, Jeová, YHWH, etc), o Filho (Jesus, Sua manifestação em forma humana, unindo Deus aos homens) e o Espírito Santo (Sua manifestação como poder ou inspiração dada às pessoas). O Antigo Testamento nos conta sobre os profetas seguindo instruções do Pai, o Novo Testamento apresenta Jesus como o Filho e o Espírito Santo é prometido às igrejas que Paulo fundou no séc. 1. O Candomblé, por outro lado, não coloca Oxalá como parte do criador Olorum / Olodumaré. Ele é o primeiro orixá, deus menor responsável por criar o mundo material, ou os homens - dependendo da origem da estória. Por algum motivo, depois de fazer nossa espécie, Oxalá passou a habitar entre nós, como velho e depois como jovem. Como nas tramas Gregas, não há uma distinção clara entre as narrativas terrenas e mítico-espirituais.
O sincretismo nunca é sem razão. Tanto Jesus como Oxalá possuem um lado divino e um lado terreno. No lado divino, Jesus declara (apenas no evangelho de João) que já existia antes de Abraão (João 8.58) e alguns religiosos mais extrapolantes vêem a figura do Anjo do Senhor que aparece no Antigo Testamento como uma representação de Jesus (todavia, devemos concordar, com uma personalidade bem distinta). Os Evangelhos contam 4 estórias parecidas sobre a vida terrena de Jesus. Depois de crucificado e enterrado, Jesus então volta a aparecer, anunciando que estaria sempre com seus discípulos e lhes daria poderes especiais para falarem sobre o Reino de Deus. Oxalá não passa por esse ciclo de encarnação, vida, morte e renascimento. Nas diversas narrativas, não necessariamente costuradas entre si, ele aparece hora convivendo entre os orixás num mundo espiritual, do qual levou uma corrente para descer dos céus e um saco ou concha cheia de areia para fazer o mundo seco de entre as águas; ora Ele aparece como um rei velho e se apoiando num cajado (porém forte o suficiente para carregar sacos de mercadorias), ora aparece como um guerreiro impetuoso fazendo exigências de espada na mão. Assim como Deus Pai trocava de nome nas estórias do Antigo Testamento, Oxalá também troca de nome entre as diversas estórias e reinos por onde anda.
Na cosmogonia Yorubá (em sua forma reunida, aqui no Brasil), Oxalá tem sua própria Trindade, sendo um jovem rei guerreiro (Oxaguiã), Oxalá (ele mesmo, adulto, sem idade definida) e Oxalufã (um rei idoso experiente e esforçado), todos usando roupas brancas, uma de suas marcas. Existem estórias associadas com cada uma dessas formas, como Oxalá deixando de homenagear Exú (que controla a fronteira dos mundos espiritual e material) por orgulho, se embebedando de vinho de palmeira (chama-se Toddy, acredite) numa festa celestial ou tentado por Exú, que lhe provocou muita sede, se envolvendo numa disputa com sua irmã mais nova Oduduwa (a quem foi dado criar o mundo e governar a Terra, noutras versões sendo um homem, inclusive o primeiro rei de Ilê-Ifé*), com quem se casou, em outras estórias, sendo dessa união pai de outros orixás, como Iemanjá (deusa do mar, identificada às vezes como grande mãe ou uma sereia, às vezes esposa de Oxalá). Sobre Oxalufã, diz-se que reinava em Ifon, desafiou o adivinho sagrado e viajou para Oyó visitar seu filho Xangô (deus da justiça, identificando como um senhor da guerra), que reinava lá. No caminho, Exú lhe pediu ajuda e o deixou sujo de sal, dendê e carvão (as preciosidades comerciais de Yorubá) sendo depois injustamente preso como um ladrão de cavalos. Oxaguiã, sua forma mais jovem, diz-se que era rei de Ejibó, partia para as batalhas levando inhame, sua única comida, e sempre retornava exigindo uma fortaleza maior. Ele seria um co-responsável, junto com Ogum (deus ferreiro, como Vulcano), pela invenção das ferramentas agrícolas.
Jesus viveu no começo do séc. 1 d.C., as narrativas sobre Ele foram assimiladas pelo Império Romano por volta do séc. 4 d.C. e difundidas na cultura Européia sob domínio Romano. Ele conta com muitas estórias orais, que foram reunidas por Mateus e Lucas no final do séc. 1 e montadas sobre a narrativa de Marcos. Sem falar na narrativa de João (séc. 2), de pouca semelhança com as outras, que é possivelmente uma coleção de estórias Samaritanas (e Samaria era um lugar por onde Jesus passava). Essas narrativas trazem um nascimento milagroso na cidade real de Belém (Judéia), sendo sua família de Nazaré (Galiléia), além de uma viagem dos pais ao Egito (potência econômica e militar da época), um aconselhamento dos anciãos no Templo (local sagrado) por Jesus criança, a vida posta em pássaros de barro (Evangelho da Infância de Cristo Segundo Tomé), até andar sobre as águas do lago da Galiléia, multiplicar pães, peixes, produzir pesca, ressuscitar várias pessoas e narrativas diversas de Sua ressurreição. Já as narrativas sobre Oxalá têm origem no séc. 7 d.C., quando a islamização do norte da África impôs uma barreira cultural com a Europa. Essas narrativas colocaram antigos reis como deuses criadores, permaneceram em forma oral e diversas até o séc. 17 e depois foram expatriadas para a costa atlântica da América Latina com o tráfico negreiro e a destruição dos impérios africanos pela investida colonialista dos Europeus. Elas contam como Oxalá desceu à Terra, criou os homens do barro, casou-se com Iemanjá e acabou por pedir ao Pai que lhe fossem dados poderes como aos outros orixás, como ficou aprisionado na cidade de Xangô, como tornou-se rei e desprezou seu amigo, como nasceu sem cabeça e depois conseguiu uma, feita de duas metades, uma quente e outra fria, como refez o órgão sexual do irmão com inhame, como criou a morte para que os homens não se achassem grandiosos demais.
Como Oxalá, Jesus era uma divindade andando por um mundo bastante humano, onde seus sofrimentos foram registrados como ensinamentos. Mas, talvez não seja necessário dizer, Oxalá andava por terras Yorubá na costa ocidental da África (temos inclusive os nomes de cidades) e Jesus por terras da Galiléia, Samaria e Judéia (também temos os nomes de cidades). Fora do contexto celestial, Oxalá vivia a criação de ferramentas agrícolas, o cultivo de inhame para subsistência dos pobres e o comércio de produtos com o norte da África, os conflitos de classe social e as disputas entre cidades-fortalezas. Jesus vivia a demonização dos porcos, os conflitos de classe entre seu povo e com os dominadores Romanos, clamando para Si mesmo uma liderança religiosa que era monopolizada pelos Fariseus. Numa condição sanitária melhor do que os antigos Hebreus, Paulo dizia que nenhuma comida era proibida aos filhos de Deus. Se Jesus era um andarilho pobre que apelava ao Pai por ajuda, se Ele manifestava entre as pessoas o poder divino para ser seguido, Oxalá era rei, não usava de poderes, andava e interagia com outros orixás que por ali também reinavam.
Não podemos separar precisamente o Jesus homem terreno das mitologias construídas ao redor de sua imagem divina. Paulo, primeiro a escrever sobre Jesus por volta de 50 d.C., transparecia saber pouco sobre a vida de seu inspirador: coisas como falar a Deus como a um pai, pagar dívidas, praticar amor ao próximo, não ter restrições ritualísticas de alimentos e esperar por um julgamento celestial no final dos tempos. Para Paulo, Jesus era mais celestial que humano. Marcos, que teve contato com o grupo de Pedro, trouxe uma narrativa curta sobre os poucos anos em que Jesus pregou pela Galiléia, realizando exorcismos, curas, multiplicando alimentos, ressuscitando mortos, mas também comendo, participando de festas, se incomodando com as multidões, ensinando, chorando a morte de um amigo, desafiando os religiosos, sendo preso, apanhando e sendo executado. Oxalá também tem esse viés de homem-deus misturados. Ele fala diretamente com Olorum, cria os homens (do barro), disputa pelo governo da Terra e tem a paternidade de outros deuses, mas também é rei de diferentes cidades-fortaleza, fica bêbado, dorme, carrega sacos, suja suas roupas, é aprisionado, gosta de inhame.
A adoração a Jesus tem por fim imitar comportamentos Dele enquanto humano, mas referenciando sua identidade divina; também a adoração a Oxalá ressalta características suas enquanto pessoa (guerreiro ou idoso sábio, mais na África do que no Brasil, e mesmo assim pouco significativa comparado à figura divina), mas há também (e principalmente) a referência a Ele enquanto divino criador dos homens. Nesse sentido, Jesus é referenciado como símbolo de união a Deus (Paulo ressalta muito esse aspecto), sabedoria (sobretudo em Lucas e Mateus), promessa de um futuro bom (Evangélicos), humildade (Franciscanos), aceitação do martírio (entendido frequentemente como paz), aliança aos pobres (Teologia da Libertação), verdade (Islã), etc. Oxalá, por outro lado, é associado à fé, à criação do Céu, ao ar, silêncio, paz e nascimento. As imagens de um e outro talvez se confundam: Oxalá é representado pela cor branca (sinal de pureza), que aprece em suas oferendas: carne branca, canjica branca cozida sem sal, acaçá (massa de milho branco cozida), rosas brancas, vinho branco e caramujos. Jesus também, embora muitas vezes pintado com o manto vermelho que Lhe vestiram no julgamento Romano (por Pôncio Pilatos e depois Herodes Agripa), tem indicação de ter usado roupas camponesas, uma túnica de duas peças até os joelhos, de lá branca ou clara, e sandalhas de couro. Dentro do Cristianismo, o Catolicismo faz oferendas com velas (brancas), o que é também um padrão do culto a Oxalá. Uma imagem de Jesus com vestes brancas sem dúvida lembraria Oxalá, para um fiel do Candomblé ou Umbanda.
O sincretismo é inevitável quando nos distanciamos das narrativas “originais” e passamos a ver a divindade como um símbolo de algo. Heródoto (485 a.C. - 425 a.C.) contava sobre a identificação entre deuses egípcios e gregos, notando que a última presença de um deus entre os homens era extremamente antiga. Tanto no caso de Jesus como Oxalá, aparentemente essa identificação já ocorria talvez menos de 1 século após suas andanças pela Terra. Ambos acabaram sendo associados com pombos brancos, fé, vida e paz. Mesmo assim, são personagens bastante distintos em seus ensinamentos ou personalidades, além de habitarem épocas e locais muito diferentes. Como divindades, talvez sejam distintos também quanto ao que esperam dos homens (Jesus deixou dois mandamentos apenas; Oxalá deixou apenas tabus quanto a alimentos e cores de roupa). Seus arquétipos - ou seja, as características que permitem serem imitados - são mais complexos do que simples conceitos de bem e mal (por exemplo, Jesus gostava de disputar jogos verbais com os religiosos e Oxalá teve problemas mentais**). Isso sempre abrirá margem para que os fiéis, ainda que um pouco e fazendo oferendas distintas, segundo cada sistema religioso, possam se parecer com seus modelos. Ou ambos.
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* Em Ilê-Ifé, a cidade sagrada, Orisá significa "aquele que fala" e também "espírito". Todos os governantes de Ilê-Ifé são chamados Orisá e considerados descendentes diretos de Oduduwa, a divindade que formou a Terra a partir das águas. Em 2015 assumiu o trono Adeyeye Enitan Ogunwusi Ojaja II, 401º Ooni ou Orisá. Se seguirmos a lógica de Heródoto, com 30 anos por geração, 401 x 30 = 1230 anos, indicando a fundação da cidade pouco antes de 800 d.C., no séc. 8, época da transformação de Baghdad em capital do maior califado da época.
** Numa das estórias sobre Oxalá, Ele se casa com Iemanjá e a põe para fazer todos os serviços domésticos. Iemanjá então se revoltou e falou tanto que enlouqueceu Oxalá. Arrependida, ela tratou dele e, em retribuição, Ele pediu a Olorum que concedesse a ela cuidar das cabeças de todos os homens. Noutra estória, Oxaguiã (o jovem Oxalá) nasce sem cabeça e o deus Ori lhe faz uma cabeça com inhame, que era muito quente e dava dores terríveis. Depois, Ele encontrou Icu, a morte, que lhe fez uma cabeça fria, mas com a qual sentia-se perseguido de temores. Ogum, com sua espada, ajuda o jovem juntando metade de cada cabeça, o que produziu paz em Oxaguiã.
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CASALI, Rodrigo. Guias e Orixás: narrativas de expressões orais sobre os candomblés do MS. 2016. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
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KAITEL, Alexandre; SILVEIRA, Luiz Henrique Lemos. Uma Reflexão mítica-arquetípica-religiosa da experiência dicotômica entre Cristo/Demônio e Oxalá/Exu. Religare, v. 17, n. 2, 2020.
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PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. Companhia das Letras, 2020.
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