quinta-feira, 15 de março de 2018

Abraão em questão

Ilustração de um manuscrito do Irã, datado do séc. 15. Da esquerda para a direita, o anjo Gabriel, um bode, Ismael e Abraão. As chamas normalmente são usadas para identificar mensageiros de Deus.
Uma prévia desse texto pode ser lida em Jesus no Islã

No ano de 610 d.C., Maomé começa a receber as revelações que dariam origem ao Quran (Alcorão) e aos Hadith (testemunhos do profeta e seus contemporâneos). Ao longo de poucos anos, essas revelações formariam o Islã como sistema religioso e com Maomé como líder político. O Islã nasceu no início da Idade Média do Ocidente, período que vai desde a fragmentação de Roma Ocidental em 480 d.C. até a tomada de Bizâncio pelos turcos em 1492 d.C.. Desde cedo, afirmou parentesco com o Cristianismo e com o Judaísmo, como se houvesse uma sucessão de profetas desde Abraão (aprox. 2000 a.C.) até Malaquias (aprox. 400 a.C.), com Jesus (aprox. 30 d.C.) e depois saltando até Maomé, o derradeiro profeta e portador da mensagem completa de Deus.

O Alcorão não nem a “formalidade” de referências passíveis de data como a Torá judaica. Por isso, mesmo batalhas críticas na implantação da nova doutrina, como Badr (624 d.C.) e a Batalha das Trincheiras (627 d.C.) são dificilmente datadas pelo livro. Ainda, em sua fase inicial, o Islã tentou apagar todos os traços da história pagã em Meca¹ e Medina², suas cidades sagradas, de forma que é difícil traçar mesmo a genealogia dos líderes árabes antes de Maomé. Apesar disso, o Alcorão apresenta Jesus como um profeta e fala dos Israelitas como seus antecessores. O Alcorão também cita vários personagens do Velho Testamento, mas raramente esclarece sua história, como se a Torá judaica e a vida de Jesus fossem de conhecimento geral nos tempos em que foi escrito.

DESCENDENTES

Esse texto é justamente sobre o parentesco do Islã (pensado como religião e cultura) com o Judaísmo e o Cristianismo. Segundo o Alcorão, o parentesco se dá diretamente através da descendência de Ismael, primogênito de Abraão. Na tradição islâmica, Ismael é requerido por Deus como sacrifício (mas o Alcorão não é taxativo quanto a isso), depois ele e Abraão constroem a Ka’aba como santuário ou casa de Deus, num lugar chamado Makka, no oásis de Yathrib. Dentro do cubo de pedra coberto com pano preto ficavam uma pedra negra que seria o altar de Abraão (ela foi destruída ao longo da história), e também um fragmento de rocha onde teria ficado marcada sua pegada. Eis o ponto onde a descendência do Judaísmo se quebra: segundo a Torá (ou Velho Testamento), o filho de Abraão requisitado em sacrifício foi Isaac.

E quando chegou à adolescência, seu pai lhe disse: Ó filho meu, sonhei que te oferecia em sacrifício. Que opinas? Respondeu-lhe: Ó meu pai, faze o que te foi ordenado! Encontrar-me-ás, se Deus quiser, entre os perseverantes! (Sura 37.102)

A versão bíblica é diferente da versão islâmica, mas devemos ter o cuidado de lembrar que todo o Gênesis bíblico também foi “montado” durante o reinado de Josias (649-609 a.C.), a partir dos escritos esquecidos do Templo (ver História do nome de Deus). Pela versão da Torá, o primeiro filho de Abraão nasce de Hagar, a egípcia, serva de Sarai. Ismael, o “jumento selvagem”(expressão que o livro de Jó também usa para significar um viajante, peregrino) e Hagar terminam acolhidos pelo Senhor após deixarem Abrão. Ismael torna-se flecheiro e toma uma esposa egípcia, tornando-se pai de príncipes e fixando suas terras entre Havilá e Sur, ou seja, entre o norte da Arábia e o deserto do Sinai (Gênesis 25.17-18, Onde foi parar o paraíso). A ligação com o Egito faz sentido, mas isso coloca Ismael bem no norte da Arábia, a uns 1000 Km de Meca. Qual tradição está certa?

Supostamente a correta é judaica, pois é mais antiga. Mesmo entre os estudiosos árabes dos 1os séculos após a implantação do Islã, havia controvérsias sobre os papéis de Isaac e Ismael. Com o passar dos anos, entretanto, o nome de Ismael foi fixado pela tradição. Essa descendência de Ismael merece ser vista com mais cuidado.

HISTÓRIA ANTIGA

O Islã iniciou pela aliança de Maomé com diversas tribos árabes e judaicas na região de Hijaz (Al-Ḥijāz), onde ficam Meca e Medina. Segundo os escritos judeus, Ismael se fixou no deserto de Parã, junto a um poço de água (Gênesis 21.19-21). Os islâmicos associam esse poço com a fonte ZamZam em Bakka, a região sagrada de Meca, onde está a Ka’aba. Ali existe um deserto chamado Parã, assim como ao sul de Israel, junto ao deserto de Sur. Não é improvável que a semelhança de nomes seja proposital ou associada ao estabelecimento de uma comunidade judaica antiga na região. E então temos um parentesco entre Islâmicos e Israelitas, como é dito no Alcorão! Por sinal, a região de Bakka era conhecida das caravanas que iam até Jerusalém mesmo em tempos longínquos como os de Salomão (1000-950 a.C.).

Como são felizes os que em ti encontram sua força, e os que são peregrinos de coração! Ao passarem pelo vale de Baca, fazem dele um lugar de fontes; as chuvas de outono também o enchem de cisternas. (Salmos 84.5-6)

Um exame das citações no livro sagrado do Islã também pode fornecer alguns indícios. Há vários personagens em comum com a Torá, alguns com uma história e feitos associados (semelhantes ou diferentes da Torá), outros com apenas a citação de um nome. Restringiremos nossa abordagem aos profetas, pois eles deixaram, ao menos na Torá, mensagens longas o suficiente para que fossem transmitidas como livros em separado e não apenas dentro de um grande volume, mais fácil de se perder. A figura em anexo dá uma cronologia desses profetas judeus.


Clique na figura para ampliar ela. Na linha de cima, está a cronologia dos profetas segundo aparecem no Alcorão. Os nomes em branco são profetas com apenas a citação de um nome. Os coloridos são possuidores de uma estória, mesmo que ela seja diferente da Torá. Na linha de baixo, está a cronologia dos profetas, segundo a Torá. As cores apenas dão uma idéia de quantos profetas escreveram num mesmo espaço de tempo. Como referência de acontecimentos históricos, temos o Êxodo em aprox. 1400 a.C., a invasão do Reino do norte pala Assíria em 740 a.C., a invasão de Judá pelos Caldeus em 600 a.C., outra invasão de Judá em 300 a.C., por Alexandre (o Grande) e o nascimento de Jesus no ano 1 d.C.

Pela cronologia Islâmica, temos o aparecimento de vários profetas com uma estória associada a eles, no Alcorão, até Jonas, por volta de 820 a.C. Depois, chama a atenção que mesmo profetas muito influentes como Isaías (750 a.C. e Jesus cita ele) não são mais citados no Alcorão. E chama mais a atenção ainda o fato de que a pregação de Isaías a respeito do monoteísmo se emparelha muito com a do Alcorão.

A data de Isaías é importante porque, em 740 a.C., os exércitos de Tiglath Pileser da Assíria chegaram até Canaã e começaram a incorporar as terras de Israel (Reino do norte) às colônias assírias. O processo não terminaria até que quase toda a população - incluindo a capital Samaria - fosse deportada para as terras agrícolas subordinadas a Nínive.

Jerusalém também foi atacada, mas resistiu devido ao favor divino (1ª Crônicas 5.262ª Reis 15O orgulho separa e Deus une novamenteApócrifos II - notas de rodapé). Como resultado da invasão do Reino do norte, 10 das 12 tribos/clãs dos judeus foram deportadas. Mais tarde, muitos judeus regressaram a Israel, clamando uma descendência desses clãs: há grupos judeus até mesmo na Índia que se dizem (e talvez com verdade) descendentes dos que foram levados para longe.

A metodologia Assíria era bastante simples e eficaz: retirar os povos conquistados de suas terras e os assentar em províncias agrícolas distantes, para que os laços culturais e com a terra não os inspirassem a revoltas. No Reino do norte também foram assentados habitantes de outras terras, o que levou os judeus (do Reino do sul) a desqualificar os Samaritanos como descendentes de Abraão.

É possível que alguns judeus tenham sido deslocados nessa época ao longo da costa leste do Mar Vermelho, chegando até a região montanhosa de Hijaz (onde estão Meca e Medina) e até bem ao sul, na costa do Iêmen. Isso explicaria porque os escritos judeus após 750 a.C. não eram conhecidos. Mas essa história, ainda que difícil de provar, não termina aí.

HISTÓRIA MENOS ANTIGA

No século 1, antes da destruição de Jerusalém pelos romanos (70 d.C.), tanto judeus como Cristãos eram vistos como “massa útil ao Império”, porque havia judeus em altos postos administrativos. O Império crescia e as rotas das caravanas de incenso, especiarias e seda eram muito valiosas. Essas rotas passavam ora pela planície dos rios Tigre e Eufrates (onde ficava Babilônia e depois o Império Persa), ora pelo Iêmen, contornando o deserto da Arábia até Hijaz e depois para o norte até a Síria.

Era preciso proteger os produtos das caravanas. Muitas colônias judaicas foram estabelecidas nesses pontos de comércio, longe do controle rígido de Roma. Logo depois da destruição de Jerusalém, diversas dessas colônias abraçaram o Cristianismo como oposição a Roma.

A Arábia dos séculos 1 e 2 era um conglomerado de tribos árabes longe do poderio Persa, cultuando deuses tribais ou mais poderosos como Hubal, judeus distantes de Israel e Cristãos convertidos ou fugidos das terras próximas a Roma. Por isso, os clãs de Hijaz foram formados de uma forma curiosa: associando as tradições árabes, uma tradição judaica muito antiga (anterior a 750 a.C.) e um Cristianismo emergente.

Durante a Idade Média, antes que o Islã se estabelecesse, a direção religiosa dos árabes mudou radicalmente. O maior poder dentre os árabes era então o império Himyar, que abrigou muitos judeus e controlou o Iêmen e a costa do Mar Vermelho nos sécs. 2 a.C. até 6 d.C. Himyar se converteu oficialmente ao Judaísmo em 380 d.C., como proteção contra os Persas, Bizantinos e Axumitas. Por volta de 520 d.C., o último rei Himyar - Yusuf As'ar Yath'ar - foi derrotado por Axum (reino Cristão da Etiópia que se expandiu até o sul da Arábia entre os sécs. 1 e 10 d.C.) e seu reino tornado uma colônia Cristã (ver O Cristianismo negro - parte I). 

Em ouras palavras, a ligação do Islã com o Judaísmo e o Cristianismo é mais fragmentada do que simplesmente uma descendência de Ismael. Mas a ligação com o Cristianismo também merece alguma atenção.

CRISTIANISMO MARGINAL

Para começar, o Alcorão inclui de forma muito pobre o conteúdo dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas, que apresentam uma cronologia da vida de Jesus). Há uma preocupação “judaica” com as genealogias, como no livro de Mateus, e nada dos escritos de João (apóstolo) ou Paulo, este último amplamente divulgado no norte do Mediterrâneo e na Grécia.

Ora, João era um judeu e Paulo, um romano que não se aventurou na Arábia. Outro romano, Lucas fez o trabalho de um historiador e reuniu/colou as narrativas sobre Jesus que encontrou ao longo de suas viagens com Paulo. Ele apresenta um material que não há nos outros Evangelhos, como o nascimento de João Batista e sua ancestralidade. O texto de Lucas 1.5-20 é bem parecido com o do Alcorão:

37. O Senhor a aceitou [Maria] benevolentemente e a educou esmeradamente, confiando-a a Zacarias. Cada vem que Zacarias a visitava, no oratório, encontrava-a provida de alimentos, e lhe perguntava: 'Ó Maria, de onde te vem isso?' Ela respondia: ‘De Deus!, porque Deus agracia imensuravelmente quem Lhe apraz’. 38. Então, Zacarias rogou ao seu Senhor, dizendo: 'Ó Senhor meu, concede-me uma ditosa descendência, porque és Exorável, por excelência'. 39. Os anjos o chamaram, enquanto rezava no oratório, dizendo-lhe: ‘Deus te anuncia o nascimento de João, que corroborará o Verbo de Deus, será nobre, casto e um dos profetas virtuosos’. 40. Disse: ‘Ó Senhor meu, como poderei ter um filho, se a velhice me alcançou e a minha mulher é estéril?’ Disse-lhe (o anjo): ‘Assim será. Deus faz o que Lhe apraz’. 41. Disse: ‘Ó Senhor meu, dá-me um sinal’. Asseverou-lhe (o anjo): ‘Teu sinal consistirá em que não fales com ninguém durante três dias, a não ser por sinais. Recorda-te muito do teu Senhor e glorifica-O à noite e durante as horas da manhã’. (Sura 3.37-41)

Além disso, o Alcorão também traz algo do Evangelho da Infância segundo Tomé³, um texto apócrifo. A chegada desse texto Sírio na Arábia revela que a tradição Cristã oral seguiu pela costa do Mar Vermelho. Parece notável que o Cristianismo tenha se espalhado sem sequer um texto Sinótico que o embasasse, mas tal flexibilidade parece ter permitido que um Pseudo-cristianismo fosse bem assimilado por grupos judeus e árabes.

Evangelho da Infância segundo Tomé, cap. 2
Esse Menino Jesus, que na época tinha cinco anos, encontrava-se um dia brincando no leito de um riacho, depois de haver chovido. Represando a correnteza em pequenas poças, tornava-as instantaneamente cristalinas, dominando-as somente com sua a palavra. Fez depois uma massa mole com barro e com ela formou uma dúzia de passarinhos. Era um Sabbath e havia outros meninos brincando com ele. Um certo homem judeu, vendo o que Jesus acabara de fazer num dia de festa, foi correndo até seu pai, José, e contou-lhe tudo: ‘Olha, teu filho está no riacho e juntando um pouco de barro fez uma dúzia de passarinhos, profanando com isso o dia do Sabbath’. José foi ter ao local e, ao vê-lo, ralhou com ele dizendo: ‘Por que fazes no Sabbath o que não é permitido?’ Jesus, batendo palmas, dirigiu-se às figurinhas, ordenando lhes: ‘Voai!’ Os passarinhos foram todos embora, gorjeando. Os judeus, ao verem isso, encheram-se de admiração e foram contar aos seus superiores o que haviam visto Jesus fazer.

48. Ele [Jesus] lhe ensinará o Livro, a sabedoria, a Torá e o Evangelho. 49. E ele será um Mensageiro para os israelitas, (e lhes dirá): Apresento-vos um sinal de vosso Senhor: plasmarei de barro a figura de um pássaro, à qual darei vida, e a figura será um pássaro, com beneplácito de Deus, curarei o cego de nascença e o leproso; ressuscitarei os mortos, com a anuência de Deus, e vos revelarei o que consumis o que entesourais em vossas casas. Nisso há um sinal para vós, se sois fiéis. (Sura 3.48-49)

O Alcorão também apresenta um Jesus criança que ensina aos adultos (Sura 19.29-34), mas não traz elementos sobre sua vida ou ensinamentos após a infância, muito menos sobre João Batista. Nos clãs árabes, a transmissão de primogenitura era matriarcal, diferentemente dos judeus. A isso talvez se deva a imensa preocupação do Alcorão com Maria, que mereceu mesmo um capítulo ou Sura do livro, enquanto José nem é citado. Uma exploração pobre de José acontece nos Evangelhos Sinóticos.

A pobreza de elementos pareados com os Evangelhos chama a atenção (e isso em pleno séc. 7, quando Axum era uma potência comercial Cristã, Bizâncio representava a 2ª Roma e o norte da Europa se convertia ao Cristianismo). Novamente, isso sugere que os elementos Cristãos haviam chegado somente de forma oral e muito flexível à Arábia. Mas como essa tradição oral judaico-Cristã evoluiu até ser incluída no Alcorão?

ANTES DO ISLÃ

Uma parte da trajetória dos textos está ligada ao desmantelamento do império Himyar por Axum no séc. 5. Sem uma liderança de poder, os clãs árabes, judeus e pseudo-cristãos se organizaram em pequenas fortalezas e citadelas muradas, como na Europa medieval. Essas pequenas fortalezas estavam frequentemente em guerra umas com as outras. Meca já era uma cidade-templo desde a Antiguidade, então sob a tutela do clã árabe banu Jurhun. Provavelmente a Ka’aba era o templo de Hubal, um equivalente de El.

Amr ibn Luhayy al-Khuza'i, líder do clã banu Khuza'a (Iêmen) então derrotou os Jurhun e tomou o controle de Meca. A ele foi atribuído o início do politeísmo em Meca, que principalmente deve ter sido uma estratégia para agregar ao redor dos Khuza’a todos os demais clãs árabes. As lendas dizem que ele se consultava com um djinn/demônio chamado Abu Thumamah, que o instruiu a trazer (da Síria!) os ídolos de Hubal, Moloque, Uzayy, Asaf, Na'ila e Mana.

Os Khuza’a se tornaram uma estirpe de sacerdotes e cuidadores da cidade-templo, para onde vinham as caravanas do Iêmen. Desse culto politeísta evoluíram oferendas agrícolas de animais e pastagens sagrados, que não podiam ser tocados, com os quais Maomé teria contato muitos anos depois (Suras 5.103, 6.136-149). Mas era uma época de guerras e tanto Meca como a Ka’aba acabaram seriamente danificadas com o passar dos anos.

Ainda no séc. 5, Qusai ibn Kilab (400-480 dC), do clã banu Quraysh, casou-se com uma nobre da família Khusa'a e foi tomado como herdeiro da cidade-templo. Ele ficou famoso na história árabe por ter reconstruído a Ka’aba. Os Quraysh eram muito ricos: possuíam rotas comerciais entre o Iêmen, Síria e Irã, além de controlarem grandes mercados como Akkaz e Dhu I-Majaz. Quando dominaram Meca, aliaram-se a outro clã árabe poderoso, os banu Kinana. As referências islâmicas dizem que os Quraysh originalmente eram monoteístas (Hanif), mas vários se desviaram. Dessa forma, ao redor de Meca começava a se organizar uma nobreza e seus clãs vassalos.

FINALMENTE, COMEÇA O ISLÃ

Particularmennte, os Quraysh tinham um forte parentesco com os clãs judeus. Uma sub-divisão de sua linhagem até usava o nome banu Hashem (Hashem significa ‘O nome’, um substituto dos judeus medievais para o sagrado nome de Deus, YHWH). A linhagem mais judaica dessa família usava o nome banu Qurayza e tinha sua fortaleza ao lado de Medina. Assim, não é estranho que Maomé, nascido no subclã banu Hashem, um secto dos banu Quraysh, tenha buscado refúgio na rica cidade de Medina, controlada pelos banu Qurayza! Ele simplesmente se manteve dentro de seu círculo de nobres.

Maomé saiu de Meca por pregar algo que desagradava sua família: o monoteísmo. Não tanto pela religião (os Quraysh rapidamente se converteram ao Islã, mais tarde), mas porque isso quebrava o pacto dos Quraysh com os clãs árabes ao redor. Expulso de Meca com seus seguidores, o que deu início à Hijra, o profeta sediou-se em Medina, que também era um lugar repartido por diversos clãs. Havia o grupo formado pelos Aws (árabes) e Qynoqa (judeus); mas havia também o grupo dos Khazraj (árabes), Nadhir (judeus) e Quraydha/Qurayza (judeus).

Os judeus Qynoga e Nadhir entraram em conflito com Maomé, tendo suas fortalezas cercadas e destruídas pelos islâmicos. Ao final, perderam suas terras e foram forçados a migrar para o norte, se re-alocando na Síria.

Os banu Qurayza fizeram um pacto de proteção mútua com Maomé, mas esse pacto foi quebrado numa negociação entre eles e os Quraysh de Meca (novamente revelando seu parentesco), quando planejavam destruir os Islâmicos e assumir o controle de Medina. Na Batalha das Trincheiras, o cerco a Medina falhou e os Quraysh recuaram, expondo o plano dos judeus Qurayza.

Maomé ordenou sua rendição em troca de poupar as mulheres e crianças, mas que teve como resultado a decapitação de uns 400 homens. Contra eles foi usado o texto de Deuteronômio 20.10-14, que condenava os homens à morte e mulheres e crianças à escravidão.

"Como eles estavam sendo levados em lotes para o Apóstolo, eles perguntaram a Ka`b o que ele pensava que seria feito com eles. Ele respondeu: 'Você nunca entenderá? Você não vê que o convocador nunca pára e aqueles que são levados não retornam? Por Deus, é a morte!' Isso aconteceu até o Apóstolo ter acabado com eles. Huyayy foi levado para fora vestindo uma túnica florida em que ele tinha feito furos no tamanho das pontas dos dedos, para que não fosse tirada dele, com as mãos amarradas ao pescoço por uma corda. Quando viu o Apóstolo, ele disse: 'Por Deus, não me culpo por me opor a você, mas aquele que abandona Deus será abandonado'. Então ele foi aos homens e disse: 'O comando de Deus está certo. Um livro e um decreto, e um massacre foram escritos contra os filhos de Israel'. Então ele se sentou e sua cabeça foi cortada."(Ibn Ishaq - ou filho de Isaac, tradicionalista islâmico do séc. 8)

Os poucos homens Qurayza que sobraram foram aqueles que se converteram ao Islã. A nova fé nascia do extermínio judeu carregando passagens tanto da antiguidade da Torá quanto de um pseudo-cristianismo implantado a partir da Síria.

Quando a própria Meca se rendeu aos exércitos de Maomé, ele destruiu os ídolos da Ka’aba, afirmando o santuário como o legítimo templo de Abraão e Ismael, construído antes do Templo de Salomão. Os Quraysh então se converteram prontamente, sendo re-empossados como guardiões da cidade-templo. E, não havendo descendentes vivos do profeta, a liderança do Islã passou sucessivamente a seus parentes. Mas isso já é outra história...

CONCLUSÃO

Embora os islâmicos afirmem uma descendência linear de Abraão e Ismael (não podemos dizer que ela não seja real) como fonte de sua fé monoteísta e pura (Hanif), a ligação deles com o monoteísmo, Judaísmo e o Cristianismo é truncada. Houve a absorção de conceitos muito antigos do Judaísmo, mantidos apesar de um quase extermínio/expulsão dos judeus na Arábia, além de intrusões Cristãs bem marginais ou gnósticas. Embora pareçam ancorar o Islã como sucessor ou descendente de fés mais antigas, isso na verdade faz do Islã uma religião bastante original em sua concepção, tanto quanto o Cristianismo e o Judaísmo foram, quando surgiram.

----------------------------------------------------

¹ Meca fica na costa ocidental/central da Arábia. A cidade e seu santuário, a Ka’aba (que deu origem à palavra Cubo) é uma localidade sagrada desde muito antes do Islã, tendo sediado o culto de outras divindades. Desde a antiguidade, as peregrinações levaram a Meca muitas pessoas, o que enriqueceu os vários clãs que cuidaram de seu santuário. No Islã, Meca representa a cidade natal de Maomé, o templo de Abraão e Ismael e a própria Ka’aba foi convertida/revertida em santuário maior de Allah, para onde todos os muçulmanos (crentes) devem peregrinar alguma vez na vida e perfazer um ritual que inclui rodear a grande caixa de pedra.

Sura 22.26 Recorda-te de quando indicamos a Abrão o local da Casa, dizendo ‘Não me atribuas parceiros, mas consagra a a minha casa para os circungirantes, para os que permanecem em pé, os genuflexos e os prostrados’. 27. Proclama a peregrinação às pessoas. Elas virão a ti a pé e montando toda espécie de camelos, de todo longínquo lugar.

² Medina é uma rica cidade comercial, na rota que vai do Iêmen até Jerusalém, pela costa do Mar Vermelho. Rodeada por uma cadeia de montanhas, essa foi a cidade onde Maomé se refugiou da perseguição pelos do seu clã, os banu Quraysh de Meca. Essa mudança coletiva para Medina (em 622 d.C.) é chamada de Hijra e representa o início do calendário Islâmico. A partir de Medina, Maomé construiu alianças entre os clãs árabes e judeus, resistiu a invasões e partiu para a conquista de Meca, o que de fato aconteceu em 630 d.C. O governo da cidade sagrada de Meca, entretanto, foi mantido nas mãos dos banu Quraysh, familiares de Maomé, após se converterem ao Islã.

³ O Evangelho da Infância segundo Tomé é uma colagem siríaca de textos gnósticos, senão completamente imaginativos, de 140-170 d.C. Ele apresenta um Jesus de 5 anos que mata e humilha para reforçar sua autoridade, terminando com a passagem de Jesus ensinando no Templo, aos 12 anos, coletada por Lucas. Essa obra é uma versão anterior do Evangelho Árabe/Siríaco da Infância, que também é uma versão anterior do Proto-evangelho de Tiago. Ver Uma dúvida apócrifa.

----------------------------------------------------

AS MIL E UMA PÁGINAS

A infância de Jesus segundo São Tomé
Amr bin Luhai - the first man who changed the religion of Abraham, Islamic awareness for the youth, dez 2010
Banu Hashim - wikipedia
Banu Qurayza - wikipedia
Infancy gospel of Thomas, earlychristianwritings.com
Mythology and religion of pre-islamic Arabia: deities, spirits, figures and locations, wathanism.blogspot.com.br, nov 2011
Quraysh - wikishia.net
Quraysh - wikipedia
Re-examining banu Qurayzah incident, Karim KK, Misau AM, discover-the-truth.com, jan 2016
Social context and spiritual belief in pagan Arabia, wathanism.blogspot.com.br, abr 2013
Towards Understanding the Quran, Islamic Foundation, United Kingdom
Was Abraham commanded to sacrifice Isaac or Ishmael?, judaism-islam.com, out 2012
What happened to the Jewish tribe of Medina banu Qurayza, www.quora.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!