quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Guarda noturno

Trago aqui uma obra de Mário de Andrade, finalizada em 1914, chamada "Conto de Natal". Vi ela como mais um daqueles cordéis enriquecidos por Ariano Suassuna, que fazem as pessoas verem, naqueles que lhes cercam, justamente as figuras que mais temem.


Clube Automobilístico, São Paulo, início do séc. 20

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Seriam porventura dez horas da noite...

Desde muitos dias os jornais vinham polindo a curiosidade pública, estufados de notícias e reclamos de festa. O Clube Automobilístico dava o seu primeiro grande baile. Tinham vindo de Londres as marcas de carros e corria que as prendas seriam de sublimado gosto e valor. Os restaurantes anunciavam orgíacos réveillons de natal. Os grêmios agitavam-se.

Seriam porventura dez horas da noite quando esse homem entrou na praça Antônio Prado. Trazia uma pequena mala de viagem. Chegara sem dúvida de longe e denunciava cansaço e tédio. Sírio ou judeu? Magro, meão na altura, dum moreno doentio abria admirativamente os olhos molhados de tristeza e calmos como um bálsamo. Barba dura sem trato. Os lábios emoldurados no crespo dos cabelos moviam-se como se rezassem. O ombro direito mais baixo que o outro parecia suportar forte peso e quem lhe visse as costas das mãos notara duas cicatrizes como feitas por balas. Fraque escuro, bastante velho. Chapéu gasto dum negro oscilante.

Desanimava. Já se retirara de muitos hotéis sempre batido pela mesma negativa: "Que se há de fazer! Não há mais quarto!"

Alcançada a praça, o judeu estacou. Pôs no chão a maleta e, recostado a um poste, mirou o vaivém. O povo comprimia-se. Passeavam, maltrapilhos, grupos conversando alto. Os ricos passavam esmerados nos seus trajes. No ambiente iluminado dos automóveis, esplendiam os peitilhos, as carnes desnudadas e os cachos as mulheres-da-vida que roçavam pela multidão, bamboleando-se, olhos pintados, lábios  carmim. Boiando no espaço, trilhas de odores sensuais.

O homem olhava e olhava. Parecia admiradíssimo. Por várias vezes fez o gesto de tirar o chapéu mas a timidez dolorosa gelava-lhe o movimento. Continuava a olhar.

"Vais ao baile do Clube?" "Não arranjei convite. Você vai?" "Onde irás hoje?" "Como não! Toda São Paulo estará lá." "Ao réveillon do Hotel Sportsman" "Vamos ao Trianon!" "Por que não vens comigo à casa do Marquês? Há lá um Souper-rose." "Impossível." "Por quê?" "Não Posso. Vou ter com a Amélia." "Ah..."

Tirando respeitoso o chapéu, o oriental dirigiu-se por fim ao homem que dissera “ir ter com a Amélia” e perguntou-lhe com uma voz tão suave como os olhos. Caiam-lhe os cabelos pelas orelhas, pelo colarinho:

— O senhor vai sem dúvida para o seu lar...

Decerto um louco. Não, bêbedo apenas. O outro deu de ombros. Descartou-se:

— Não.

— Mas... e o senhor poderia informar-me... não é hoje noite de Natal?...

— Parece. (E sorria.) Estamos a 24 de dezembro.

— Mas...

O homem da Amélia tocara no chapéu e partira. Desolação, no sacudir lento da cabeça. Agarrando a maleta, o judeu recomeçou a andar. Tomou pela rua de São Bento, venceu o último gomo da rua Direita, atingiu o Viaduto. A vista era maravilhosa. À direita, empinando sobre o parque fundo, o Clube Automobilístico arreado de lâmpadas de cor. A mole do edifício entrajada pelo multicolorido da eletricidade parecia um enorme foco de luz branca. Do outro lado do viaduto, na esplanada debruava a noite o perfil dum teatro.

O judeu perdia-se na visão do espetáculo. Aproximava-se do largo espaço da esplanada onde no asfalto silencioso escorregava outro cortejo de autos. Cada carro guardava outra mulher risonha a suportar toda a riqueza no pescoço. Feixes de operários estacados aqui e além. O rutilar daqueles monumentos, o anormal da comemoração batendo na pele angulosa dos casacos fazia explodir uma faísca de admiração e cobiça. Toda a população dos bairros miseráveis despejara-se no centro. Vieram divertir-se. Sim: divertir-se vendo os ricos e suas festas.

O sírio entrou por uma rua escura que entestava com o teatro. Incomodava-o a maleta. Num momento, unindo-se a uma casa em construção, deixou cair o trambolho entre dois suportes de andaime. Partiu ligeiro, atirando as pernas para frente, como pessoa a quem chamam atrás e não quer ouvir. E na subida vagarosa, lido numa placa de esquina: Rua da Consolação. Aqui o alarido já se espraiava discreto na surdo-mudez das casas adormecidas.

Subiu pela rua. De repente, parou diante da porta. Bateu e esperou. Acolheu-o uma criada de voz áspera:

— Por que não tocou a campainha? Não tem olhos? Que quer?

— Desculpe. Queria falar com o dono da casa...

— Não tem ninguém. Foram na festa.

Partiu de novo. Mais adiante animou-se a bater outra vez. Nem criada. E na aspiração de encontrar uma família em casa, batia agora de porta em porta. Desesperação febril. Persistência de poeta. Uma vez, a família estava. Que divino prazer lhe paga o esforço! Mas o chefe não podia aparecer. Lamentações lá dentro. Alguém estava morrendo. Deus o leve!

Mais ou menos uma hora, depois de ter subido toda a rua, o judeu desembocou na avenida. A faixa tremente da luz talhava-a pelo meio mas dos lados as árvores escureciam o pavimento livre das calçadas. Entre jardins onde a vegetação prolongava sombra e frescor, as vivendas enramadas de trepadeiras, como bacantes, dormindo. Sono mortuário. Apenas ao longe gritava um edifício qualquer num acervo de luzes. O judeu parou. O pó caiara-lhe as botinas e a beirada das calças. O cansaço rasgara-lhe uma ruga funda sob os olhos. Os lábios sempre murmurantes pendiam-lhe da boca secos e abertos. O rosto polira-se de suor. Limpando-se descuidado, recomeçou a andar muito rápido para o lado das luzes.

Atravessados quase em carreiras vários quarteirões, chegou ao trecho iluminado. Era uma praça artificial construída ao lado da avenida. Alguns degraus davam acesso à praia dos ladrilhos, onde passeavam pares muito unidos. Sob carramanchões de cimento armado agrupavam-se homens de olhares já turvos, bocas fartas ao redor da cerveja. Entre o zum-zum da multidão brincavam nas brisas, moderadas pela distância, melodias moles de danças. Por toda a parte a mesma alegria torpe.

Daquele miradouro via-se a cidade estirada sobre colinas e vales. Os prédios parecidos confundiam-se na claridade ambiente e nos longes, recortando um grande halo que mascarava de santa a Pauliceia.

Mas o judeu mal reparou nos enfeites com que o homem recamara aquela página da terra. Olhava apenas a multidão, perscrutava todos os olhares. Procuraria alguém?... Quase que corria no meio dos passeantes ora afastando-se ao contato de uns, ora atirando-se para outros como se reconhecendo alguém. Desiludia-se entretanto e procurava mais, procurava debatendo-se na turbamulta. Enfim, desanimado, partiu de novo. Ao descer os degraus do miradouro, notou duas escadinhas para o subsolo. Espiou. Outro restaurante! Fugiu para a rua.

A fila imóvel dos autos. Corrilhos de motoristas e frases obscenas. Passou. Ia afundar-se de novo no deserto da avenida. Mudou de resolução. Retornou de novo para a luz. Era um espelho de suor. Caíra-lhe o chapéu para o lado e uma longa mecha de cabelos oscilava-lhe na fronte como um pêndulo. Os motoristas repararam nele. Riram-se. Houve mesmo um prelúdio de vaia. Nada ouviu. Entrou de novo no miradouro. Desceu os degraus. Um negrinho todo de vermelho quis recusar-lhe a entrada. O oriental imobilizou-o com o olhar. Entrou. Percorreu os compartimentos. O mesmo desperdício de luz e mais as flores, os tapetes... Bem-estar! Numa antítese à brancura reta das paredes, o sensualismo de couros almofadados. E o salão nobre. A orgia escancarada.

Todo o recinto era branco. Dispostas a poucos metros das paredes as colunas apoiavam o teto baixo no qual os candelabros plagiavam a luz solar. Espelhos no entremeio das portas fenestradas eram como olhos pasmos e imóveis. As flores feminilizavam colunas e alampadários, poluíam seu odor misturando-o à emanação das carnes suarentas e nessa decoração de fantasia apinhavam-se comendo e bebendo, sorrindo e cantando, uma comparsaria heterogênea.

Bem na frente do judeu, sentados em torno duma mesa estavam dois homens e uma mulher. Falavam língua estranha cheia de acentos guturais. Seriam ingleses... Os homens louros e vermelhos denunciavam a proporção considerável da altura pelo esguio dos torsos e dos membros mas a perfeição das casacas dava-lhes à figura um quê de aristocracia.

A mulher era profundamente bela. Trajava preto. Gaze. A fazenda envolvia-lhe a plasticidade das ancas e das pernas, dando a impressão de que o busto saísse do escuro. O vestido como que terminava na cintura. Um tufo de tules brancos subia sem propriamente encobrir até parte dos seios, prendendo-se ao ombro esquerdo por um rubi. Sobre a perfeição daquele corpo a cabeça era outra perfeição. Na brancura multicor da pele queimava uma boca louca rindo alto. As narículas quase vítreas palpitavam voluptuárias como asas de pombas. Os olhos eram da maior fascinação no arqueado das sobrancelhas, na ondulação das pálpebras, no verde das pupilas más. E colmava o esplendor uma cabeleira de pesadas ondas castanhas. Já tonta, meneando o corpo, estendendo os braços com joias sobre a toalha, oferecia-se à contemplação abusiva da luz. Era nela que os dois ingleses apascentavam os olhares.

Em torno de todas as mesas, como refrão do prazer rico repetia-se a mesma tela: homens rudes acossados pelo desejo, mulheres incastas, perfeitas e maravilhosas.

Do outro lado do salão a orquestra vibrou. Ritmo de dança, lento. Balançaram dois ou três pares num círculo subitamente vazio. Um dos ingleses e a mulher de preto puseram-se a dançar. Inteiramente abraçada pelo homem ela jungia-se a ele, agarrava-se-lhe de tal jeito que formavam um corpo só. Ondulavam na cadência da música: ora partiam céleres como numa fuga, parando longamente depois como num espasmo. Ora se afastavam um do outro num requebro, ora mais se uniam e o braço esquerdo dela rastejava no dorso negro da casaca dele. Dançavam com os sentidos e a mulher na ascensão do calor e da volúpia, mostrava na juntura esquerda dos lábios um começo de língua.

O judeu continuava a olhar. Seguia os pares no baloiço do tango, esforçando-se por disfarçar com a imobilidade a excitação interior. Mas seus olhos chispavam. Mas juntas nas costas tremiam-lhe as mãos mordidas pelos dedos.

Enfim vibrados os últimos acordes, os dançarinos pararam. A inglesa seguida pelo parceiro, arrebentando os olhares que lhe impediam a passagem, viera sentar-se. Incrível! O judeu bufando enterrara o chapéu na cabeça, abrira o fraque com tal veemência que os botões saltaram e tirando dum bolso interno uma correia de couro, fustigara a espádua da mulher. Tal fora a energia da relhada que o sangue imediatamente brotava no vergão enquanto a infeliz uivava ajoelhando. O golpe arrebentara a gaze junto ao ombro.

Mas o judeu malhava indiferente todas as formosuras.

Um primeiro imenso espanto paralisou a reação daqueles bêbedos. O fustigador derribando cadeiras e mesas atravessava os renques de pusilânimes, cortava caras e braços nus. Tumulto. Balbúrdia dissonante. O mulherio berrava. Os homens, temendo serem atingidos pela correia do louco, fugiam dele na impiedosa comicidade das casacas. Arremessavam-lhe de longe copos e garrafas. Mas ele percorria em alargados passos o salão, castigando todos com furor. Onde a correia assentava, negrejava um sulco, chispava um uivo.

Nos primeiros segundos... Depois, em número, os homens já se expunham mais aos golpes na esperança de bater e derrubar. O círculo apertava-se. O oriental teve de defender-se. Vendo junto à parede um amontoado de mesas saltou sobre ele. Abandonara o chicote, empunhara uma cadeira, esbordoava com ela os que procuravam aproximar-se. Impossível atingi-lo. Seus braços moviam-se agílimos tonteando cabeças, derreando mãos.

As mulheres agrupadas à distância reagiam também. As taças pratos copos atirados por elas sem nenhuma direção, acertavam nos alampadários cujos focos arrebentavam. As luzes apagadas esmoreciam a nitidez do salão e as sombras enlutavam o espaço, diluindo todos numa semiobscuridade pavorosa.

Mais gente que acorria. Os passeantes do miradouro atulhando as portadas saboreavam em meio susto a luta. Os motoristas procuravam roubar bebidas. A polícia telefonava pedindo reforços.

Mas o oriental já começava a arquejar. Seus lábios grunhiam. Uma garrafa acertara-lhe na fronte. O chapéu, saltando da cabeça, descobriu na empastada desordem das madeixas a rachadura sangrando. O sangue carminava-lhe o rosto, cegara-lhe o olho esquerdo, entrava-lhe na boca e escorrendo pelo hissope da barba. Afinal alguém consegue agarrar-lhe a perna. Puxa-o com força. Ele tomba batendo-se. Todos tombam sobre ele. Ninguém lhe perdoa a desforra. Os que estão atrás levantam os punhos inofensivos para o alto esperando a vez. Desapareceu num molho de homens.

Chega a polícia. A autoridade só com muita luta e usando força, livra o mísero. No charco de champanhe, sangue e vidros estilhaçados, ele jaz expirante. Pernas unidas, braços estendidos para os lados, olhos fixos no alto, como querendo perfurar as traves do teto e espraiar-se na claridade fosca da antemanhã. Levaram-no entre insultos.

Todo jornal comentava o caso no dia seguinte. O público lia o inédito do escândalo, as invenções idiotas, as mentiras sensacionais dos noticiaristas. Nas múltiplas edições dos diários, relegado às derradeiras páginas, repetia-se o estribilho perdido que ninguém leu. Um guarda-noturno achara rente a uma casa em construção, uma pequena mala de viagem. Aberta na mais próxima delegacia, encontraram nela entre roupas usadas e de preço pobre, uma tabuinha com dizeres apagados, quatro grandes cravos carcomidos pela ferrugem e uma coroa feita com um trançado de ramos em que havia nódoas de sangue velho e restavam alguns espinhos.

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ALGO PARA DIZER A RESPEITO..

1. Essa não é uma obra tão famosa de Mário de Andrade, tocando em alguns pontos de tabus sociais assim como Macunaíma, por exemplo. Um dos grandes da Academia Brasileira de Letras, ele era um homem profundamente nacionalista e Católico. As concepções de moral e santidade do Catolicismo na virada dos sécs. 19/20 certamente influenciaram essa e muitas obras dele.

2. No texto, existem algumas referências aos Evangelhos. Algumas óbvias, como os cravos nas malas e o aspecto "sírio" ou "judeu" do homem; outras mais sutis como ele se importar com o Natal (supostamente Seu aniversário), a barba e o cabelo longos, não-feitos como de alguém humilde (aspecto pobremente descrito de Jesus), o rompante de açoitar as pessoas em uma espécie de restaurante ou casa de baile. Finalmente, a posição de braços estendidos, após ser "apedrejado" e espancado pela multidão.

3. Nos Evangelhos, Jesus açoitou os vendedores de oferendas dentro do Templo. Aparentemente, o motivo era terem transformado a Casa de Deus em um mercado. No texto, Jesus açoita as moças "pouco vestidas" que flertavam com os homens numa casa de bailes. A descrição das moças é bem detalhada e envolvente. Aparentemente, o novo mercado dentro da casa de Deus era a sensualidade em pleno Natal. Mas Jesus jamais se expressou contra a sensualidade nos Evangelhos. Nem tampouco contra mulheres. Muito menos uma casa de bailes poderia ser considerada lugar sagrado.

4. Mário de Andrade conhecia os Evangelhos e associava Jesus fortemente a uma imagem de grupo familiar. Outro conto dele, Peru de Natal, traz um pouco desse contexto. Outras formas de comemoração - sem a família - seriam para ele profanas, equiparando-as com a venda de oferendas no templo. Há o "profano de Jesus" e o "profano do Jesus de Mário". Relembrando uma fala genial de Ed René Kiwiz, Deus não cabe no nosso entendimento e portanto não nos cabe tentar explicar Ele, retratar ou prever como Ele agiria.

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