Imagens dos Haussá
No comecinho do séc. 19, o Brasil recebia a família real portuguesa no Rio de Janeiro, junto com uma imensa corte e a maior parte da biblioteca imperial. Isso mudaria muito a situação educacional na colônia, até então basicamente um canto inculto do mundo. Mais ao norte, a costa da Bahia era um lugar muito diferente. A paisagem era composta de grandes fazendas de tabaco, mercados e veleiros. Os navios negreiros e baleeiros desembarcavam negros e óleo para lamparinas num dos maiores portos do Brasil. Salvador havia deixado de ser a capital nacional a apenas 50 anos.
Tão urbanizada quanto o Rio de Janeiro, Salvador concentrava a maior parte da população em atividades relacionadas com o porto e seu comércio marítimo. Muitos escravos vendidos ali eram empregados no comércio da própria cidade, alguns até possuindo seus subalternos. Esses "escravos de ganho" entregavam boa parte da renda ao proprietário, mas com o tempo aconteceu de vários serem capazes de pagar o próprio preço, ou seja, comprar a sua liberdade (isso exigia cerca de 9 anos de trabalho). Alguns eventualmente prosperaram no comércio e se tornaram ricos (como Manoel Joaquim Ricardo, que morreu em 1865, deixando 28 escravos, 4 casas e uma senzala, e era um dos homens mais ricos de Salvador). Quase 1/5 dos negros livres era possuidor de outros escravos. Desse modo, Salvador era uma mistura de brancos, negros livres e escravos. Essa variedade financeira, como num grande mercado, seria crítica para formar personagens ativos na história do Brasil.
Os africanos que chegavam em Salvador eram prisioneiros de uma outra guerra acontecendo no outro lado do Atlântico, na planície do rio Níger. Ali era o grande território Yorubá, formado por uma coleção de reinos independentes. Na parte mais baixa do território e ao sul ficavam os reinos politeístas comerciantes de óleos, marfim e armas de ferro, cada qual com seu sistema de divindades. Na parte mais alta e mais próxima do grande deserto ao norte, ficavam as nações agro-pastoris, produtoras de peles e grãos, em sua maioria islâmicas. As guerras entre as nações das terras baixas e das terras altas geravam muitos prisioneiros. Enquanto os reinos pastoris Malí, Ghana e Songhai vendiam esses prisioneiros como escravos para o mundo árabe, os reinos portuários Oyó e Benin vendiam escravos islâmicos para os Portugueses e Ingleses. Eram esses homens e mulheres capturados, na maior parte da nação Haussá/Hauçá que eram postos nos navios tumbeiros e chegavam no mercado de Salvador, 40 dias depois de embarcados.
Formada dessa maneira, a população de Salvador em 1810 tinha uma constituição religiosa muito única para o Brasil. Eram brancos Católicos, majoritariamente nascidos no Brasil, misturados a negros Muçulmanos, livres ou escravos. Como a Igreja não se importava muito com a fé dos negros, isso criou uma cisão religiosa. Só mais tarde, quando a Inglaterra e Portugal declarassem guerra aos reinos Africanos, chegariam escravos das nações politeístas.
Os negros de Salvador que desfrutavam de liberdade inclusive se filiavam em congregações Islâmicas para seus cultos e orações. E recebiam, através dos escravos novos, notícias das guerras em suas pátrias. Em pouco tempo, revoluções iniciadas na África seriam espelhadas em Salvador.
Os negros islâmicos que tinham alguma hierarquia na comunidade inclusive usavam seus barretes vermelhos*, anéis de prata e batas como sinal de status. Eram chamados “malês”, uma palavra que vem do iorubá "imale", sem dúvida referente ao reino Malí, na África, e significando “muçulmano”. Eles mesmo se chamavam de “moslim”, outra palavra iorubá que vem de "mu’allim", em árabe, um nome para os letrados e clérigos islâmicos. Esses negros eram alfabetizados em árabe, possuíam cópias manuscritas do Alcorão e faziam bom uso da matemática, algo que era então privilégio dos Portugueses.
OS MALÊS DE SALVADOR
Em 1804, um líder africano chamado Usman dan Fodio ou (Ibn Fodio) começou um movimento de purificação nas terras pastoris que terminou com muitos capturados e vendidos entre o povo Haussá. Na verdade, Dan Fodio e seus seguidores esvaziaram cidades inteiras, em uma Jihad contra o costume étnico de escarificar a face (um símbolo familiar, e também de status), de chorar sobre os mortos, de rezar sem ter feito as abluções, de as mulheres andarem sem véu e a escravização de Muçulmanos (escravizar os não Muçulmanos ou os Muçulmanos impuros estava ok). Dan Fodio fundou o Califado de Sokoto (1804-1903) e esses "impuros" acabaram justamente como os principais escravos vendidos na Bahia.
Entre os Malês, havia notável mistura de religiões politeístas africanas e o Islamismo. Esse arranjo era comum e ainda é assim na região Yorubá, onde há cultos de possessão espiritual, devoções a divindades de árvores, montanhas, grutas e rios, etc, por sua vez sincretizadas com o Islã, através do misticismo Sufi (grupo Muçulmano que valorizava muito a meditação e práticas rituais). Conta-se que faziam adivinhações, danças, portavam amuletos (trechos do Alcorão dentro de pequenas bolsas de couro costuradas) e faziam apelos aos santos islâmicos contra aqueles que os maltratavam, ou mesmo os djinns. Essa natureza do Islamismo bahiano seria outro ponto importante, nos desdobramentos futuros.
O Conde de Gobineau, estudioso das raças, esteve no Rio de Janeiro para visitar D. Pedro II em 1869-1870. Ele deixou um retrato curioso do Brasil que encontrou:
… Malgrado esta aparência, pude constatar que [os Africanos] devem guardar bem fielmente e transmitir com grande zelo as opiniões trazidas da África, pois que estudam o árabe de modo bastante completo para compreender o Alcorão ao menos grosseiramente. Esse livro se vende no Rio nos livreiros ao preço de 15 a 25 cruzeiros, 36 a 40 francos. Os escravos, evidentemente muito pobres, mostram-se dispostos aos maiores sacrifícios para possuir este volume. Contraem dívidas para esse fim e levam algumas vezes um ano para pagar o comerciante. O número de Alcorões vendidos anualmente eleva-se a mais ou menos uma centena de exemplares (...)
Em Salvador, a educação dos Malês começava aos 10 anos de idade, em escolas caseiras. Provavelmente, alguns eram capazes de recitar todo o Alcorão. Centros educacionais famosos dos Malês foram a casa do alufá Manoel Calafate, a venda de fumo do Mestre Dandará, localizada no Mercado de Santa Bárbara, sob a direção do alufá Sanin, e a mesquita construída por James e Diogo, escravos pertencentes ao inglês Abraham Crabtree**.
Em terras africanas, aqueles homens teriam pertencido a diversas nações, com línguas diferentes e até inimigas entre si. No Brasil escravista, eles encontraram o árabe como língua comum e o Islamismo como sentido social. Por causa disso, em várias ocasiões os Malês se organizaram em movimentos revolucionários de ordem religiosa. Sem excessão, tais movimentos explodiam após uma organização silenciosa dos líderes, objetivando a liberdade de escravos, destruição das plantações e templos Católicos (sinônimos de conversão forçada), assim como instaurar governos Muçulmanos. Nenhum desses movimentos vingou, mas todos foram significativos para entender como se organizavam os representantes brasileiros de Haussá.
Negros livres eram vistos fazendo proselitismo do Islã em vários locais de Salvador, como o beco da Mata-Porcos, na ladeira da Praça e no Cruzeiro de São Francisco. Nestas pregações eles até faziam propaganda contra a missa Católica, dizendo que a veneração de santos era o mesmo que “adorar um pedaço de pau” e opondo seus rosários aos rosários Católicos.
O LEVANTE MALÊ
O movimento de revolta Malê em 1835 não foi isolado. Já haviam ocorrido pelo menos duas manifestações antes, na Bahia. Entretanto, eram populações rurais e a midiatização de uma ocorrência em Salvador ganhou proporções nacionais. Além disso, o caso gerou uma quantidade enorme de documentos que, muito tempo depois, testemunham sobre um Brasil negro do qual pouco se falava.
Até 1835, os Malês eram tão bem tolerados que o liberal Mr. Crabtree permitiu aos escravos erguerem uma espécie de palhoça com a função de mesquita e escola corânica, no distrito de Vitória, em Salvador. Nos anos seguintes, para lá se dirigiram muitos escravos e libertos da região, a fim de realizarem seus cultos.
Em dezembro de 1834, a mesquita de Vitória foi o local de celebração do Lailatul Miraj, a viagem noturna do profeta Muhammad aos céus. A comemoração reuniu grande número de fiéis. O evento, porém, foi interrompido pela chegada do inspetor de polícia, intimando os Malês a se dispersarem. Para evitar problemas com as autoridades, Abraham Crabtree, dono dos escravos, ordenou que eles próprios demolissem a mesquita. Esse foi o estopim da revolta dos Malês.
Em 1834, um ato adicional à Constituição já alertava contra "doutrinas Haitianas" circulando entre os negros organizados em "sociedades secretas", destinadas a amotinar os escravos nas lavouras. Havia, em todo o mundo escravista, o medo de algo semelhante à Revolução Haitiana (1791-1804), quando escravos tomaram conta da Ilha de São Domingos, expulsando ou matando os colonos espanhóis.
Na noite de 24 do mês de Ramadã² (Janeiro) de 1835, quando os Católicos comemoravam a festa de Nossa Senhora da Guia³, um grupo Malês reuniu-se. Era uma das 10 últimas noites sagradas, chamada Laylat al Qadr, quando Mohammed havia recebido a revelação do Alcorão. Mas a Rebelião já havia sido denunciada às autoridades. Conforme um relatório policial da época:
Depois pelas partes recebidas [denúncias], soube que no acto da busca em huma casa junta de Guadalupe, à ladeira da Praça, por denúncia particular, quando quis entrar o Juiz de Paz, não lhe quis abrir a porta huma parda, dizendo que ali não havia pessoa alguma; e como se dispusesse o Juiz a arrombá-la, abriu-a, ao passo que a outra se fechou. Mas, crescendo a desconfiança, e entrando o Commandante da Companhia dos Permanentes, o Tenente Lázaro Vieira do Amaral, repentinamente a hum signal dado, dizem, pela referida parda, abriu-se a porta sahindo de dentro hum tiro de bacamarte, e apoz delle hum grupo de 60 pretos, pouco mais ou menos, armados de differentes armas, principalmente de espadas, os quaes dispersarão a pequena força surpehendida, ferindo gravemente ao referido Tenente Lazaro, e a outros que forão encontrando em sua passagem.
A Revolta acabou sendo denunciada por duas escravas libertas, uma por fidelidade ao seu senhor e a outra por motivos passionais. Apesar disso, não houve grande tempo para a preparação da polícia, que travou combate feroz com os rebelados.
O movimento religioso se revelava na pouca participação de negros brasileiros. Em Salvador, os nascidos na África chegavam a mais de 30% da população total (ao todo, os negros representavam 2/3 da população urbana). As lideranças dos Malês eram também líderes religiosos: Ahuna (um Yorubá com o rosto marcado por sinais, escravo de um comerciante de aguardente), Pacífico Licutan (Yorubá idoso e magro, também de face marcada, alufá respeitado que trabalhava como enrolador de fumo no cais e era escravo dum médico), Luís Sanin (outro alufá, parceiro de Licutan no enrolamento de fumo, era também um mestre em finanças), Manoel Calafate (alufá idoso e liberto), Mestre Dandará (o "filho de Daurá", um pequeno reino Haussá, era um alufá liberto e proprietário de um comércio de fumo próximo à mesquita), Sule e Mama (junto com Buremo, esses três eram os líderes da mesquita no distrito de Vitória).
Os Sufi faziam juramentos de lealdade aos seus mestres, estabelecendo linhagens de ensino ou Tariqas. Licutan era um renomado alufá, o que indicava que muitos em Salvador eram juramentados a ele, que havia sido confiscado para pagamento de dívidas de seu senhor e estava na prisão. Sanin levava comida para Licutan todos os dias. Foi para a prisão que se dirigiram os revoltosos, partindo da casa de Calafate. Haviam feito juramento diante de uma bandeira branca para morrer em batalha, e não de doenças. Era o mesmo juramento dos discípulos de Dan Fodio, na África...
Ao todo, a Revolta dos Malês contou com 200-250 homens e durou dois ou três dias. A quantidade de negros nas ruas acendeu todos os terrores de uma nova Revolução Haitiana. A maioria vestia as batas/abadás brancos usados nos cultos e os líderes portavam seus barretes vermelhos. Na abordagem inesperada após a denúncia dada pelas mulheres, metade deles tomou as ruas com paus, foices e ferramentas de cortar gado para tentarem chegar onde o alufá Licutan estava preso. Esse movimento foi de encontro com a força policial, e muitos caíram baleados antes que soltassem Licutan.
Com a notícia do estouro, um outro grupo lançou-se às ruas despreparado, antes do momento, e no confronto escaparam para a zona rural da cidade. Lá incendiaram algumas plantações e foram perseguidos e fuzilados um a um, outros se jogando no rio, onde morreram afogados. Um tanto deles acabou preso nas matas e plantações de fumo, sendo depois fuzilados ou mortos a chicotadas.
Há o registro dos sobreviventes que foram presos e nomes mencionados por eles, mas só há vagos indícios dos que morreram. Como os documentos sobre o levante foram obtidos de forma policial, muito pouco se sabe sobre o líder Ahuna. Os inquiridos tentaram a todo custo esconder sua identidade. Mesmo o nome Ahuna é duvidoso, pois trata-se de uma corruptela de Arão, o líder Hebreu.
E A CRISTANDADE COM ISSO?
Nesse ponto, o leitor costumeiro talvez esteja algo interessado nas estórias sobre baianos falando árabe, e quem sabe se pergunte "Esse não era para ser um espaço de falar do Cristianismo?". A explicação está na forma como a cultura Malê foi influente no desenvolvimento do Cristianismo na costa Nordeste do Brasil.
Obviamente, a Igreja Católica não estava interessada nos negros até o tempo da República. Ou pelo menos não cogitava interferir no sistema escravista. No máximo, havia conversões forçadas que não concediam aos negros o status de fiéis nem permitiam sua entrada nas igrejas, e era quase somente um mecanismo para desfazer as congregações em que eles se vinculavam. Apesar disso, os negros eram maioria populacional no Nordeste e a abolição da escravatura os misturaria indelevelmente com a população cabocla mais pobre. Essa miscigenação não seria somente genética, mas também cultural.
No Nordeste do séc. 19, por exemplo, os senhores de escravos permitiam celebrações afro-católicas vinculadas a irmandades negras, entendidas como uma ferramenta de Catequese, como forma de "apaziguar os pretos". Uma forma famosa dessas festas são as celebrações de Nosso Senhor do Bonfim, que permaneceram até os dias de hoje, com danças Sufi e batuques Yorubá se misturando ao Catolicismo.
Os negros tiveram cada vez mais proibidas as suas práticas e após 1835 o Brasil seguiu em rumo de supressão do Islã, até então desprezado. Elementos islâmicos, mesmo letras em árabe, eram evidências de conspiração.
A medida entre os comandos políticos do Rio de Janeiro e a prática comunitária de "apaziguar os pretos" foi curiosamente encontrada dentro da Igreja, na forma de Confrarias de Pretos. Estas eram irmandades de convertidos e devotos (como as irmandades Sufi, a que os Africanos estavam acostumados), onde os negros tinham acesso aos espaços Católicos. Lá, em nome de pseudo-tradições monásticas, podiam encontrar alguma privacidade para seus cultos e rituais fúnebres. As confrarias dedicadas a São Benedito (um monge Franciscano negro da Itália), Nossa Senhora do Rosário (que numa visão instruiu São Domingos de Gusmão sobre como derrotar os Cátaros, no séc. 13, através da reza de um rosário muito parecido ao dos Muçulmanos) e Nosso Senhor do Bonfim (cuja festa coincidiu com o Qadr islâmico) tiveram quase 90% dos negros Católicos de Salvador. Dependendo do Estado nordestino, outras confrarias importantes foram Santa Ifigênia, São Jorge, Santo Elesbão, São Gonçalo, etc.
As aproximações entre as religiões no séc. 19 podem ser testemunhadas pelas chamadas "bolsas de mandinga", um adereço que foi bastante característico dos negros no final do Império, e perseverou bastante no Nordeste, entre os mulatos e caboclos. Mandinga era o nome dado aos reis do Império Malí, na África. As bolsas ou patuás serviram como proteção contra feitiços, o mal, qualquer coisa. Na tradição jagunça do sertão do séc. 19, acreditava-se que poderiam mesmo fazer alguém ter "corpo fechado" e resistir a facadas e tiros. Eram pequenas e amarradas no pescoço, braço, tronco, etc, feitas de couro ou tecido e contendo ossos humanos (de inimigos, parentes ou religiosos), sementes, desenhos de Cristo crucificado, orações Católicas, versículos bíblicos ou do Alcorão.
Na Casa das Minas em Maranhão (referência ao grupo religioso de Candomblé chamado Tambor de Minas) já houve uma profusão de imagens santos Católicos. Hoje, distanciando-se do Catolicismo, ainda são cultuados alguns voduns "devotos" de Católicos: Doçú, que adora São Jorge, Nochê Sepazim, que adora o Divino Espírito Santo, Averequete, que adora São Benedito, Polibogi, que adora Santo Antônio, Badé que adora São Pedro, Sobô que adora Santa Bárbara e os gêmeos Toçá e Tocé, identificados com Cosme e Damião.
No final do Império, essa flexibilização do Catolicismo nordestino foi crucial para absorver os negros libertos e a explosão populacional de mulatos/mamelucos que surgiu da miscigenação de negros, brancos caboclos e indígenas. Os mestiços, distantes dos dogmas Católicos, acabavam nascendo numa religiosidade bem brasileira, que se formava entre o Islã, os cultos Yorubá e o Catolicismo lusitano. Mais próximo ao Rio de Janeiro, o Catolicismo se fechou às influências Africanas, que fundiram o Islã e as religiões Yorubá dentro dos terreiros de Candomblé e Umbanda.
DEPOIS DOS MALÊS
O legado dos Malês propriamente ditos não desapareceu facilmente. Conto aqui algumas decorrências do que aconteceu na Bahia.
O iman Abdurrahman Bin Abdulal al-Baghdadi, de Bagdá, era um intelectual do Império Ottomano¹, que então controlava o Oriente Médio. Em 1866, ele embarcou em Istambul/Turquia como responsável pelo cuidado espiritual da tripulação, que deveria circunavegar a África, mas um furacão fantasticamente fez com que a embarcação cruzasse o Atlântico e viesse à costa do Rio de Janeiro. Ao desembarcar na capital do Império, al-Baghdadi foi abordado por diversos negros que reconheceram suas vestes e status e o saudaram: “As-Salamu Alaikum”. Estes negros, ao entrarem no navio, afirmaram “eu, muçulmano” e não, “eu, malê”, cientes de que tal nomeação era rejeitada no mundo islâmico.
Al-Baghdadi percorreu a costa brasileira de barco até Recife, parando nas capitais costeiras e relatou, em seu retorno, o fato de negros brasileiros serem Muçulmanos e praticarem os rituais de oração, além de terem o cuidado de manter partes do Alcorão no idioma árabe e guardados dentro de pequenos cofres. Por causa da perseguição aos Malês se iniciando, Al-Baghdadi tutelou por nada menos que 3 anos cerca de 500 negros brasileiros no estudo do Alcorão. Seu relato em Bagdá contou sobre 19 mil Muçulmanos vivendo no Brasil. Nas palavras dele:
Com freqüência lhes perguntei pelo motivo por que escondem tanto sua religião, embora os países garantam todas as liberdades que se queiram. E eles me relataram que houvera uma guerra entre eles e os Cristãos. Os negros tinham a intenção de controlar as terras, mas a vitória ficou com os Cristãos. Era publicamente conhecido entre eles que a raiz desse levante estava em uma comunidade Muçulmana que havia entre os grupos dos negros. Foram eles que decidiram essa coisa entre si, pois existem diversas religiões [entre os africanos]. Os Muçulmanos inclusive negam sua religião até mesmo hoje [1865, trinta anos depois], por temor do perigo de que os Cristãos, se notarem que alguém segue o Islã, talvez o matem, o deportem ou o encarcerem para o resto da vida.
Em 1904, no Rio de Janeiro, relatou-se a presença de um Islã misturado ao Candomblé, em que alufás vestidos com abadás (batas islâmicas rituais) e as cabeças cobertas com barretes vermelhos sentavam-se sobre tapetes de pele de tigre ou de carneiro para ler o Alcorão, fazer preces e rezar o rosário. Esses religiosos não comiam carne de porco e guardavam o Ramadan.
Curiosamente, nesse início do séc. 20, a separação entre os Yorubá e Malês parecia ainda existir, dentro do que era conhecido de forma comum como "terreiro", ou espaço de culto e feitiçaria, praticado por ambos os sectos. O historiador João do Rio registrou que “os alufás não gostam da gente de santo, a quem chamam de auauadó-chum; a gente de santo despreza os alufás, que não comem porco, chamando-os de malês”. Registrou-se que essas comunidades de negros “adoravam Alá, Olorun-uluá (Olorum + Alláh, um sinal forte de sincretismo) e Mariana-mãe-de-Deus (outro sincretismo). Palavras como Oxalá (divindade Yorubá associado com Jesus) também seriam uma derivação de isha-Alláh (queira Deus)".
Na culinária Baiana, ficou conhecido o arroz de Haussá, feito sem sal, óleo ou tempero e cozido com bastante água. Esse era o prato preferido do escritor Jorge Amado (1912-2001), famoso habitante de Salvador.
Nas cerimônias do Candomblé difundido a partir da Bahia, o colorido das roupas afro (inclusive em países islâmicos) ainda hoje é substituído pelo branco. De forma semelhante ao Islã, também, os sapatos são retirados antes das cerimônias, como no encontro de Moisés com Deus no monte Horeb.
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* Famoso personagem do folclore brasileiro, o Saci não deixa de ostentar um barrete Malê. Além disso, muitos envolvidos no movimento Malê trabalhavam com fumo, sendo o cachimbo outro adereço do nosso negrinho fazedor de travessuras.
** Esses pormenores foram todos obtidos de documentos de 1835, do processo contra os Malês capturados e executados pela polícia.
¹ O Império Ottomano foi uma das maiores extensões de terra sob um único Califa. Surgiu em 1299 a partir do Sultanato de Rum, na atual Turquia, e ganhou força com as unificações de reinos sob Osman/Ottoman I. Em 1453, derrotou o Império Bizantino e anexou a famosa cidade de Constantinopla, capital de Roma Oriental. Seu maior líder foi Suleiman o Magnífico (1520-1566). Em 1683, no apogeu de seu território, o Império chegou a reunir sob um único Cafifa todo o norte da África, Grécia, Sul da Rússia e o Oriente Médio. Aos poucos, o território foi se fragmentando e novas lideranças surgindo, até que a 1ª Guerra Mundial separou em definitivo as nações sob domínio Ottomano.
² O Ramadan segue o calendário lunar islâmico, que não coincide com o calendário Romano em vigor no Ocidente. Por isso, em 1835 o Ramadan aconteceu em dezembro, mas em 2020 ele ocorreu em abril.
O Ramadan é o 9º mês do calendário islâmico e a época do ano mais sagrada do Islamismo. “Ramadan” é uma palavra árabe que significa “calor intenso”. Este mês ficou conhecido desta forma por causa do clima que predominava na época em que o nome foi escolhido. Foi o período em que o profeta Mohammed começou a receber as revelações do Alcorão enquanto meditava na caverna de Hirá, em Meca. Neste mês, os Muçulmanos não devem ingerir bebidas (nem água) e alimentos, também se abstendo de relações sexuais durante o dia, entre o nascer e o pôr do sol. Além disso, devem demostrar caridade e generosidade e evitar quaisquer ações que possam levá-las ao pecado.
³ As festas de Nossa Senhora da Guia honram Maria como tutora de Jesus na Infância. É bem curioso que os textos referentes à infância de Jesus não constam há muito do ensino Cristão. Um dos principais é justamente o Evangelho de Barnabé, um livro apócrifo que participou da composição do Alcorão.
Devido ao navio da Marinha Portuguesa comandado por Theodósio Rodrigues de Faria ter chegado em Salvador com as imagens de Nossa Senhora da Guia e também do Nosso Senhor do Bonfim (representação da Ascenção de Jesus) em 1740, ambas as festas são comemoradas juntas. Ambas são cheias de elementos islâmicos e Yorubá, além de coincidirem com a data do Qadr, momento final e mais sagrado do Ramadan.
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FALHAS AO ANOTAR
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