terça-feira, 22 de setembro de 2020

As cabeças chifrudas do Cristianismo

Apollonius, o adivinho - cena do filme. Há a referência a um Apolônio de Tyana que de fato existiu e foi contemporâneo de Jesus.


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O título desse texto é uma memória do antigo filme “As 7 Faces of Dr. Lao” (1964), feito a partir do livro “O Circo do Dr. Lao” (1935). No filme e no livro, Dr. Lao era um misterioso chinês comandando um circo onde monstros dignos das fantasias gregas não eram lendas, mas sim atrações, naquele velho esquema da exposição de bizarrices. Trago aqui algo semelhante, criaturas estranhas, que são bizarrices dentro do Cristianismo. Nenhuma foi chamada assim em seu local e tempo, mas certamente são impressionantes às pessoas vivendo um Cristianismo mais próximo da Bíblia, ainda que isso seja vago e problemático.


Como uma das atrações mais fantásticas do Dr. Lao, o monstro de 7 faces, o Cristianismo é grande. No filme, o mesmo ator interpreta todas as atrações do circo, assim como o Dr. Lao. O Cristianismo também já interpretou muitos e estranhos Cristianismos dentro de si, em locais e tempos muito diferentes. Escolhi aqui algumas dessas “atrações” por seu distanciando enorme daquilo que poderíamos chamar de "bíblico". Deixarei ao final para especificar quais são, a fim de não gerar preconceitos. Chamarei essas versões de Guilherme, Clemente, Armand e Catulé. Não são nomes fictícios...

 

GUILHERME


Guilherme era um Cristianismo jovem, ainda lidando de forma conturbada com um Deus todo-poderoso que permitia a existência do mal. A despeito das Bíblia atuais, que trazem o Velho e o Novo Tratamento emendados como se fossem continuidade um do outro, Guilherme negava em completo sua conexão histórica com o Judaísmo, vendo os deuses do VT e do NT como duas figuras distintas.


No VT havia um Deus criador do mundo (Rex Mundi), mas que matava e adoecia os homens segundo seu parentesco com os Judeus, um povo detestável que perambulava por suas terras. Esse Deus inclusive produziu Satã, o enganador, sendo os dois figuras que mais ou menos se misturavam. Ele convenceu muitos anjos a se poluírem habitando a matéria.


O Deus do NT era completamente diferente. Chamavam-no de Grande Pai. Ele absorvera todos os homens como Seu povo. Não criou nada terreno, mas prometeu um Reino Celestial. Esse outro Deus, do qual Jesus fazia parte, não compactuava com a matéria. Isto é, Jesus não era realmente carnal. Por isso não nasceu de verdade, apenas tornou-se visível. Não foi batizado, nem crucificado: apenas ascendeu de volta ao Céu após ensinar sobre esse lugar diferente, onde os homens poderiam chegar. Miguel e outros anjos fiéis ao Grande Pai também permaneceram tentando convencer os homens de seu erro. Diversas vezes Miguel se metamorfoseou em uma pomba para falar aos homens e dar-lhes poder contra Satanás.


As semelhanças com o evangelho de João e com o Alcorão não são casuais. Um texto de Guilherme, chamado A Ceia Secreta, trazia Jesus contando os segredos da Criação a João Evangelista. Jesus contava, por exemplo, sobre o anjo corrompido Elias reencarnado como João Batista, cujo Batismo de água condenaria as pessoas a uma vida carnal; Ele, Jesus, por outro lado, oferecia um Batismo de Fogo, após o que teriam liberdade para voltarem ao estado de pureza. No Alcorão, Jesus também é elevado aos Céus e toda a Crucificação é uma farsa apresentada aos homens.


O Cristianismo Guilherme surgiu das aventuras Cristãs no mundo islâmico, das comunidades afastadas que absorveram textos Cristãos da época Romana, dos Zoroastras vivendo nas Montanhas Balkans (atual Bulgária) que defendiam sua fé antiga tentando traduzir ela para o Cristianismo e o Islã. Sua prática envolvia um culto ao ascetismo e pureza, para libertar o espírito do seu corpo pecaminoso.


Após um juramento público, que substitui o Batismo, os homens e mulheres podiam ser chamados de "puros" ou "perfeitos". Tal liberação finalmente devolveria os humanos ao seu estado de anjos. E assim, como anjos, deveriam viver na Terra sem divisão, sexualidade ou prazeres carnais.


Tanto o mundo terreno como os escritos dos profetas ou os Evangelhos eram vistos como altamente corruptos, criações de Satanás para distrair os homens de seu propósito angelical. Ainda assim, quase tudo em Guilherme parece uma re-elaboração de textos Cristãos... Não sabemos se Guilherme chegou a escrever seu próprio Evangelho, mas com certeza seu credo escrito existia particionado em vários textos, e deles muito nos foi contado sobre ele. Algo entre o Judaísmo Essênio, o Cristianismo e o Islã, Guilherme desprezava os escritos de Isaías mas valorizava os de Ezekiel, usava partes de João e abominava os outros evangelistas. Conhecia as cartas de Paulo, que foram produzidas pela incorporação do próprio Jesus nele, mas tinha outras cartas e o Apocalipse como demoníacos. Comiam somente verduras e peixes, não se reproduziam, não tinham ocupações fora da religião se estivessem suficientemente altos na hierarquia social.


O apelo de fé de Guilherme foi notável por um tempo. A separação radical de homens e mulheres se aliava com um comprometimento dos homens entre si e das mulheres entre si. A chance de ascender dentro desse mundo religioso através de suas ações em prol da pureza também eram atraentes, e conquistaram os camponeses. Ao invés da separação com a Igreja, Guilherme lhes permitia experimentar o Céu, ou pelo menos os níveis mais baixos deste. Sua fé desprezava a hierarquia religiosa, assim como os templos construídos. Por isso haviam feito muitos fiéis em áreas rurais, como a Macedônia e a Holanda.


Interrogatio Iohannis ou A Ceia Secreta

E mais uma vez eu, João, questionei o Senhor, dizendo: "Quando Satanás caiu, em que lugar ele morava?" Em resposta, Ele me disse: “Por causa de sua exaltação própria, meu Pai decretou sua transformação”, retirando dele a luz de sua glória. A face de Satanás era como um ferro brilhando no fogo, e todo o aspecto de seu semblante era como o de um homem. ... E ele tinha sete caudas com as quais arrancou a terceira parte dos anjos de Deus. Ele foi expulso de diante do trono de Deus e da mordomia do céu. Caindo do céu, Satanás não encontrou paz neste mundo, nem os que estavam com ele. E rogou ao Pai, dizendo: 'Eu pequei. Tem paciência comigo, e eu te pagarei tudo.' O Senhor teve pena dele e deu-lhe paz para fazer o que quisesse até o sétimo dia. Então Satanás tomou seu assento acima do mundo e deu ordem ao anjo que estava sobre o ar e ao anjo que estava sobre as águas, de modo que eles levantassem dois terços das águas bem alto no ar. Do terço restante eles formaram os mares.


Guilherme não sobreviveu aos séculos, mas produziu por algum tempo uma mini-civilização alternativa. Guilherme contava com prosperidade econômica, estabilidade de governo e mesmo uma propaganda forte contra a Igreja Católica. Claro que podemos reconhecer mesmo hoje suas partes circulando nas igrejas, mas em algum tempo ele despertou a ira da Igreja Ocidental por criar seus próprios textos-base do Cristianismo, por não pagar dízimos aos clero, por se aproximar demais do Islã e por finalmente angariar uma riqueza que Roma desejava possuir.


Guilherme acabou fulminado no meio da guerra interna do Cristianismo, que durou pelo menos 200 anos. Nessa perseguição, grande parte dos documentos foi queimada, muitas pessoas morreram (inclusive 2 reis franceses) e quase tudo o que sobrou foram ruínas, em nome do que é correto pensar sobre Jesus.



CLEMENTE


A atitude de Jesus para com os doentes sempre foi de curá-los (segundo escrito), fossem Judeus ou Romanos, ou mesmo se tratando de doenças mentais que, então, eram entendidas como possessões demoníacas. Os Evangelhos de Mateus e Lucas anunciaram fartamente as curas de Jesus, salvador enviado por Deus ante a abominação Romana. Em Atos, os apóstolos guiados por Pedro também exercem esse poder de cura. Paulo não conta sobre tais milagres em suas cartas, mas reforça o Cristianismo como prática de Judeus, Gregos e demais Gentios.


No final da recessão produzida pela fragmentação de Roma Ocidental e tomada das terras por povos guerreiros (ex. Francos, Saxões, etc), que depois foram cristianizados, a Europa estava em pleno processo de caça-às-bruxas. As árvores, lugares, animais e principalmente pessoas estavam sendo histericamente acusados por todo tipo de mal-acontecido, de ventos fortes e plantações mal desenvolvidas a dores-de-dente. Clemente era um Cristianismo participativo nesses eventos, que nos legou muitas obras sobre os poderes ocultos do mal e as formas mais incríveis de combater ele, como escrever versículos em papéis e rechear sua roupa com eles. Em especial para nós aqui, os Cristãos da época decidiram que muitos animais (além das serpentes) eram canais do Diabo para esse mundo. Os gatos, por exemplo, eram mortos tanto por serem portadores do mal quanto por seu sacrifício ser um talismã contra o mal (gato morto significava algo bom).


Em algum momento, o comércio Ocidental ressuscitou. Infelizmente, nessa época, um excesso de aridez na região dos Mongóis, na Ásia Central, fez os ratos portadores de pulgas com uma bactéria mortal migrarem para os campos e casas das pessoas. Os Mongóis levaram a bactéria para o litoral da China, em carregamentos de grãos que foram vendidos para a Índia, Arábia e Constantinopla. Enquanto metade do Islã perecia da doença Hindi, infectados pela população grande de pulgas compartilhadas entre humanos e animais, Constantinopla era o centro do Ocidente, e de seu grande porto a bactéria foi levada para Síria, Egito e Rússia.


Os Muçulmanos e Egípcios a levaram para o norte da África e a parte islâmica da Espanha. Em menos de 50 anos, a Praga alcançou a Britânia, Escandinávia e Germânia. Como as pulgas hospedeiras eram habitantes dos ratos e humanos, e as más condições de higiene aumentaram o preço a ser pago. Mais ou menos metade de toda a população da Ásia e Europa morreu. Na Itália e França, centros importantes do Cristianismo, isso chegou a 80% dos habitantes. O célebre livro Decameron (uma fantástica novela de 100 capítulos escrita por Giovanni Boccaccio) conta sobre as pessoas se isolando no campo, fugindo das cidades atulhadas de cadáveres.


Clemente era um Cristianismo hospedado dentro dessa Europa em desespero, no tempo em que a Ciência postulava um alinhamento de planetas atraindo vapores nocivos de dentro da Terra, e recomendava como proteção tudo que tivesse aroma forte - de latrinas a alho e rosas. Clemente culpou os Judeus por aquilo tudo que estava acontecendo. Os Judeus se diziam o povo de Deus e haviam matado Jesus. Eles habitavam as terras da Europa desde antes da conversão dos povos ao Cristianismo. Eles rejeitaram o Cristianismo. Logo, estavam espalhando venenos pelo mundo, para eliminar os Cristãos.


Podemos pensar em cultos nas igrejas das planícies Européias exaltando as pessoas sobre matar os Judeus nas ruas. Isso aconteceu. Haviam estátuas de Judeus devorando crianças vivas. Uma cidade chegou a trancafiar 900 Judeus num prédio, que foi incendiado, como medida preventiva - a peste ainda não havia chegado lá. Embora o líder máximo dos Clemente nomeasse a Praga como ira de Deus, um movimento de flagelantes logo roubou sua credibilidade.


Os Flagelantes eram Cristãos que iam de cidade em cidade, moíam seus corpos a golpes de chicote e lâminas, pedindo perdão de Deus para com os habitantes. Eles têm seu par no Islã Shiita. Seu número crescia a cada lugar que passavam. Não raro eram os Flagelantes que animavam a população para a matança dos Judeus. Suas idas e vindas entre as cidades, assim como a aglomeração de camponeses que os seguiam em Procissão foram fortes propagadores de Praga, até bem depois que ela estava desaparecendo.


Os Judeus eram rotineiramente suspeitos de envenenar poços, assassinar crianças em ritos secretos e praticar várias formas de magia para ferir ou matar Cristãos. 


"[Os habitantes da cidade] Pedindo a expulsão dos Judeus, afirmaram que seu perigo para a comunidade se estendia muito além de um ocasional assassinato de crianças, pois eles secam o sangue que assim obtêm, moem até virar pó e o espalham nos campos cedo de manhã, quando há forte orvalho no solo; então, em três ou quatro semanas, uma praga atinge os homens e o gado, num raio de meia milha, de modo que os Cristãos sofrem severamente enquanto os ardilosos Judeus permanecem em segurança dentro de casa".


A Praga só abrandou na medida em que faltaram pessoas para ser infectadas e o trabalho com grãos nos campos diminuiu. Nem as perseguições, nem os Flagelantes deixaram versões escritas desse novo Evangelho de acusações, mas as acusações e execuções foram guardadas pelos historiadores. A onda selvageria, mortes e auto-violência que se espalhou na França, Holanda, Alemanha, Áustria e Itália só foi menos cruel que a Praga, pela qual culpavam uns aos outros. Mais recentemente, os acusados pelo mundo têm sido os Comunistas, Umbandistas, Gays e Palestinos; e ainda hoje Clemente fala nas igrejas.



ARMAND


Armand se concretizou como um dos famosos e numerosos filhos do Cristianismo com a Monarquia. Bem perto da cidade de Richelieu, centro de uma região da França imperial pertencente à família dum poderoso religioso e político, formou-se um convento das irmãs Ursulinas. A Madre Superiora do convento, que não chegara ainda aos 30 anos, foi indicada pelo mesmo religioso que construiu a cidade, e seu nome era Jeanne des Anges.


Foi a Madre Superiora e os exorcistas mandados pelo rei quem registrou os relatos das freiras ali. Basicamente, um homem bem vestido começou a ser visto nos arredores, depois dentro do convento. Por fim, o homem apareceria às freiras à noite, até dentro dos clautros, fazendo propostas de sexo. Algumas freiras começaram a ter convulsões, se contorciam pelo chão, falavam em idiomas desconhecidos e eram tomadas de súbita lascívia, combinada com gritos e ofensas.


Havia uma ciência medieval de reconhecimento das possessões demoníacas. Desde o ano 1400, os demônios deixaram de ser tentadores do espírito para se tornarem agentes físicos de incesto, sodomia e infanticídio. Constuiu-se uma comissão para investigar as possessões no convento de Loudun. Observavam-se ali o conhecimento de língua estrangeira, clarividência e força sobre-humana. Todos eram atributos necessários a um demônio (e também celebrados como dons do Espírito, ver Marcos 16.17-18, 1ª Coríntios 12.7-10).


Des Niau, The History of the Devils

Elas passavam de um estado de quietude para as mais horrendas convulsões, sem aumento da pulsação. As freiras possuídas batiam com força no peito e na cabeça, por vezes saltavam no ar ou se atiravam contra as paredes agitando os braços em devaneio. Se feriam nessas demonstrações de loucura. Quando terminavam exauridas, ficavam imóveis, deitadas sobre o estômago com as palmas das mãos tocando o chão. O rosto transfigurado por um tormento interno. Os olhos piscando e a boca abrindo e fechando, por vezes proferindo obscenidades. As línguas terrivelmente inchadas, enegrecidas e duras por vezes se mostravam cobertas de verrugas. Elas proferiam horríveis gritos tão altos que ninguém conseguia ficar no mesmo aposento que elas. O comportamento delas era indecente e tão indecoroso que causaria constrangimento no mais depravado dos homens, enquanto seus atos, expondo e convidando aqueles presentes causava enorme repulsa. Nem mesmo nos mais baixos antros e bordéis se via algo semelhante. Elas amaldiçoavam a Trindade e os Santos, fazendo uso de palavras tão execráveis que jamais poderiam ter surgido na mente de pessoas sãs.


Esse relato bastante convincente foi colhido por uma das autoridades, que depois revogou várias partes dele. A própria Madre Superiora hospedava então 7 demônios, entre eles um alojado em sua testa, um abaixo da última costela em seu lado direito, outro na base de seu estômago. O mapa das correspondências entre hierarquias diabólicas e as residências fisiológicas de demônios constituía a certificação de quem analisava o caso. Foram feitos vários exorcismos, até que Loudun se tornou uma espécie de palco onde milhares de pessoas iam para ver a luta-livre do bem contra o mal. E então uma das freiras possuídas disse o nome do pároco Urbain Grandier.


Grandier presidia uma igreja próxima e tinha um histórico de vida repleto de deslizes com mulheres, todos encobertos pela família capaz de pagar as autoridades e seus julgamentos. E, mais interessanteu ainda, era um opositor político dos Richelieu indicado como futuro bispo da região. As provas contra ele eram um erótico buquê de rosas deixado no dormitório das moças (segundo o demônio que deu tal confissão durante o ritual) e um juramento formal de lealdade dele ao diabo, escrito com sangue, que a Madre Superiora (?) apresentou aos exorcistas. Pareciam provas conclusivas? Verdade como esse bilhete, claro que sim.


Grandier foi preso por bruxaria e torturado até se extrair dele uma confissão de ser o responsável por tudo o que ocorrera no convento de Loudun. A presença de uma mordida de animal em sua pele e uma verruga no pênis fecharam a conclusão de que Grandier se relacionava com demônios. Quando as provas foram questionadas, os juízes ordenaram que qualquer pessoa tentando defender o padre seria preso e acusado junto. E isso mediante um documento do cardeal de Richelieu, assinado pelo próprio rei Louis XIII, que dava prioridade aos religiosos nessa questão em particular. Grandier morreu queimado na fogueira em 1634.


Os exorcismos no convento duraram por mais 4 anos. Então Jeanne des Anges alegou terem aparecido escritos na sua mão os nomes de Jesus, Maria, José e Francisco de Sales, santo que tinha sua tumba milagrosa perto dali. Após uma peregrinação ao local, as possessões cessaram. Ela deixou suas memórias para a posteridade, escritas em Paris, onde ela foi viver sob a proteção do cardeal de Richelieu.



CATULÉ


Essa é a ocorrência mais recente, e não menos bizarra dentro da estranha história do Cristianismo. Tudo começou com 10 famílias aparentadas entre si, estabelecidas numa clareira da mata chamada Catulé, na fazenda de Minas Gerais chamada São João da Mata/Itatiaia. Os mais velhos, da 1ª geração, tinham por volta de 40-65 anos e vieram após os filhos, com 20-30 anos, a maioria já carregando suas crianças com aprox. 5 anos.


Dois desses colonos converteram-se à Igreja Adventista da Promessa, que descende da Igreja Adventista do Sétimo Dia e, assim, do movimento Millerita nos EUA. Os Milleritas previram a data do retorno de Cristo no séc. 19 e, falhando nisso, instituíram diversos profetas para os direcionarem, sendo o mais famoso Hellen White. Tal denominação não é muito diferente de outras Protestantes, senão pela observância do Sábado, diretrizes alimentares, o seguimento de profetas contemporâneos e a crença de que o perdão da Humanidade por Jesus se iniciou exatamente em 1844. Os colonos convertidos começaram a converter os demais e tornar o grupo altamente religioso, ao que um missionário da igreja foi mandado para lá. No entanto, os dois já haviam adquirido status de líderes e não foram suplantados. E entre eles já existia uma hierarquia, também.


Joaquim, o líder, entrou em conflito com o membro mais velho do grupo, e que era seu antigo líder. O desentendimento evoluiu para o testemunho do Espírito Santo em favor de Joaquim. Em algum tempo, Joaquim começou a castigar fisicamente outros do grupo, em público, para afugentar Satanás, que havia entrado neles.


Mal tinham começado a dispersar-se quando Geraldo R. dos S. gritou que Satanás aparecera no seu terreiro. Todos correram para ver, e ele indicou um pedaço de rapadura dizendo que surgira misteriosamente. Interrogado por nós sobre as razões que o induziram a pensar que a rapadura tivesse conotações demoníacas, não conseguiu explicá-las, e admitiu que podia ter sido roubada pelo gato e depois deixada no terreiro. Em todo o caso, naquela noite, após as tumultuosas experiências da reunião, depois que Maria dos Anjos fora acusada de ter o diabo no corpo, parece que era suficiente para Geraldo ver a rapadura num lugar fora do comum para atribuir a culpa ao demônio.


Os membros do grupo religioso logo começaram a apontar o demônio uns nos outros, em cães, galos, etc. Assim como na época da caça-às-bruxas, um dos poucos meios de provar que o demônio não estava em si era apontá-lo em outro. Joaquim em especial tirava pessoas da cama na madrugada para exigir que se humilhassem uns perante os outros, e também os agredia para expulsar os demônios, sem aviso prévio. Isso evoluiu para violências contra crianças e assassinatos das mesmas na frente de todos.


Um novo passo do grupo foi trocarem seus nomes, mais ou menos como Jesus fazia. Joaquim passou a ser Elias. Apareceram também Eucride e Paulo. Conflitos amorosos de Joaquim passaram a ser tratados com exorcismos e humilhações, enquanto Satanás passava ao gato, a uma criança, um pano, uma verruga, etc. Embora a seita formada ganhasse força entre os adeptos, a distância e falta de relações entre as comunidades rurais da época mantiveram ela restrita ao Catulé. Ali, ao prazo de alguns dias, os acontecimentos tornaram-se cada vez mais assombrosos.


Apontava ora à direita ora à esquerda, dizendo: Ele vem aí. E como os outros nada vissem, acusou-os de pouca fé. Enquanto olhava para o alto, Joaquim começou a assoviar, depois parou e disse: “Vocês não sabem que assovio é este”. Pediu que o imitassem, mas ninguém o conseguiu. Ordenou então que fechassem os olhos; quando ele parasse de assoviar deveriam abri-los e ele fecharia os seus. Dado o sinal, viram que as nuvens se espalhavam e as estrelas se juntavam para mostrar o lugar onde ficava a Cidade Celeste de Canaã.


Joaquim foi até Conceição, pegou-a no colo e repetiu-lhe a mesma pergunta, acrescentando: “Revela o meu verdadeiro nome”. Conceição respondeu: “O seu nome é Jesus”. Largando a menina, aproximou-se de Maria, mulher de Sebastião, perguntou-lhe se estava disposta a pagar qualquer preço pela salvação. Maria aceitou, e Joaquim ordenou-lhe que jogasse na mata o filho que trazia nos braços. Maria relutou em obedecer: era um preço muito alto. Joaquim pegou a criança e atirou-a para longe. ... Joaquim agarrou a criança e estrangulou-a. Artuliana declarou que todos os filhos de pessoas “casadas no padre” tinham Satanás no corpo.


De repente, os que estavam em casa de Cristina viram Joaquim sair da cozinha e entrar no quarto de Onofre onde, sentando-se à beira da cama, com as costas contra o muro, começou a masturbar-se. Quis que todos vissem o que era o pecado. ... Joaquim levantou-se e, pondo uma mão nos olhos e a outra nos órgãos genitais, saiu para o terreiro andando na ponta dos pés. Lá masturbou-se diante dos que tinham ficado do lado de fora repetindo que todos deviam ver o que era o pecado. Entrando de novo em casa confessou que se masturbava “em louvor de Germana”, mas era pecado fazer do homem mulher e da mulher homem, por isso estava perdido. 


Joaquim pousou a sua Bíblia no meio do terreiro e espalhou milho ao redor; depois matou as galinhas e os pintinhos que não se aproximavam para comer. Mostrou a Bíblia também às galinhas, cães e gatos, matando a pauladas os animais que, assustados, fugiam.


Após esse período de crescente inquietação geral, ocorreu de o mais velho do grupo chamar a polícia. A chegada dos policiais juntou ao caso ainda outras mortes, entre elas Joaquim.


Há muitos indícios, na narrativa construída por pesquisadores, bem mais tarde, para se supor um caso de delírio psicótico. No entanto, os demais membros do grupo, à excessão dos mais velhos, uniram-se no delírio de Joaquim a ponto de abandonarem suas identidades e compactuar no assassinato dos próprios filhos. Uns 23 anos depois ocorreria o massacre de Jonestown, não? Não tão longe assim do que se passou em Catulé, ainda vemos por aí, rondando às vezes, um Cristianismo de imitação cega. Somos então presenteados com bizarrices do universo religioso, no qual não apenas um líder estranho participa, mas toda sua comunidade. Eventos desconexos com a cultura local, com o bom senso e, mesmo 2000 anos mais tarde, ainda desconexos com a religiosidade do NT.



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Guilherme era um nome  comum entre os nobres do Sul da França, na fronteira com a Itália. Ele faz referência ao movimento religioso conhecido como Bogomils (esse era um antigo título de sacerdote) ou mais popularmente Cátaros. São conhecidos do séc. 10 ao 13 como estrutura religiosa, mas movimentos populares e a literatura do Leste Europeu mostram sua atividade até o séc. 18 e possivelmente até hoje. Guilherme representa o Cristianismo se remodelando por fatores culturais e tentando corrigir problemas internos (no caso, a hierarquia de poderes e riquezas dentro da Igreja), a despeito de sacrificar e re-escrever seus próprios textos sagrados. A ação da Igreja contra a região de influência dos Cátaros foi uma re-afirmação da hierarquia e poder, empreendendo uma guerra de conquista e genocídio.


Clemente VI foi o papa Católico durante a Peste Negra (1346-1353). Embora o alto clero fosse contra as medidas de perseguição e os Flagelantes, obviamente houve uma perda de controle sobre as pequenas paróquias. No fim, a Praga diminuiu tanto o poder da Igreja, vista como incapaz de parar o castigo divino, que favoreceu a quebra do Sistema Feudal e a Reforma Protestante. O movimento popular enfrentado pelo papa Clemente representa o Cristianismo mais "figadal", que passou de minoria perseguida a maioria perseguidora, pronta reunir multidões para exterminar os mais fracos. Reparemos que, em nenhum ponto do NT, nem Jesus, seus seguidores próximos, Paulo ou as comunidades fundadas por ele, jamais viveram tal situação de se direcionarem a esmagar minorias. Ao contrário, costumavam ser eles a minoria. E, entre os convertidos ao Cristianismo em suas 1as gerações, estavam sobretudo os Judeus. 


Armand Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu, Duque de Richelieu e de Fronsac foi um político francês, primeiro-ministro de Luís XIII entre 1628 e 1642. Ficou famoso como vilão fictício no livro Os Três Mosqueteiros, de Victor Hugo, muito tempo depois. Aqui, Armand representa um Cristianismo teatral, perfeitamente alinhado com manipular as opiniões populares em prol de interesses políticos.


Os eventos em Loudun foram relatados pela Madre Superiora, ela mesma acusada de possessão demoníaca, e por uma série de exorcistas que revogaram ou quiseram modificar suas versões, posteriormente. O posicionamento das autoridades em todo o tempo sugere uma “sombra” do Cardeal conduzindo os eventos, tanto sua ocorrência quanto as testemunhas e os julgamentos. De fato, ele aumentou muito sua popularidade nessa época, além de convenientemente esmagar adversários políticos. Tais alianças da Igreja, após a Revolução Francesa (1789) e após a Revolução Russa (1917-1923) conduziram diversas nações a repelir a participação religiosa nos governos. No caso da Rússia, chegou mesmo a haver um “expurgo” de toda atividade religiosa.


Catulé é o nome de um lugar, onde se passou uma estória digna de filmes de terror. Os acontecimentos em Catulé se deram entre set/1954 (fundação da seita, ainda como grupo da IAP) e abr/1955. Foi na última semana desse período que as mortes aconteceram. A imprensa da época teceu toda espécie de explicações, geralmente envolvendo pobreza, atraso, ignorância, superstição, loucura e ingenuidade dos protagonistas, em suas manifestações de “fanatismo” e “delírio coletivo”. A Igreja Católica emendou nisso o erro de interpretações não autorizadas da Bíblia, ludibriando os ignorantes com promessas de salvação fácil. A Igreja Adventista do Sétimo Dia também se manifestou, na época, advertindo os chefes “divisionistas” das consequências de seu “desejo de mando, ignorância, má-fé, falta de base bíblica, complexos ou insatisfação pessoal”.


O “Jesus do Catulé” em que Joaquim se transformou exigia obediência, mas oferecia também provas de seu poder, “fazendo milagres” e “curando os enfermos” à sua maneira, com cuspes e fazendo sarar cansaços. Quando a força policial chegou ao lugar, encontrou todos banhando-se ritualmente numa cacimba da mata, olhando para as estrelas. Tratava-se, assim, de um reprodução do início do Cristianismo. Os Evangelhos, entretanto, não nos mostram Jesus combatendo os portadores de demônio (e, diga-se, a Tentação em Lucas 4 é a única aparição do diabo em todo Novo Testamento, e a cena teatral do início do livro de Jó é a sua única aparição no Velho Testamento). Todas as derivações do Cristianismo, entretanto, enveredaram por essa caça ao demônio. As ocorrências em Catulé são uma boa representação disso.


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TEXTOS QUEIMADOS QUE NUNCA FORAM ESCRITOS


CASTALDI, Carlo. A aparição do demônio no Catulé. Tempo Social, v. 20, n. 1, p. 305-357, 2008.

DA SILVA QUEIROZ, Renato. O demônio e o messias: notas sobre o surto sociorreligioso do Catulé. Revista USP, n. 82, p. 104-127, 2009.

Dia do Grande Desapontamento - wikipedia

Hoyos FM, As pandemias e o fantasma do medo, ihu.unisinos.br, mar/2020.

Interrogatio Johannis, gnosis.org

Johnson A, Did Pope Gregory IX order a medieval purge of black cats that caused the Black Death?, museumhack.com, fev/2020.

King in Yellow, O horror de Loudun - o sinistro caso das freiras possuídas, mundotentacular.blogspot.com, set/2020.

Mark JJ, Religious responses to the black death, ancient.eu, abr/2020.

McDonald J, Cathars and Cathar beliefs in the Languedoc, fev/2017.

Olson RW, O Juízo investigativo nos Escritos de Ellen G. White, centrowhite.org.br

Stephenson CE, The possessions at Loudun, Looking Back, v. 27, n. 2, p.132-135, 2014.

The Black Death - A catastrophe in Medieval Europe, Bill of Rights in Action, v. 26, n. 2, 2010.


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