Existem sincretismos que fazem a gente pensar. Lá nos sécs. 18 e 19, quando não se sabia do Brasil que tinha a maior quantidade de pessoas escravizadas de todo o mundo, os Yorubás, Bantus, Malis e seus descendentes por aqui eram obrigados a disfarçar seus cultos em santos Católicos. Isso funcionava dos dois lados: os negros colocavam imagens Católicas nos locais de culto dos Orixás e Voduns, e atraíram brancos para suas práticas culturais. De outro vento, os religiosos Católicos usavam os santos bem quistos para converter negros; os mais ousados até camuflavam grupos afro contra a repressão escravagista.
No imaginário Católico, um santo é alguém "tocado por Deus", homem ou mulher que passou para outro estágio da existência, capaz então de subjugar coisas mundanas como fome, doenças, dor ou morte. O santo pode. São Sebastião já morto curava cidades inteiras afligidas pela peste. Estar perto de um santo significa estar sob proteção, com suas circunstâncias de vida influenciadas por seu poder e a bênção divina. Algumas pessoas foram batizadas quando pequenos em nome de um santo, talvez com o nome dele, para estarem sempre protegidos. Muitas vezes, porém, aproximar-se do santo requereu algum sacrifício ou prova de fé, retribuídos sempre "em alta conta" pelo poder celestial.
No lado Yorubá, o Orixá também é um ser espiritual, uma força da natureza com características muito humanas como sensibilidade a sabores, estética de roupas e músicas. Iansã é briguenta, senhora das tempestades, gosta de acarajé e vermelho. Estar próximo a um Orixá significa estar protegido por ele, mas também governado por suas preferências e, dependendo da tradição, incumbido de fornecer temporariamente seu corpo para que ele se manifeste fisicamente. Algumas pessoas nasceram destinadas a um Orixá, outras se aproximam deles mediante sacrifícios ou provas de fé, a serem pagos largamente pelos favores da entidade (para sua comunidade, não necessariamente para o indivíduo).
Para obter os favores de Maria, mãe de Jesus inclusive no Alcorão, muitas casas ainda têm pequenos oratórios dentro ou fora da residência, que ficam iluminados à noite. Foram levantadas muitas igrejas "Notre Damme" ou Nossa Senhora de algum lugar. Na história do Brasil, o próprio movimento de independência foi abençoado pelo santuário de Nossa Senhora Aparecida, que daria proteção aos revolucionários. Por isso, Ela hoje tem o cargo de padroeira (não seria Madrinha?) do país. Padroeira significa protetora. E os nomes José, Maria, Marcos, Lucas, Paulo, Daniel, Paulo, etc sempre estiveram acima dos Enzos nas contagens do IBGE. Não só aqui, mas em todos os países de tradição Católica onde nasceram crianças dedicadas aos santos, para que sua vida tivesse algo a ver com eles e recebessem, do outro lado, a Sua proteção. Nos locais mais tradicionais, são feitos jejuns e festas dedicadas a tais seres que agem em nome de Deus enquanto vivos e/ou após a morte. Falaremos um pouco da festa de Santo Antônio.
Essa festa, curiosamente, coincide com a festa de Exú no Candomblé. Sim, aquele Exú que as igrejas muitas vezes chamam por diabo. Não é legal essa associação. Nem é fácil buscar por Exú numa IA da vida sem receber isso. o Exú-diabo vem de missionários bem Cristãos que guiavam os caçadores de escravos em suas empreitadas na antiga Oyó. Se alguma entidade era invocada contra os caçadores (e os padres junto), devia ser um demônio. Exú era esse ser. O Candomblé brasileiro nunca existiu na África, ele nasceu da reunião de crenças monoteístas diferentes, buscando enquanto escravizados, do outro lado do Atlântico, o que podiam ter em comum. E nenhum deles tinha um diabo! Mas diversas tradições tinham uma espécie de Loki, ou deus travesso da noite, que inoportunamente se diverte com pequenas desgraças alheias. Esse Exú mais abrasileirado, talvez filho do Exú africano com os espíritos indígenas, sem dúvida poderia ser o Saci. Ambos têm seu lugar até hoje na mitologia sertaneja. Mas não é o Saci que se reverencia nos terreiros, e sim alguém que estranhamente é deixado do lado de fora das reuniões, como uma espécie de segurança. Não faltam canções sobre Exú na porteira ou na entrada da Kalunga (nõ a rede de papelarias, mas o espaço onde andam os espíritos).
Louvam Exú, mas têm medo de Exú. Se você encontrar oferendas de Candomblé numa cidade, dentre todos os Orixás a quem se cultua, há boa chance de ser algo para conseguir os favores de Exú ou de sua versão feminina, a Pombogira. Exú é pop. Nas encruzilhadas, o "povo de santo" deixa bebidas (cachaça para Exú, champagne para Pombogira), velas pretas ou vermelhas, charutos ou cigarros, pimentas, farofa com dendê, talvez uma galinha preta (já vi frango, de cor indecifrável depois de assado) e enfeites vermelhos. Imagine se Santo Antônio, no seu dia de finalmente escapar do copo ou vaso onde o colocaram em tortura de cabeça para baixo dentro da água, tropeçasse em algo assim! Se você tropeçar também, não se assuste. Exú se agracia das oferendas e de respeito, mas não é bicho que morde.
Já Santo Antônio, esse português que nasceu chamado Fernando, era um homem do séc. 13. Isso significa que ele viu camponeses e também cidades surgindo ao redor das antigos fortalezas de pedra, onde trabalhavam alfaiates, ferreiros, padeiros, contadores, banqueiros, etc. Para ter alguma prosperidade, você precisava nascer nobre, se meter em guerras como soldado para conquistar territórios, ou entrar para a Igreja. Nosso Fernando conseguiu ser aceito para os Agostinianos, monges que pegavam o afastamento de todos os prazeres carnais. Depois ele mudou para o bando dos Franciscanos, que pregavam a humildade e pobreza. Quando renunciou a sua identidade e tudo mais, ganhou o nome de Antônio. Foi na terra de São Francisco (Itália!) que ele pregou, confrontou e pacificou "hereges" como os Muçulmanos, que tinham reinos no sul da Espanha e Portugal. Sua última morada foi Pádua, onde se tornou confessor e as pessoas por ali começaram a anunciar visões do Céu após contarem seus pecados a ele. Morreu doente, Deus já o tem, mas os milagres continuaram a ser relatados. Em alguns anos, sua tumba virou local dos peregrinos Católicos.
Louvam Exú, mas têm medo de Exú. Se você encontrar oferendas de Candomblé numa cidade, dentre todos os Orixás a quem se cultua, há boa chance de ser algo para conseguir os favores de Exú ou de sua versão feminina, a Pombogira. Exú é pop. Nas encruzilhadas, o "povo de santo" deixa bebidas (cachaça para Exú, champagne para Pombogira), velas pretas ou vermelhas, charutos ou cigarros, pimentas, farofa com dendê, talvez uma galinha preta (já vi frango, de cor indecifrável depois de assado) e enfeites vermelhos. Imagine se Santo Antônio, no seu dia de finalmente escapar do copo ou vaso onde o colocaram em tortura de cabeça para baixo dentro da água, tropeçasse em algo assim! Se você tropeçar também, não se assuste. Exú se agracia das oferendas e de respeito, mas não é bicho que morde.
Já Santo Antônio, esse português que nasceu chamado Fernando, era um homem do séc. 13. Isso significa que ele viu camponeses e também cidades surgindo ao redor das antigos fortalezas de pedra, onde trabalhavam alfaiates, ferreiros, padeiros, contadores, banqueiros, etc. Para ter alguma prosperidade, você precisava nascer nobre, se meter em guerras como soldado para conquistar territórios, ou entrar para a Igreja. Nosso Fernando conseguiu ser aceito para os Agostinianos, monges que pegavam o afastamento de todos os prazeres carnais. Depois ele mudou para o bando dos Franciscanos, que pregavam a humildade e pobreza. Quando renunciou a sua identidade e tudo mais, ganhou o nome de Antônio. Foi na terra de São Francisco (Itália!) que ele pregou, confrontou e pacificou "hereges" como os Muçulmanos, que tinham reinos no sul da Espanha e Portugal. Sua última morada foi Pádua, onde se tornou confessor e as pessoas por ali começaram a anunciar visões do Céu após contarem seus pecados a ele. Morreu doente, Deus já o tem, mas os milagres continuaram a ser relatados. Em alguns anos, sua tumba virou local dos peregrinos Católicos.
Pra variar muito dentro do Catolicismo, parece que Santo Antônio foi mais ativo morto do que vivo. A famosa Legenda Aurea, um livro antigo pouco popular que conta as histórias de santos mais antigos ainda, diz que ele "vendeu todos os seus bens, distribuiu-os aos pobres e levou uma vida eremítica. Teve, por isso, de suportar incontáveis tormentos da parte dos demônios". Ele teria falado a Jesus: "Onde você estava, bom Jesus? Onde estava? Por que não estava aqui desde o começo para me socorrer e curar minhas feridas?". Nesse livro, as façanhas Cristãs de Santo Antônio foram muitas. Viagens por desertos (portugueses, espanhóis ou italianos?), pratos de prata enfeitiçados, recomendações sobre "monges que ficam fora da sua cela" e "perdem a resolução que tomaram de viver em retiro", tentações que "vêm da natureza", do excesso de alimento, ou demônio. Ele seria um fervoroso um adepto do "Ore et laborum" beneditino, "Orar e trabalhar", que supostamente combatia os Arianos, que viveram muito antes dele. Só para dar uma idéia de que escreveram o que quiseram do amigo Antônio.
Cá no Brasil, as estórias sobre Santo Antônio chegaram com os portugueses. Ajudador dos pobres, ele ficou associado à doação de pães (algo que um monge franciscano certamente faria). Vide Júlio Lancelotti. Ele até aparece retratado com montanhas de pães. Diz-se que ele ajudava moças da Itália a reunir dotes para seu casamento. Até ganhou fama uma estória onde certa moça achou o amor de sua vida ao atirar a imagem do santo pela janela e atingir um estranho que passava. Haha.
As fogueiras eram uma tradição do verão pastoril italiano (e no Brasil é inverno, então está tudo certo) para retirar os carrapatos das cabras. Olha Antônio aí. Também era época boa para casamentos, com as noites quentes, os rebanhos grandes e os animais gordos. Nessa felicidade toda, Exú também poderia aprontar as suas... Se passou lá, não sei. Apenas aconteceu de ele (o santo) morrer numa época quente e de dias longos, e sua tumba ser frequentada. Lugar santo. Nada estranho para a época. Bem para o sul da Itália e do outro lado do mar, os Yorubrasileiros viam os dias diminuindo, até chegarem ao mínimo por volta de 23/junho. Era a estação mais seca do ano, quando o gado passava sede, as lavouras minguavam e o mato às vezes pegava fogo. Nada estranho atribuir a data a uma entidade do fogo e dos mortos, que ficava mais forte com as noites longas.. Exú! Aquele que anda entre os mundos, que leva os pedidos dos homens aos Orixás, que se coloca nas encruzilhadas para colher os pagamentos aos Orixás. Lá na antiga Oyó, hoje Nigéria, os praticantes da religião ancestral que sobraram celebram o dia de Exú em 24 de Dezembro, sua época mais seca do ano e também um equinócio, mas de verão. Calor pegando em época sem ar-condicionado, por aqui, o culto de Exú tropeçou em Santo Antônio.
Fogueira daqui, era para o santo. Fogueira de lá, era de Exú. A interpretação dependia de quem fazia e de quem via. Se ninguém dissesse, quem saberia? Missa aqui, terreiro acolá, e o Exú precisava ficar escondido da polícia. Se pegasse, quebrava, batia, matava. Embaixo da mesa, às vezes tinha um Santo Antônio para ir para cima, e Exú para baixo, quando a polícia chegava. Se o lugar era aberto, Santo Antônio ficava lá direto. Até recebia as oferendas de Exú, pois era época de distribuir comida. Pães para o santo, farofa com dendê e pimenta para o orixá. Um que andava entre os mundos e outro que se metia entre os povos, arrumando uma forma de ajudar. Os pedidos para Exú costumam ser de orientação a respeito de questões difíceis, para o que os seres de outro mundo eram convocados. Nada mais cabível e compartilhável com um santo famoso pelas visões celestiais.
Essa mistura que não é só o Brasil quem faz, mas todos os países latinos e inclusive os africanos (que receberam, alguma hora, um certo Santo Antônio). Os dias se coincidiram os santos se encontraram. Enquanto uns faziam homenagens para Exú, outros faziam para Antônio. Bem parecidas. Ambos de noite, com fogo e oferendas. Uns para receber conselhos nos sonhos e ter virilidade, outros para ver os céus em sonhos, ou se casar. Nalgum canto, na grande terra de mestiços que Dr. Guevara falava, penso que podem estar dando boas risadas disso.
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As fogueiras eram uma tradição do verão pastoril italiano (e no Brasil é inverno, então está tudo certo) para retirar os carrapatos das cabras. Olha Antônio aí. Também era época boa para casamentos, com as noites quentes, os rebanhos grandes e os animais gordos. Nessa felicidade toda, Exú também poderia aprontar as suas... Se passou lá, não sei. Apenas aconteceu de ele (o santo) morrer numa época quente e de dias longos, e sua tumba ser frequentada. Lugar santo. Nada estranho para a época. Bem para o sul da Itália e do outro lado do mar, os Yorubrasileiros viam os dias diminuindo, até chegarem ao mínimo por volta de 23/junho. Era a estação mais seca do ano, quando o gado passava sede, as lavouras minguavam e o mato às vezes pegava fogo. Nada estranho atribuir a data a uma entidade do fogo e dos mortos, que ficava mais forte com as noites longas.. Exú! Aquele que anda entre os mundos, que leva os pedidos dos homens aos Orixás, que se coloca nas encruzilhadas para colher os pagamentos aos Orixás. Lá na antiga Oyó, hoje Nigéria, os praticantes da religião ancestral que sobraram celebram o dia de Exú em 24 de Dezembro, sua época mais seca do ano e também um equinócio, mas de verão. Calor pegando em época sem ar-condicionado, por aqui, o culto de Exú tropeçou em Santo Antônio.
Fogueira daqui, era para o santo. Fogueira de lá, era de Exú. A interpretação dependia de quem fazia e de quem via. Se ninguém dissesse, quem saberia? Missa aqui, terreiro acolá, e o Exú precisava ficar escondido da polícia. Se pegasse, quebrava, batia, matava. Embaixo da mesa, às vezes tinha um Santo Antônio para ir para cima, e Exú para baixo, quando a polícia chegava. Se o lugar era aberto, Santo Antônio ficava lá direto. Até recebia as oferendas de Exú, pois era época de distribuir comida. Pães para o santo, farofa com dendê e pimenta para o orixá. Um que andava entre os mundos e outro que se metia entre os povos, arrumando uma forma de ajudar. Os pedidos para Exú costumam ser de orientação a respeito de questões difíceis, para o que os seres de outro mundo eram convocados. Nada mais cabível e compartilhável com um santo famoso pelas visões celestiais.
Essa mistura que não é só o Brasil quem faz, mas todos os países latinos e inclusive os africanos (que receberam, alguma hora, um certo Santo Antônio). Os dias se coincidiram os santos se encontraram. Enquanto uns faziam homenagens para Exú, outros faziam para Antônio. Bem parecidas. Ambos de noite, com fogo e oferendas. Uns para receber conselhos nos sonhos e ter virilidade, outros para ver os céus em sonhos, ou se casar. Nalgum canto, na grande terra de mestiços que Dr. Guevara falava, penso que podem estar dando boas risadas disso.
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Tem pouca coisa mesmo
Dia de todos os santos - Educa Mais Brasil, 07/03/19.
Exu e Santo Antonio - O sincretismo, Diário da Região, 10/06/25
Legenda Aurea, Jacopo de Varazze.
São Sebastião e Oxóssi no nordeste, lougecuiaba.blogspot.br, 09/06/24.
Santo Antônio, vaticannews.va, 06/2018.