Sincretismos. Essa palavra tão acadêmica é usada para indicar que um conhecimento ou uma cultura foi traduzido (erroneamente) dentro de outra, literalmente dando aos elementos de um lado a funcionalidade dos elementos do outro lado. Mais ou menos como substituir o açúcar por sal, porque são bem parecidos.
Um exemplo atual e prático de sincretismo é o Dia-das-bruxas. A data de 31/10 é uma data religiosa do antigo calendário Celta (Gália/Espanha, séc. 3 a.C.), chamada Samhain, que coincide com o Dia-de-los-muertos no México (01/11) e o Dia-de-finados no Brasil (02/11), ou seja, uma data quando os vivos e seus antepassados mortos se encontram. Na época dos Celtas, isso significava os vivos levarem presentes ou comidas para ter uma 'reunião' com seus mortos. Mas na Europa cristianizada, se tornou levar flores para os cemitérios (que os Celtas não tinham). A data relacionada aos mortos foi seguida no Brasil, mas não a tradição de fazer festas para os mortos, como no México. Nos EUA, ficou sendo uma peregrinação das crianças (vestidos de mortos) até a porta das casas para exigir seus presentes. Alguma coisa restou de reconhecível.
Aqui, eu gostaria de falar de um duplo sincretismo. Quem sabe triplo. Um deles, relacionado ao santo Católico denominado Sebastião, que foi sincretizado dentro do Cristianismo mesmo. Depois, sobre o orixá Oxóssi, oriundo das tradições Yorubás na região do Congo/Nigéria, que foi miscigenado, no Brasil, ao personagem Católico. O resultado foi uma curiosa quimera, que vale ser desmontada pelo que suas partes dizem das nossas várias vertentes culturais.
Um exemplo atual e prático de sincretismo é o Dia-das-bruxas. A data de 31/10 é uma data religiosa do antigo calendário Celta (Gália/Espanha, séc. 3 a.C.), chamada Samhain, que coincide com o Dia-de-los-muertos no México (01/11) e o Dia-de-finados no Brasil (02/11), ou seja, uma data quando os vivos e seus antepassados mortos se encontram. Na época dos Celtas, isso significava os vivos levarem presentes ou comidas para ter uma 'reunião' com seus mortos. Mas na Europa cristianizada, se tornou levar flores para os cemitérios (que os Celtas não tinham). A data relacionada aos mortos foi seguida no Brasil, mas não a tradição de fazer festas para os mortos, como no México. Nos EUA, ficou sendo uma peregrinação das crianças (vestidos de mortos) até a porta das casas para exigir seus presentes. Alguma coisa restou de reconhecível.
Aqui, eu gostaria de falar de um duplo sincretismo. Quem sabe triplo. Um deles, relacionado ao santo Católico denominado Sebastião, que foi sincretizado dentro do Cristianismo mesmo. Depois, sobre o orixá Oxóssi, oriundo das tradições Yorubás na região do Congo/Nigéria, que foi miscigenado, no Brasil, ao personagem Católico. O resultado foi uma curiosa quimera, que vale ser desmontada pelo que suas partes dizem das nossas várias vertentes culturais.
OXÓSSI
Oxóssi (escrita brasileira de Òsoòsi) é um Orixá. Na Nigéria, durante o festival de Obatalá (Orixá criador), uma cabeça de pedra é regada a bebidas alcoólicas em homenagem a ele. Diz-se que é a cabeça do próprio Oxóssi, deixada para fora quando ele se fundiu à terra. A palavra já foi usada para designar grandes reis da cultura Yorubá, aqueles que unificaram um grande número de aldeias ou cidades. Mais tarde, foi usada para designar divindades do panteão religioso, normalmente envolvidas com rios, árvores, o céu, etc. Embora hoje existam em forma escrita os textos referentes aos orixás, são na verdade poemas originalmente transmitidos em forma oral, como as lendas gregas. Isso significa que há vários Oxóssi, mais ou menos como os vários Aquiles que Homero reuniu quando escreveu A Odisséia: cada ilha grega tinha o seu herói um pouco diferente.
Os poemas que mencionam essa divindade o nomeiam também como Ocantoxoxô, Erinlè ou Inlè, dando a entender que Oxóssi é um título de grande honra (ex. César = imperador ou Cleópatra = rainha) e não um nome próprio.
Os poemas sobre Oxóssi identificam-no como um homem das matas, conhecedor de trilhas e plantas medicinais. Por outro lado, também é referido como Odé, ou caçador. Sua figura se ajusta bem ao povo Pigmeu que ainda vive na região do Congo, Camarões, etc, mas, dadas as similaridades de ambiente, é difícil o imaginário brasileiro não identificar Oxóssi com um indígena da Mata Atlântica ou Amazônia. Um antigo Itan (poema histórico) diz que Oxóssi atendeu ao convite de Oxalá/Obatalá e veio do Orum (céu) para habitar o Aiê (terra) junto com todo seu povo, antes mesmo que Ele criasse os homens. Não há referências sobre quem seria tal povo, mas a mitologia brasileira faz referência a "espíritos das matas" como Pai-do-mato, Caipora, Boitatá, Cuca, etc. Mesmo a temida Matinta-perera, bruxa das matas (regiões norte e nordeste) que se disfarça como pássaro, vai em algumas linhas fazer tal semelhança parecer assombrosa.
Os Orixás têm pai e mãe. Oxóssi é filho de um curioso Orixá chamado Okò (= fazenda ou fazendeiro), que parece ter sido um jovem irresponsável, briguento e bebedor, que foi expulso da cidade de Irawo e passou tempos andando pelos campos. Em algum texto ele é referido como Olasi ou Olagbirin. Em sua vida campestre, Okò progrediu como plantador (ele é associado ao surgimento da agricultura), voltando à cidade para prover alimentos numa época de fome, e por isso foi chamado Orixá da Agricultura. Okò é venerado com objetos e comidas brancas (símbolo dos Orixás fun-fun ou criadores, como Oxalá) depositadas na base de grandes árvores de mogno [africano], mas também com tigelas de água onde esse conhecedor das plantas medicinais seria capaz de depositar remédios. Muitas dessas características foram passadas a Oxóssi.
A mãe de Oxóssi é Ìyá Apáòka / Iya Nbanba / Iya Mó, outro personagem curioso. Ela é uma das Iyá Mi Oxorongá, ou Mães-feiticeiras, junto com Ìyá Mepere e Ìyá Bokolo. As três (ou centenas delas) vieram do Orum e tinham afeição pelas árvores, mas usavam seus poderes contra os homens¹. Do alto de cada árvore, as feiticeiras, que se transformavam em pássaros, proferiam encantamentos para perturbar tanto homens como Orixás. Qualquer semelhança com a Matinta-perera é digna de ser pensada. Apaziguada ou enfeitiçada por uma preparação de Okò, Ìyá Apáòka teria traído suas companheiras apaixonando-se por Okò, de quem gerou um filho (de ovo?) chamado Erinlè ou somente Inlè. Ao contrário dos outros Orixás, diz-se que Erinlé não aceita sacrifícios de aves (!).
Contam os Itans que Erinlé ( = caçador de elefantes) cresceu como Odé e recebeu seu título de Oxóssi após matar com única flechada um pássaro enorme, enviado das Oxorongá para atormentar uma aldeia. Invulnerável pela magia que o cercava, o pássaro teria sido momentaneamente distraído por uma oferenda de sua mãe às Oxorongá (!). Por isso o símbolo de Oxóssi é um arco-e-flecha. Mais tarde, raptado por Ossain, Orixá das matas mais profundas, ele teria aprendido de seu raptor os segredos de todas as plantas.
O artefato que Oxóssi carrega nas suas representações é um arco-e-flecha de metal; de metal tanto o arco como a corda e a flecha. Logo, não se trata de algo funcional. Outros Orixás também levam ornamentos de metal: Okò (que leva um cajado e uma adaga), Ogum (Senhor-do-ferro, que leva uma espada) e Xangô (Senhor-da-justiça, que leva um machado). Esse simbolismo denota um tempo em que a metalurgia desenvolveu-se na planície do rio Níger, mais ou menos no séc. 9 d.C., até onde se sabe por volta do reinado de Oduduwa². Sendo Xangô frequentemente descrito como um rei, é provável que ele e vários outros Orixás, colocados como divindades, já tenham sido reis Yorubá.
Erinlé também é o nome de um rio Nigeriano que comunica um lago de planície com o caudaloso e longo rio Oxum. Não sem motivo, os Itans dão conta de que Oxóssi/Erinlé apaixonou-se por Oxum, a Dama-das-águas-doces, filha da própria rainha Iemanjá (Dama-das-águas-salgadas). Oxum foi o primeiro ser a enganá-lo, lambuzando-se de mel e rolando sobre as folhas da floresta. Apesar do enorme apetite sexual de Oxóssi (semelhante a Okò, que geralmente é representado com um grande pênis ereto), os dois não se suportavam e se separaram após produziram um filho de estória ainda mais curiosa que o pai, com natureza dual (masculino/feminino, terrestre/aquático).
A semelhança dos Orixás com elementos da paisagem Yorubá não é casual: todo o entorno das aldeias, florestas, árvores, rios, etc são entendidos como entidades, seres vivos aos quais os homens devem respeito e com os quais podem conversar ou mesmo duelar.
SÃO SEBASTIÃO
Trata-se de um santo Católico do período tardio de Roma, entre o auge militar do Império (séc. 1 a.C.) e sua fragmentação no séc. 5 d.C. São Sebastião viveu entre 255 e 288 d.C. Nessa época, o Cristianismo ainda estava em formação, com muitas doutrinas circulantes e considerável integração com outras religiões do Império.
A veneração a São Sebastião foi descrita em textos já de 354 d.C., pouco depois da permissão do Cristianismo em Roma (313 d.C.) e menos de 70 anos após seu assassinato. Ele foi fortemente cultuado na Europa durante a Alta Idade Média, entre a fragmentação de Roma Ocidental e as Cruzadas. Num escrito do séc. 14, especifica-se que São Sebastião veio da Gallia Narbonensis (sul da França) e foi treinado como soldado Romano em 283 d.C. em Milão/Itália. Teria chegado ao posto de capitão da Guarda Pretoriana (soldados que protegiam o imperador, como o Serviço Secreto dos EUA), sem revelar que era Cristão. Nesse tempo, os Cristãos se reuniam silenciosamente nas casas de membros do grupo, sendo seu culto proibido e passível de morte.
Como encarregado dos prisioneiros, ele interagia com esses e as autoridades, tendo inclusive convertido ao Cristianismo pelo menos 16 pessoas que acabaram sendo todas executadas como mártires. De fato, o livro Legenda Áurea, sobre a vida dos santos, descreve que, quando as pessoas eram tentadas a renegar Cristo em troca de salvar as próprias vidas no cárcere, Sebastião as convencia do contrário: "... os contratempos são efêmeros, e essa perseguição que agora sofremos, se é violenta hoje, amanhã terá desaparecido: uma hora a trouxe, uma hora vai levá-la. Mas as penas eternas renovam-se sem cessar, a vivacidade de suas chamas nunca diminui, para sempre punir. Estimulemos nosso amor ao martírio". Nesse meio tempo, uma mulher muda passou a falar. O pai de dois condenados, adoentado, ficou curado após destruir os ídolos que guardava. Centenas de pessoas teriam sido batizadas em plena época de perseguição, ao ouvirem seus testemunhos.
Descoberto como Cristão, um dia ele também foi condenado à morte. A execução [militar] se deu com Sebastião amarrado a uma árvore e "os arqueiros atiraram nele até que ficou tão cheio de flechas quanto um ouriço, e assim o deixaram lá, como morto". Mas as flechas não mataram Sebastião, que foi resgatado pela viúva (também canonizada) de um dos outros mártires. Ela o levou para sua casa e cuidou de seus ferimentos, até que ficasse bom.
Já recuperado, ao invés de fugir, Sebastião se posicionou em um lugar onde o imperador Diocleciano (quem o mandara executar antes) deveria passar e bradou publicamente contra o rei - bem aos modos de João Batista acusando Herodes I - por suas crueldades com os Cristãos. Outra vez foi preso. Agora, num segundo martírio, ele foi espancado até a morte e seu corpo foi atirado na fossa Romana de esgotos. Mais uma vez uma mulher o resgatou, enterrando-o no local onde hoje está a Basílica de São Sebastião ("próxima aos apóstolos"), após uma recomendação post mortem vinda do próprio Sebastião.
O Catolicismo tem como poderosos ou místicos os restos mortais, que sempre atraem peregrinos aos túmulos dos santos. Por isso, o Papa Eugênio II presenteou os ossos "curativos" de São Sebastião à abadia de Saint Denys, na França, "exportando" para lá o seu culto em 826 d.C. O crânio de Sebastião teria sido separado e levado para Ebersberg/sul da Alemanha em 934 d.C, onde também surgiu um centro de peregrinação. Lá está preservado, ainda hoje, um pedaço de osso revestido com ouro e prata.
A recuperação "da morte" foi atribuída a algum poder milagroso de cura, ao que o santo foi associado. De fato, a maioria dos milagres de São Sebastião sempre ocorreram em situações de cura, especialmente nas épocas de peste/epidemia. Por causa disso, São Sebastião ocupou um lugar importante na mídia medieval, constando como um dos santos mais retratados no período após a Peste Negra (aprox. 1348, quando cerca de metade da Europa foi dizimada).
Desde a Renascença (sécs. 14 a 16), quando os ideais de beleza Grega foram resgatados, São Sebastião passou a ser representado como um jovem torneado, amarrado, contorcido e seminu, com as tradicionais flechas cravadas no corpo. Embora essa não tenha sido sua causa mortis, pouco se fala do martírio posterior. Aqui no Brasil, no dia 20 de janeiro (de 1567), aniversário de sua morte, os portugueses expulsaram os franceses do Rio de Janeiro (então Guanabara), ao que a cidade adotou São Sebastião como padroeiro.
Curiosamente, a exposição sacra do corpo masculino fez circularem associações dele com o ideal de atleta ou soldado, além de manifestações eróticas.
VÁRIOS PORQUÊS
É bem conhecido que os cultos Afro no Brasil utilizaram pedras (Otás) e imagens Católicas como refúgio contra a perseguição, decorando os templos de Candomblé(s) com imagens de santo e nomeando seus Orixás como personagens Cristãos. Com o processo de "cristianização" da África em andamento, a Igreja Católica passou a ver os negros como "um povo a se converter" e não mais como "mercadoria sem alma". Assim, desde o séc. 17 surgiram confrarias ou irmandades destinadas a catequizar e proteger os negros catequizados, geralmente tornados devotos de algum santo negro como São Benedito ou Santo Elesbão. Por volta de 1830, as confrarias haviam se agigantado, reunindo tanto negros "misturados", isto é, que praticavam uma mistura de Catolicismo e Candomblé (o que viria a ser a Umbanda, no séc. 19), quanto aqueles que praticavam publicamente o Catolicismo e, no interior da confraria, o Candomblé. Essa foi a origem dos mais antigos terreiros de Candomblé no Brasil (Ilê Axé Iyá Nassô Oká - antiga Sociedade São Jorge do Engenho Velho; Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê - antiga Sociedade São Jorge do Gantois; Ilê Axé Opó Afonjá.- antigo Centro Cruz Santa do Axé Opó Afonjá; Terreiro Bate Folha - antiga Sociedade Beneficente Santa Bárbara do Bate Folha; Ilê Axé Oxumaré ou Casa de Oxumarê - antiga Sociedade Cultural Religiosa e Beneficente São Salvador). Nessa época, entre aqueles que misturavam elementos dos dois credos, Oxóssi foi 'disfarçado como' ou 'misturado a' São Sebastião.
A tradução do Orixá em Santo reúne elementos da diáspora africana (povos Yorubá trazidos para o Brasil), do Cristianismo Europeu (com figuras heróicas e santos Católicos), dos indígenas habitando o nordeste brasileiro e do imaginário caboclo, como se fosse um grande "cozido" de ideias. Sem a imposição do Catolicismo aos Yorubá escravizados, é muito improvável que tal associação acontecesse, e justamente essa escolha entre Orixás e santos merece ser entendida.
Contra a escolha de um representante Cristão para a fé nos Orixás, claramente estava a disparidade de contexto das divindades. No contexto Yorubá lá na África, havia Orixás deixando o mundo espiritual para habitar elementos naturais do Aiê, dos quais se tornam protetores e onde podem ser invocados. Seus lugares não são apenas sagrados, mas que também falam a respeito deles. Lembremos que Enrilé é um caçador de elefantes e também um rio. No contexto Cristão, os santos são pessoas realizando maravilhas só explicadas sobrenaturalmente, muitas vezes tais que só começam a ocorrer após a morte do santo, geralmente nas proximidades de sua tumba ou restos mortais, como se ele emanasse nesse mundo algum poder oriundo de Deus.
Não há elementos para pensar que Oxóssi seria melhor traduzido em São Sebastião do que em outros santos Católicos, como São Huberto de Liège, o caçador (656 - 727 d.C.), ou São João Gualberto (985 -1083 d.C), que viveu em uma mata no pé dos montes Apeninos. A escolha de São Sebastião pela presença de flechas nas imagens parece muito boba. Afinal, se Oxóssi é um Odé, São Sebastião conforme retratado popularmente está mais semelhante à caça do que ao caçador.
Pensando que provavelmente o leitor brasileiro nunca ouviu falar dos santos mencionados acima, a escolha de São Sebastião pode estar ligada ao imaginário local único do Brasil e mais único ainda na região no nordeste, onde o país foi colonizado primeiro. O aspecto nu pelo qual São Sebastião é conhecido lembra um indígena brasileiro, os mesmos Cariris, Caetés, Tupinambás e Tupiniquins com quem os caboclos e portugueses disputavam terras. Sobre ele pesa o imaginário de guerreiro geralmente associada a alguma peça de armadura (também compatível com São Jorge, São Miguel Arcanjo ou até mesmo alguns apóstolos de Jesus como Simão o zelote). Além disso, a eleição de São Sebastião em particular pode ter alguma ligação com a grande popularidade nordestina de Dom Sebastião I (1554 - 1578), um lendário rei de Portugal³. Nessa terra de engenhos de açúcar para onde desembarcaram muitos Yorubás, o rei português morto no norte da África pode ter tido sua imagem (mítica) misturada com a do santo Pretoriano de quem veio seu nome, favorecendo que ganhasse ares de cavaleiro ou guerreiro salvador.
Dom Sebastião foi associado à cavalaria medieval e muito propagandeado como esperança de libertador pelo célebre escritor luso-brasileiro Padre Antônio Vieira⁴. Ecos desse culto a Dom Sebastião foram vistos até mesmo no final do séc. 19 em episódios como a Pedra Bonita⁵. Nessa junção do Orixá africano com o indígena brasileiro e o cavaleiro mítico português, o santo Romano levou vantagem. Os dias votivos de São Sebastião e Oxóssi são ambos em 20 de janeiro, aniversário de morte do santo*.
Uma semelhança sensível entre os dois mundos, que também deve ter contribuído para que os brasileiros caboclos unissem um Orixá a um santo é que os Orixás são materialmente associados a seus elementos. Na África, Enrilé era associado com as matas ao redor do rio de mesmo nome mas, no Brasil, o conceito se diluiu e Oxóssi se tornou um indígena da Mata Geral. Qualquer mata, e mais particularmente a Mata Atlântica no litoral do nordeste. Os santos Católicos são geralmente associados a basílicas e templos contendo algum resto mortal do santo, peça de roupa, etc. Na Europa, São Sebastião ficou "repartido" entre o local em que foi enterrado originalmente e mais dois onde guardam pedaços seus (Itália, França e Alemanha). No Brasil, sem as basílicas, toda igreja ou casa com uma imagem do santo pode ser local de culto.
Se há o fácil acesso a pontos de culto encontrado no Candomblé, que permitiu a devoção a Orixás africanos acontecer no Brasil e Caribe, a devoção aos santos Católicos também pode ser muito significativa em locais pouco oficiais como capelas erigidas numa fazenda, numa casa, etc. Imagine-se o que pode ter ocorrido com uma imagem de São Sebastião, tradicionalmente seminu e portando alguma parte de armadura, se esta fosse instalada por portugueses em uma capela junto à mata, num local de adoração frequentado por caboclos brasileiros, muitos descendentes de Yorubás ou convivendo com descendentes deles, que tinham contato com indígenas e que ouviam, na cidade, sobre as façanhas de Dom Sebastião. Esse caldeirão onde todas as ideias se misturam pode ter "cozinhado" um Oxóssi - São Sebastião que ganharia seu nome dependendo de onde estivesse, se numa reunião de Candomblé ou numa procissão.
Com o tempo, os ambientes de Candomblé e Catolicismo brasileiros se distanciaram. A urbanização das populações contribuiu muito para isso. Os filhos de Oxóssi, hoje, tentam aproximar seus comportamentos da vida indígena, ideais de coragem, manipulação de ervas medicinais e provimento de alimentos. Em muitos casos, são filhos-de-santo (iniciados) que incorporam o Orixá nas cerimônias religiosas e estão condicionados a abster-se de algumas coisas chamadas "quizilas". No mundo Cristão, as experiências mais intensas estão associadas às igrejas evangélicas pentecostais, onde se fala da possessão pelo Espírito Santo, mas onde nenhum santo é cultuado. Dentro do universo Católico em específico, onde estão os devotos de São Sebastião, há quem participe do auxílio e pregação aos presos ou doentes (como Sebastião em seus tempos de Guarda Pretoriana), mais raramente desafiando governantes injustos (geralmente ditadores ou presidentes militares).
Entre os filhos de Oxóssi (ou qualquer outro Orixá), não há apelos à prática de nudez, mesmo em situações rituais. Tampouco há qualquer elemento gay nas incorporações desse Orixá. Também não há nudez ou elementos gays (seja lá o que isso for) nas manifestações de fé Católicas. Dessa forma, o apreço dos gays (masculinos) com São Sebastião não tem qualquer associação com a vida do santo, nem com suas formas de culto e provavelmente ocorre apenas via uma reação mais imatura à exposição do corpo masculino.
O milagre de cura de São Sebastião não se repetiu com ele mesmo, que morreu espancado. Sua popularidade na Europa foi construída através de contos sobre a influência benigna dele na cura de vários doentes ou até cidades inteiras. Por exemplo, o rei Gumbert da Lombardia (665 - 700 d.C.) supostamente conseguiu que a peste parasse de atacar suas terras após mandar erguer no ano de 680 um altar para São Sebastião na capital Ticinum, hoje Pávia / Itália. Há Orixás com poder de cura e Oxóssi é um deles, mas não existe uma "oração para Oxóssi" ou mesmo um ebó (oferenda) que possa ser feito para conseguir magicamente uma cura. Há, porém, preparações medicinais feitas pelo babalaô/ialorixá que devem, a fim de produzirem seu efeito, serem consagradas por exemplo a Oxóssi. Participar de um desses rituais de cura não é tão diferente de levantar um altar para o santo sobre seriam preparados os medicamentos.
Podemos finalizar afirmando que o equivalente de Oxóssi dentro do Cristianismo é São Sebastião por motivos bem particulares do nordeste do Brasil na época da colonização. O "Sebastoxóssi" produzido daí não é cultuado nas igrejas Católicas nem nos terreiros de Candomblé, por serem religiões mais atreladas a sua fundação histórica. Mas trata-se de uma divindade presente na religiosidade mais popular e alheia às autoridades e bibliografias. E ele também é uma divindade reverenciada em muitos templos de Umbanda, de Jurema ou simplesmente um elemento de compreensão ou aceitação das divindades Afro dentro do universo Católico.
Nesse espaço, "Sebastoxóssi" funciona semelhantemente a um signo do zodíaco, um arquétipo de personalidade significando ser "confiante, expansivo, e também raivoso quando ameaçado ou traído". No Candomblé, além do arquétipo de personalidade existe a necessidade do "filho de Oxóssi" agradar seu Orixá patrono para ter sucesso, assim como ter "de nascença" certas fragilidades em relação às quizilas que o enfraquecem. Oxóssi é fragilizado por mel (vide Oxum), bebidas alcoólicas (vide Ossaim) e aves mortas (vide mamãe Apaoká). Dentro da Umbanda, vemos algo da devoção Católica de oferendar algo para obter certo resultado, ou mais especificamente realizar alguma "simpatia" ou "despacho" para se obter o favor do santo, além da tradicional devoção imposta por um dos pais que dedicou a criança ao santo, em geral em troca da cura de uma doença grave.
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notas de rodapé:
¹ Dentro do entendimento Yorubá da Natureza, as árvores possuem temperamentos específicos, podendo ser benéficas ou terríveis. Daí a necessidade de interagirem com as árvores e conseguir sua amizade. A árvore Orobó (Garcinia kola heckel) produz felicidade, justiça e vida longa; a araticuna da areia (Annona senegalensis) produz destruição de tudo que alguém gosta; o baobá (Adansonia sp.) propicia a realização dos desejos; o iroko ou gameleira branca é a árvore mais poderosa de todas (Milicia excelsa ou Ficus insipida) e pode fazer as pessoas sofrerem acidentes; o apaoká ou mogno (Khaya senegalensis) é capaz de matar.
² Oduduwa é referido também como um Orixá. Ele rivaliza com Oxalá nas tradições sobre a criação do mundo material. Em alguns Itans, Oxalá se embriaga com vinho de palmeira, dorme e Oduduwa vem em seu ligar para o Aiê e cria o mundo. A Oxalá resta a fabricação dos homens a partir do barro. Verger chegou a registrar um Itan onde Odudua é a esposa de Oxalá. Nos Itans particularmente transplantados para o Brasil com líderes religiosos escravizados, toda a Criação ocorre por obra de Oxalá e Oduduwa nem é mencionado.
³ Dom Sebastião I nasceu em 20 de janeiro e foi nomeado em homenagem ao santo executado naquele dia. Ele foi coroado rei de Portugal em 1574 e desapareceu no Marrocos, durante uma batalha do processo de conquista do norte da África por Portugal. Muito jovem para ter herdeiros, ele foi sucedido no trono por seu parente Felipe II, rei da Espanha, que unificou os dois países. Em Portugal e no Brasil, nutriu-se por muito tempo a crença de que Dom Sebastião retornaria um dia da África para resgatar seu reino. No Brasil, Dom Sebastião tornou-se protagonista de lendas sobre um "cavaleiro salvador" que duraram até o séc. 19.
⁴ Padre Antônio Vieira (1608-1697) foi um jesuíta português que fez muitas viagens entre o Brasil e Portugal, terminando por ser enterrado na Bahia. Tratava-se de um intelectual com alta produção de textos, sermões e livros que eram muito influentes não apenas na política, mas também entre a sociedade não religiosa. Ele fez parte do movimento Sebastianista nos dois países, defendendo os direitos indígenas entre a nobreza. Mais ao fim de sua vida, Vieira chegou a escrever profecias que descreviam Portugal como o Reino de que a Bíblia fala, situando essa 'terra abençoada por Deus' bem aqui no Brasil. Por se tratar de um escritor e orador muito influente, suas ideias acaloraram as disputas por poder entre a Coroa Portuguesa a Igreja no Brasil.
⁵ Pedra Bonita, na Serra do Catolé / Pernambuco, foi palco de um evento messiânico retratado por Ariano Suassuna em seu livro "A Pedra do Reino". Nesse local de muitas mortes, onde existem duas torres de rocha de 30 m de altura no meio do sertão, entre 1836 e1838 um grupo de adoradores de Dom Sebastião I elegeu para si um rei-sacerdote que anunciava que, havendo suficientes sacrifícios humanos, Dom Sebastião (aquele, da reconquista da África) voltaria à vida ali mesmo, como um cavaleiro medieval vestindo sua armadura, tornaria as pedras em torres do seu castelo e implantaria um reino de justiça na Terra.
* Uma curiosidade: na Bahia, Oxóssi é sincretizado com São Jorge, o cavaleiro turco. Seu dia votivo então é 23 de abril, início da primavera.
notas de rodapé:
¹ Dentro do entendimento Yorubá da Natureza, as árvores possuem temperamentos específicos, podendo ser benéficas ou terríveis. Daí a necessidade de interagirem com as árvores e conseguir sua amizade. A árvore Orobó (Garcinia kola heckel) produz felicidade, justiça e vida longa; a araticuna da areia (Annona senegalensis) produz destruição de tudo que alguém gosta; o baobá (Adansonia sp.) propicia a realização dos desejos; o iroko ou gameleira branca é a árvore mais poderosa de todas (Milicia excelsa ou Ficus insipida) e pode fazer as pessoas sofrerem acidentes; o apaoká ou mogno (Khaya senegalensis) é capaz de matar.
² Oduduwa é referido também como um Orixá. Ele rivaliza com Oxalá nas tradições sobre a criação do mundo material. Em alguns Itans, Oxalá se embriaga com vinho de palmeira, dorme e Oduduwa vem em seu ligar para o Aiê e cria o mundo. A Oxalá resta a fabricação dos homens a partir do barro. Verger chegou a registrar um Itan onde Odudua é a esposa de Oxalá. Nos Itans particularmente transplantados para o Brasil com líderes religiosos escravizados, toda a Criação ocorre por obra de Oxalá e Oduduwa nem é mencionado.
³ Dom Sebastião I nasceu em 20 de janeiro e foi nomeado em homenagem ao santo executado naquele dia. Ele foi coroado rei de Portugal em 1574 e desapareceu no Marrocos, durante uma batalha do processo de conquista do norte da África por Portugal. Muito jovem para ter herdeiros, ele foi sucedido no trono por seu parente Felipe II, rei da Espanha, que unificou os dois países. Em Portugal e no Brasil, nutriu-se por muito tempo a crença de que Dom Sebastião retornaria um dia da África para resgatar seu reino. No Brasil, Dom Sebastião tornou-se protagonista de lendas sobre um "cavaleiro salvador" que duraram até o séc. 19.
⁴ Padre Antônio Vieira (1608-1697) foi um jesuíta português que fez muitas viagens entre o Brasil e Portugal, terminando por ser enterrado na Bahia. Tratava-se de um intelectual com alta produção de textos, sermões e livros que eram muito influentes não apenas na política, mas também entre a sociedade não religiosa. Ele fez parte do movimento Sebastianista nos dois países, defendendo os direitos indígenas entre a nobreza. Mais ao fim de sua vida, Vieira chegou a escrever profecias que descreviam Portugal como o Reino de que a Bíblia fala, situando essa 'terra abençoada por Deus' bem aqui no Brasil. Por se tratar de um escritor e orador muito influente, suas ideias acaloraram as disputas por poder entre a Coroa Portuguesa a Igreja no Brasil.
⁵ Pedra Bonita, na Serra do Catolé / Pernambuco, foi palco de um evento messiânico retratado por Ariano Suassuna em seu livro "A Pedra do Reino". Nesse local de muitas mortes, onde existem duas torres de rocha de 30 m de altura no meio do sertão, entre 1836 e1838 um grupo de adoradores de Dom Sebastião I elegeu para si um rei-sacerdote que anunciava que, havendo suficientes sacrifícios humanos, Dom Sebastião (aquele, da reconquista da África) voltaria à vida ali mesmo, como um cavaleiro medieval vestindo sua armadura, tornaria as pedras em torres do seu castelo e implantaria um reino de justiça na Terra.
* Uma curiosidade: na Bahia, Oxóssi é sincretizado com São Jorge, o cavaleiro turco. Seu dia votivo então é 23 de abril, início da primavera.
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Nem leia mesmo..
Ajisafe, Oluwo Ifagboun. Òrìsà Oko, Templo Iledi Ifagboun Ajisafe, 16/06/2021.
Barcelos, Renata (Yemojagbemi Omitanmole Arike). 10 coisas para saber sobre orisa Oko na Africa yoruba. 2023.
de Varazze, Jacopo (arcebispo de Gênova, 1229-1298). Legenda áurea : vidas de santos. Ed. Companhia das Letras, 2003.
Hansley, Keith. The Great Pestilence of Ticinum in the 7th century. Thehistorianshut.com, 16//06/2021.
Ifágbòàlà, Oluwo. O conceito do culto à Òsóòsi em relação à Òrúnmìlà. Instituto de Pesquisa Yorùbá – egbé Ifá gidi gidi, 07/06/2017.
Marins, Luiz de Lourdes. Òrìsà dídá ayé: òbátálá e a criação do mundo iorubá. África, v. 31-32, p. 105-134, 2011/2012.
Ogumefu, Margaret Irene. Yoruba Legends. Ed. The Sheldon Press, 1929.
Òrisà Oko. Candomblé - O Mundo dos Orixás, 02/10/2014.
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