Entrevista do jornalista Nicholas Kristof, publicada em 23/dez/2016 no The New York Times.
O que significa ser Cristão no século 21? Pode alguém ser Cristão e ainda duvidar do nascimento a partir de uma virgem ou da Ressurreição? Eu fiz estas perguntas ao reverendo Timothy Keller, um pastor e autor do best-seller “A Fé na Era do Ceticismo”, que está entre os mais proeminentes pensadores evangélicos de hoje. Nossa conversa foi editada por espaço e clareza.
KRISTOF: Tim, admiro profundamente Jesus e sua mensagem, mas também sou cético em relação a temas que são partes integrantes do Cristianismo - o nascimento virginal, a Ressurreição, os milagres e assim por diante. Uma vez que estamos na época do Natal, vamos começar com o nascimento a partir de uma virgem. Isso é uma crença essencial, ou posso trocar ela por outras?
REV. KELLER: Se algo é verdadeiramente parte integrante de um corpo de pensamento, você não pode removê-lo sem desestabilizar a coisa toda. Uma religião não pode ser o que quer que desejemos que seja. Se eu for um membro do conselho de administração do Greenpeace e sair dizendo que a mudança climática é uma farsa, eles vão me pedir para renunciar. Eu poderia chamá-los de estreitos de espírito, mas eles com razão iriam dizer que tem que haver alguns limites para a dissidência ou você não pode ter uma organização coesa, integrada. E eles estariam certos. É o mesmo com qualquer fé religiosa.
KRISTOF: Mas os primeiros relatos da vida de Jesus, como o Evangelho de Marcos e a carta de Paulo aos Gálatas, nem sequer mencionam o nascimento virginal. E a referência em Lucas ao nascimento virginal foi escrita em um tipo diferente de grego e provavelmente foi adicionado mais tarde. Portanto, não há espaço para ceticismo?
REV. KELLER: Se fosse simplesmente uma lenda que pudesse ser descartada, isso prejudicaria o tecido da mensagem cristã. Luc Ferry, observando o relato do evangelho de João sobre o nascimento de Jesus no mundo, disse que isso ensinava que o poder por trás de todo o universo não era apenas um princípio cósmico impessoal, mas uma pessoa real que poderia ser conhecida e amada. Isso escandalizou filósofos gregos e romanos, mas foi revolucionário na história do pensamento humano. Levou a uma nova ênfase na importância da pessoa individual e no amor como a virtude suprema, porque Jesus não era apenas um grande ser humano, mas o Deus criador preexistente, que veio milagrosamente à Terra como um ser humano.
KRISTOF: E a Ressurreição? Deve ser entendida literalmente?
REV. KELLER: O ensinamento de Jesus não era o ponto principal de sua missão. Ele veio para salvar as pessoas através de sua morte pelo pecado e sua ressurreição. Portanto, seu importante ensinamento ético só faz sentido quando você não o separa dessas doutrinas históricas. Se a Ressurreição é uma realidade genuína, explica por que Jesus pode dizer que os pobres e os mansos "herdarão a terra" (Mateus 5.5). São Paulo disse que sem uma ressurreição real, o Cristianismo é inútil (1ª Coríntios 15.19).
KRISTOF: Mas deixe-me voltar um pouco. Como você sabe melhor do que eu, as próprias Escrituras indicam que a Ressurreição não foi tão clara. Maria Madalena não reconheceu inicialmente Jesus ressuscitado, nem alguns discípulos, e os evangelhos são vagos sobre a presença literal de Jesus - especialmente Marcos, o primeiro evangelho a ser escrito. Então, se você tomar essas passagens como significando que Jesus literalmente ressuscitou dos mortos, porque a imprecisão?
REV. KELLER: Eu não caracterizaria as descrições do Novo Testamento sobre Jesus ressuscitado como vagas. Elas são muito concretas em seus detalhes. Sim, Maria não reconheceu Jesus no início, mas depois o fez. Os dois discípulos no caminho de Emaús (Lucas 24) também não reconhecem Jesus no início. Sua experiência foi análoga a encontrar alguém que você viu pela última vez como uma criança há 20 anos. Muitos historiadores argumentaram que essa passagem tem o sinais de autênticas testemunhas oculares. Se você estivesse pesquisando sobre a Ressurreição, não pensaria que Jesus estava alterado o suficiente para não ser identificado imediatamente, mas não tanto que ele não fosse reconhecido depois de alguns momentos? Quanto ao evangelho de Marcos, sim, ele termina muito abruptamente sem chegar à Ressurreição, mas a maioria dos estudiosos acredita que a última parte do livro ou pergaminho foi perdida.
Os céticos devem considerar outro aspecto surpreendente dessa passagem. Maria Madalena é nomeada como a primeira testemunha ocular do Cristo ressuscitado, e outras mulheres são mencionadas como as primeiras testemunhas oculares nos outros evangelhos também. Esta foi uma época em que o testemunho das mulheres não era prova admissível nos tribunais por causa de seu baixo status social. Os primeiros críticos pagãos do Cristianismo agarraram-se a isso e descartaram a Ressurreição como sendo a palavra de "mulheres histéricas". Se os escritores do evangelho inventassem essas narrativas, nunca teriam colocado mulheres nelas. Então eles não as inventaram.
A Igreja Cristã é praticamente inexplicável se não crermos em uma ressurreição física. N.T. Wright argumentou em "A Ressurreição do Filho de Deus" que é difícil encontrar uma explicação alternativa, historicamente plausível, para o nascimento do movimento Cristão. É difícil explicar milhares de judeus virtualmente virando noites adorando um ser humano como divino quando tudo na sua religião e cultura os condicionou a acreditar que não só era impossível, mas profundamente herético. A melhor explicação para a mudança é que muitas centenas deles realmente viram Jesus com seus próprios olhos.
KRISTOF: Então, onde isso deixa as pessoas como eu? Eu sou Cristão? Um seguidor de Jesus? Um Cristão secular? Posso ser Cristão enquanto duvido da Ressurreição?
REV. KELLER: Eu não tiraria qualquer conclusão sobre um indivíduo sem falar com ele ou ela antes. Mas, em geral, se você não aceitar a Ressurreição ou outras crenças fundamentais, como definido pelo Credo dos Apóstolos, eu diria que você está do lado de fora do círculo.
KRISTOF: Tim, as pessoas às vezes dizem que a resposta é fé. Mas, como jornalista, achei o ceticismo útil. Se eu ouvir algo que parece supersticioso, vou querer testemunhas oculares e provas. Essa é a atitude que tomamos em relação ao Islã, Hinduísmo e Taoísmo. Então por que suspender o ceticismo em nossa própria tradição ou fé?
REV. KELLER: Eu concordo. Devemos exigir evidências e usar bom raciocínio, e não devemos anular outras religiões como "supersticiosas" para depois deixar de questionar nossa tradição de fé judaica ou cristã só porque é mais familiar.
Mas eu não quero contrastar a fé com o ceticismo tão agudamente que eles sejam vistos como opostos. Eles não são. Eu acho que todos nós baseamos nossas vidas em razão e fé. Por exemplo, minha fé é, em certa medida, baseada no raciocínio de que a existência de Deus dá mais sentido ao que vemos na natureza, na história e na experiência. Thomas Nagel escreveu recentemente que a visão completamente materialista da natureza não pode explicar a consciência humana, a cognição e os valores morais. Isso é parte do raciocínio por trás da minha fé. Assim, minha fé é baseada em lógica e argumento.
No final, no entanto, ninguém pode provar as coisas primárias sobre as quais os seres humanos baseiam suas vidas, quer se trate da existência de Deus ou da importância dos direitos humanos e da igualdade. Nietzsche argumentou que os valores humanísticos da maioria das pessoas seculares, como a importância do indivíduo, os direitos humanos e a responsabilidade pelos pobres, não têm lugar em um universo completamente materialista. Ele até acusou pessoas com valores humanistas como sendo "cristãos encobertos" porque era preciso um salto de fé para ter tais valores. Todos devemos viver pela fé.
KRISTOF: Eu admitirei de má vontade o seu ponto vista. Minha crença nos direitos humanos e na moralidade pode ser mais fé do que lógica. Mas é realmente análogo acreditar em coisas que parecem consistentes como a ciência e a modernidade, os direitos humanos, e aquelas que parecem inconsistentes, como o nascimento de uma virgem ou a Ressurreição?
REV. KELLER: Não vejo porque a fé deve ser vista como inconsistente com a ciência. Não há nada de ilógico nos milagres se existe um Deus Criador. Se existe um Deus que é grande o suficiente para criar o universo em toda sua complexidade e vastidão, porque um mero milagre não seria uma simples extensão mental? Para provar que milagres não poderiam acontecer, você teria que tomar como ponto que Deus não existe. Mas isso também não é algo que alguém possa provar e você troca uma fé por outra.
A ciência sempre deve assumir que um efeito tem uma causa natural e reprodutível. Essa é a sua metodologia. Imagine, então, o argumento de que um milagre realmente ocorreu. A ciência não teria como confirmar uma causa sobrenatural, que não é reprodutível. Alvin Plantinga argumentou que afirmar que deve haver uma causa científica para qualquer fenômeno aparentemente milagroso é como insistir que sua chave do carro perdida à noite deve estar debaixo de um poste porque esse é o único lugar onde você pode ver.
KRISTOF: Posso perguntar: você já teve dúvidas? As pessoas de fé lutam às vezes com esse tipo de perguntas?
REV. KELLER: Sim e sim. Na Bíblia, o Livro de Judas (capítulo 1, verso 22) diz aos Cristãos que "sejam misericordiosos para com aqueles que duvidam". Não devemos encorajar as pessoas a simplesmente sufocar suas dúvidas. As dúvidas nos obrigam a pensar as coisas e a reexaminar nossas razões, e isso pode, no final, levar a uma fé mais forte.
Eu também incentivaria os que duvidam dos ensinamentos religiosos a duvidar das suposições de fé que muitas vezes levam ao seu ceticismo. Enquanto os Cristãos devem estar abertos a questionar suas suposições de fé, eu espero que os céticos seculares também questionem as suas próprias. Nenhuma das afirmações - "Não existe uma realidade sobrenatural além deste mundo" e "Há uma realidade transcendente além deste mundo material" - pode ser comprovada empiricamente, nem é auto-evidente para a maioria das pessoas. Assim, ambas implicam fé. As pessoas seculares devem estar abertas a perguntas e dúvidas sobre suas posições, assim como as pessoas religiosas.
KRISTOF: O que eu mais admiro no Cristianismo é o incrível bom trabalho que inspira as pessoas a fazer em todo o mundo. Mas estou preocupado com a noção evangélica de que as pessoas vão para o céu apenas se tiverem um relacionamento direto com Jesus. Isso não significa que bilhões de pessoas - budistas, judeus, muçulmanos, hindus - são enviadas para o inferno porque cresceram em famílias não cristãs em todo o mundo? Que Gandhi está no inferno?
REV. KELLER: A Bíblia faz declarações categóricas de que você não pode ser salvo, exceto por meio da fé em Jesus (João 14.6, Atos 4.11-12). Eu sou muito simpático às suas preocupações, porque isso parece exclusivo e injusto. Há muitos pontos de vista sobre esta questão, então meus pensamentos sobre isso não podem ser considerados A resposta cristã. Mas aqui estão eles:
Você implica que pessoas realmente boas (por exemplo, Gandhi) devem ser salvas, e não apenas Cristãos. O problema é que os Cristãos não acreditam que alguém pode ser salvo por ser bom. Se você não vai até Deus através da fé no que Cristo fez, você estaria se aproximando com base em sua própria bondade. Isso seria, ironicamente, mais exclusivo e injusto, já que muitas vezes aqueles que tendemos a considerar "maus" - os que abusam, os que odeiam, os que não gostam e são egoístas - têm um passado abusivo e brutal de certa forma “justificando” seus atos.
Os Cristãos acreditam que são aqueles que admitem sua fraqueza e necessidade de um salvador que recebem a salvação. Se o acesso a Deus é através da graça de Jesus, então qualquer um pode receber a vida eterna instantaneamente. É por isso que o Cristão "nascido de novo" (Jesus usa essa imagem) sempre terá esperança e essa mensagem se espalhará entre os "miseráveis da terra".
Posso imaginar alguém dizendo: "Bem, porque Deus não pode aceitar todos e fazer uma salvação universal?" Então você cria um problema diferente com relação a justiça. Isso significa que Deus realmente não se importa com a injustiça e com o mal.
Ainda há a questão da justiça em relação às pessoas que cresceram longe de qualquer exposição real ao Cristianismo. A Bíblia é clara sobre duas coisas - que a salvação deve ser por meio da graça e da fé em Cristo, e que Deus é sempre justo e justo em todas as suas ações. O que não nos diz diretamente é como ambas as coisas podem ser verdadeiras juntas. Eu não acho isso que seja insuperável. Só porque eu não consigo ver uma maneira não prova que não pode haver tal maneira. Se temos um Deus grande o suficiente para merecer ser chamado de Deus, então temos um Deus grande o suficiente para conciliar a justiça e o amor.
KRISTOF: Tim, obrigado por uma grande conversa. E, quaisquer que sejam minhas dúvidas, eu acredito em um Feliz Natal!
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