sábado, 31 de dezembro de 2016

Lua nova

cartão dos anos 1920

Algumas vezes, vemos eventos da natureza observados pelos povos ao redor do mundo marcados como tradições pagãs, contrárias ao Cristianismo. Isso demarca o que chamamos de “Cristianismo” como algo cultural, muito maior do que um princípio ou tradição religiosa. Existiria assim (e creio que as igrejas evangélicas brasileiras são um exemplo muito atual disso) uma “cultura cristã” que pode até ter suas raízes na Bíblia, mas excede em muito o ensinado por Jesus e mesmo o legado que o Novo Testamento preserva. Pessoalmente, isso diz que muito do que carregamos como sagrado é, na verdade, um apanhado de valores culturais passados e pontos de vista dos líderes religiosos que movimentaram os últimos 20 séculos do Cristianismo. Alguns grupos deificam tradições hebraicas, outras as tradições romanas, outras a opinião de um ou outro líder santo. Voltando ao que o Cristianismo (tentaremos pensar em algo uniforme, coeso e irreal, aqui) chama de “pagão”, temos tradições orientadas, como o próprio Cristianismo, segundo valores culturais e opiniões de líderes passados. Em especial, muitas são orientadas segundo a natureza do lugar onde surgiram.

Nenhum ensino religioso pode ser mais poderoso que o reconhecimento, em cada lugar e cada instante, das evidências do divino. Os demônios Vikings estavam nas terras frias do norte, os Celtas tinham seus deuses nas estações do ano, os Persas enxergavam demônios das areias dos desertos e deuses da abóbada celeste. Os Egípcios viam seus deuses nos animais do vale do Nilo. Os Cristãos tentaram desvincular-se desse “naturalismo” centrando tudo ao redor da figura humana de Jesus, expressões como “leão de Judá” e “cordeiro de Deus” nos lembram que, como retratado nos presépios natalinos, o Cristianismo nasceu numa terra onde habitavam serpentes, leões, cordeiros, bodes, jumentos, camelos e pescadores, e não uma terra de guarás, tamanduás, antas e onças. Os porcos eram malditos ali, mas na Europa estiveram na base da alimentação por muito tempo. Transpor os ensinamentos do Jesus galileu para o Brasil moderno também requer algumas peripécias lógicas que o próprio Jesus fez um trabalho muito mais incrível em facilitar do que os escritores do Velho Testamento. Na Judéia, se podia ir ao templo de Salomão, ao poço de Jacó, ao mar que Moisés abriu, nadar no Jordão onde João Batista pregava e até passear pelas margens do Mar Morto onde ficavam Sodoma e Gomorra. Na Europa, onde não há serpentes, ou na América, onde não há leões, algumas explicações precisam ajudar as pessoas a entender significados que os autores da Bíblia não fizeram questão de esmiuçar por considerarem um conhecimento inato ou senso comum.

Nessa transposição de significados, coisas bíblicas podem não encontrar correspondente em outra época e lugar. Ao mesmo tempo, o mundo que cerca as pessoas das Américas, da Europa, África, Ásia ou Oceania nos dias de hoje pode ficar tão distante do que a Bíblia fala que mereceria aquela prévia de Star Wars: “há muito tempo, numa terra muito distante…”. Isso faz da religião algo artificial, o que certamente não é seu propósito. Para quem quiser aprender algo sobre a incorporação de elementos naturais no Cristianismo, recomendo muito o livro “Celebrating the wonder of creation” que Dean Ohlman escreveu em 1982. No momento, falarei sobre um evento natural (apenas um de muitos) que é citado diversas vezes na Bíblia: a Lua Nova.

A LUA PAGÃ

Embora muitos povo tenham adorado a Lua como divindade (e daí o paganismo de “adorar a criatura e não o Criador”), o ciclo de translação da Lua ao redor da Terra (aprox. 29 dias, 12 h e 30 min) é observável em todo mundo, além das marés que seguem esse deslocamento do nosso satélite. Seria surpreendente se, em algum momento da história, ninguém se orientasse por um astro tão brilhante como a Lua: ela organiza calendários, plantios, colheitas e pescas. Como o ciclo lunar tem a mesma duração aproximada do ciclo menstrual humano, muitos povos associaram a Lua a rituais de fertilidade e deusas pagãs (necessariamente femininas) como Febe, Artêmis, Selena e Hécate, mais tarde lembradas na mitologia Celta em associações com a magia para obter colheitas.

O que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles [os homens], porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis … Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. … Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador. (Romanos 1.25)

No Oriente Médio, os calendários são até hoje orientados segundo a Lua, o que significa que a observação direta do astro determina o início e o final de cada mês. No Ocidente, assumimos 30 dias para o ciclo lunar (sem deixar de fazer muitas correções, com meses de 28, 29 ou 31 dias) e chamamos isso de mês. Nosso ano de 365 dias (translação da Terra ao redor do Sol) é também um conjunto de 12 ciclos da Lua ao redor da Terra. Os Judeus marcavam o início de um novo mês quando ocorria a Lua Nova. Até a palavra hebraica para "mês" (hodesh) literalmente significa "Lua Nova". Isso não é adorar a Lua, mas apenas usá-la como uma indicação de data.

COMEÇO DA TRADIÇÃO

Nos tempos após Moisés, os israelitas deveriam trazer uma oferenda a Deus em cada Lua Nova, por determinação do próprio Senhor. O início do mês era determinado por testemunhas da primeira aparição visível da Lua Nova. Assim que a ela fosse avistada, isso era anunciado em todo o país por fogos de sinalização nas montanhas e pelo sopro de grandes trombetas.

Também em seus dias festivos, nas festas fixas e no primeiro dia de cada mês, vocês deverão tocar as cornetas por ocasião dos seus holocaustos e das suas ofertas de comunhão, e elas serão um memorial em favor de vocês perante o seu Deus. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês". (Números 10.10)

A oferta da Lua Nova é descrita como um holocausto de 2 novilhos, 1 carneiro, 7 cordeiros de um ano e 1 bode, todos sem defeito, uma oferta de cereais e outra de vinho (Números 28.11-15). O festival Lua Nova marcou a consagração a Deus de cada novo mês do ano. Nessas festividades havia mesmo a suspensão de compromissos políticos, sociais ou familiares, tão importantes como um jantar com o rei (1ª Samuel 20.5,6), do trabalho e comércio (Neemias 10.31).

Como em qualquer ritual religioso (ou não religioso), havia o perigo de observar os festivais da Lua Nova como uma simples prática cultural. Assim, uns 500 anos depois de Davi os homens ainda separavam seus touros, cordeiros e cabras, mas não desistiam de seus pecados. Confiavam nas práticas externas (como hoje se dá em relação a roupas, hábitos, etc ligados ao movimento evangélico) para limpá-los, mesmo que ainda houvesse mal em seus corações. Deus tinha palavras severas para tal hipocrisia com um ritual que Ele mesmo tinha ordenado.

Parem de trazer ofertas inúteis! O incenso de vocês é repugnante para mim. Luas novas, sábados e reuniões! Não consigo suportar suas assembléias cheias de iniqüidade. Suas festas da lua nova e suas festas fixas, eu as odeio. Tornaram-se um fardo para mim; não as suporto mais! Quando vocês estenderem as mãos em oração, esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue! Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva! (Isaías 1:13-17)

Deus de fato estava farto do que os festivais da Lua Nova tinham se tornado. Quando Jesus andou entre os homens, esses sacrifícios se tornaram completamente desnecessários. Mesmo o Templo, onde Jesus tinha ensinado quando criança aos doutores Fariseus, havia se tornado o reduto daqueles que viam em Jesus um revolucionário a ser extirpado. Ninguém recebeu insultos de Jesus como os Fariseus que comandavam o Templo e a observância dos rituais desde Moisés e Esdras!

FIM DA TRADIÇÃO

Um ponto interessante é que Paulo se refere aos rituais da Lua Nova, mostrando que ainda eram observados pelos Judeus. Mas ele o faz uma única vez, e apenas ele faz isso no Novo Testamento. Em nenhum dos evangelhos Jesus diz ou faz qualquer coisa com relação às festividades da Lua Nova, sugerindo que talvez a invasão dos costumes gregos e romanos tenha tornado essas festividades em algo folclórico ou pouco importante na Israel do 1º século d.C. Jesus em especial pregou sobre um culto pessoal a Deus, ao invés dos rituais coletivos e lugares sagrados a que o Velho Testamento se refere, apesar de esses lugares estarem em atividade ou íntegros durante o governo romano.

Disse a mulher [samaritana]: "Senhor, vejo que é profeta. Nossos antepassados adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar”. Jesus declarou: “Creia em mim, mulher: está próxima a hora em que vocês não adorarão o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém. Vocês, samaritanos, adoram o que não conhecem; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade.” (João 4.19-24)

Não apenas a Lua Nova era um ritual valioso dos Judeus. Haviam muitos rituais gerenciados pelos Fariseus, aquilo a que Jesus se referiu quando disse que coavam um mosquito e engoliam um camelo (Mateus 23.24). Mesmo os discípulos mais próximos de Jesus foram entorpecidos por costumes e práticas sociais, como se fossem sagrados, logos nos primeiros anos em que perambularam pelo mundo sem seu mestre. Pedro se afastava dos gentios quando havia Judeus presentes e Paulo recomendava a observância de hierarquia entre os sexos, apesar de se hospedar em comunidades muitas vezes lideradas por mulheres. Ele também associava abertamente o pecado a costumes e ações das pessoas:

Por causa disso [do afastamento de Deus] Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais por outras, contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão. (Romanos 1.26,27)

Provavelmente após sua 1ª estadia em Antióquia da Síria, Paulo muda bastante seu modo de agir, concentrando-se nos aspectos espirituais e inclusivos do Reino de Deus.

Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo. … Portanto, não permitam que ninguém os julgue pelo que vocês comem ou bebem, ou com relação a alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias de sábado. Estas coisas são sombras do que haveria de vir. (Colossenses 2.16,17)

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