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segunda-feira, 7 de setembro de 2020

As duas torres

Vista aérea das ruínas da igreja Bizantina no Monte Gerizim e os ornamentos do seu assoalho, ainda visíveis. Ao lado, Mapa de Canaã mostrando o Templo de Jerusalém em vermelho e o Templo de Gerizim em azul.



Deuteronômio 11

29. Quando o Senhor, vosso Deus, te tiver introduzido na terra que vais possuir, pronunciarás a bênção sobre o monte Gerizim, e a maldição sobre o monte Ebal. 30. Essas montanhas encontram-se além do Jordão, do outro lado do caminho do ocidente, na terra dos cananeus que habitam nas planícies defronte de Gálgala, perto dos carvalhos de Moré. [no livro dos Samaritanos, aqui lê-se "perto de Siquém"]


Deuteronômio 27

11. No mesmo dia, Moisés ordenou ao povo o seguinte: 12. Quando tiverdes passado o Jordão, estarão sobre o monte Gerizim para abençoarem o povo: Simeão, Levi, Judá, Issacar, José e Benjamim; 13. e sobre o monte Ebal, para amaldiçoar: Rúben, Gad, Aser, Zebulom, Dã e Neftali. 14. E os levitas tomarão a palavra e dirão em alta voz a todos os homens de Israel.


Josué 8

33. Todo o Israel, seus anciãos, seus oficiais e seus juízes conservaram-se de pé ao redor da arca, diante dos sacerdotes, dos levitas, que levavam a arca da aliança do Senhor. Ali estavam tanto os estrangeiros como os israelitas, metade deles do lado do monte Gerizim, e metade do lado do monte Ebal, segundo a ordem antes dada por Moisés, servo do Senhor, para abençoar o povo de Israel. 34. Depois disso, Josué leu todo o texto da lei, a bênção e a maldição, assim como estão escritas no livro da lei.


Desde a suposta ocupação de Canaã pelos Hebreus retornando do Egito, começou um processo de sacralização de diversas montanhas. Uma delas é o monte Moriah, onde Abraão teria subido para sacrificar seu filho Isaac por volta de 2000 a.C. A posição do Monte Moriah na geografia, entretanto, já era confusa para os Hebreus. Os Judeus o identificaram com a montanha escolhida para construir, em seu topo, o Templo de Salomão, no séc. 10 a.C. O Templo era uma representação da incrível prosperidade que Israel alcançou nessa época, contando com muito ouro, madeiras valiosas, marfins e tecidos caros. Em 616 d.C., após o cerco de Jerusalém pelas tropas do rei babilônio Nabucodonosor II, o Templo foi saqueado e incendiado. A maior parte da população de Judá foi levada cativa.


Em 538 d.C. os Judeus foram repatriados por Ciro o Persa. Em seu retorno, encontraram as terras ocupadas por Samaritanos, que se opuseram à volta dos Judeus. Mediante o decreto do rei, entretanto, os Samaritanos se ofereceram para ajudar a reconstruir o Templo. Com prerrogativas de pureza, os Judeus repeliram a participação dos Samaritanos.


NEGÓCIOS DE FAMÍLIA


Neemias 13

23. Naqueles dias, encontrei Judeus que haviam desposado mulheres de Azot, de Amon e de Moab. ... 28. Ora, um dos filhos de Joiada, filho do sumo sacerdote Eliasib, tornara-se genro de Sanballat, o horonita; expulsei-o para longe de mim.


O relato bíblico termina dessa maneira sobre a mistura de linhagens entre um membro da nobreza sacerdotal empenhada em reconstruir o Templo e o povo local, que ficou em Israel. O historiador Flavius Josephus, escrevendo sobre os Judeus no séc. 1, entretanto, adicionou uma continuidade desse caso.


"Quando Eliasib, o sumo sacerdote, morreu, seu filho Judas foi bem-sucedido no sumo sacerdócio; e quando ele morreu, seu filho João assumiu essa dignidade; ... 2. Agora, quando João partiu desta vida, seu filho Jaddua foi bem-sucedido no sumo sacerdócio. Ele tinha um irmão, cujo nome era Manassés. Ora, havia um Sanballat, enviado por Dario, o último rei da Pérsia, em Samaria. Ele era um Cutheam de nascimento (Samaritano). Este homem ... deu voluntariamente sua filha, cujo nome era Nicaso, em casamento a Manassés, pensando que essa aliança seria uma garantia de que a nação dos Judeus continuaria sua boa vontade com ele. ... Mas os anciãos de Jerusalém, muito preocupados que o irmão de Jaddua, o sumo sacerdote, casado com uma estrangeira, fosse um parceiro dele no sumo sacerdócio, discutiram com ele ... então eles ordenaram a Manassés que se divorciasse de sua esposa, ou não se aproximasse do altar. O próprio sumo sacerdote juntou-se ao povo em sua indignação contra seu irmão, e afastando-o do altar. Em seguida, Manassés foi até seu sogro, Sanballat, e disse-lhe que, embora amasse sua filha Nicaso, ele não estava disposto a ser privado de sua dignidade sacerdotal por causa dela ... E então Samballat prometeu-lhe não apenas preservar para ele a honra de seu sacerdócio, mas também obter para ele o poder e a dignidade de um sumo sacerdote, e o tornaria governador de todos os lugares que ele agora governava, se ele mantivesse seu filha como esposa. Disse-lhe também que iria construir para ele um templo como o de Jerusalém, no monte Gerizim, que é o mais alto de todos os montes de Samaria; e ele prometeu que faria isso com a aprovação do rei Dario. ... Sanballat deu-lhes dinheiro e dividiu entre eles terra para cultivo e também habitações, e tudo isso para agradar a seu genro de todas as maneiras." (Flavius Josephus, Antiguidades dos Judeus, livro XI)


Segundo Josephus, a disputa entre Samaritanos e Judeus no retorno da Babilônia teria fragmentado a classe sacerdotal dos Judeus, originando um outro Templo no monte Gerizim. Essa montanha é onde os Samaritanos dizem ser Moriah, e onde de fato houve um clone do 2º Templo, construído na era dos Persas.


O TEMPLO DE GERIZIM


Juízes 9

7. Sabendo disso, subiu Joatão ao cimo do monte Gerizim e exclamou: Ouvi-me, homens de Siquém, para que Deus vos ouça! 8. As árvores resolveram um dia eleger um rei para governá-las e disseram à oliveira: reina sobre nós!


Siquém era uma antiga capital religiosa dos Cananeus, próxima de Samaria, a capital do território Samaritano, antes alocado para a tribo de Efraim. A cidade ficava num vale entre as duas montanhas, Gerizim e Ebal. O território é alto e rochoso, uns 400 m de altitude sem rios próximos, e cada uma das montanhas sobe outros 500 m, ficando cobertas de neve no inverno. Nos textos antigos, tal local era assinalado como rico em grandes carvalhos.


Josephus fazia grandes erros de datas em seus escritos, por isso não sabemos se o Sanballat mencionado por ele é o mesmo do tempo de Esdras e Neemias, mas tudo indica que sim. As ruínas encontradas no topo do monte Gerizim indicam um Templo com mesma estrutura, mesma função e compartilhando até peças artesanais com o de Jerusalém. Por exemplo, as escavações no local encontraram um topo de coluna esculpido com a árvore da vida, o que era um entalhe Fenício bem típico da era Persa. As descrições de autores antigos que viram o Templo de Salomão elogiavam justamente uma peça assim em sua entrada.


Foram encontrados os restos de grandes cisternas ou piscinas, como também havia em Jerusalém. Em Gerizim, no entanto, pode-se pensar em reservatórios para água da chuva. E havia também grandes depósitos de ossos de animais queimados (sobretudo carneiros e bodes, mas também vacas e pombas). Era um local para sacrifícios, e sabemos que os Judeus encerraram os sacrifícios a YHWH por ocasião da destruição do Templo de Jerusalém. As inscrições sobre votos e agradecimentos nas pedras também não deixam dúvida sobre a divindade YHWH cultuada ali. Até o altar estava alinhado com os pontos cardeais na mesma posição de Jerusalém.


É curioso que em nenhum ponto da Torá Judaica, de onde vem o nosso VT, há referências a um Templo em Gerizim. Muito pelo contrário, os Samaritanos são desdenhados no texto hebraico, com Sanballat de Hawara/Horon (aprox. 450 d.C.) retratado como o grande rival do governador Neemias. Tudo isso faz pensar em um Templo rival, que por séculos foi um centro de culto em Samaria. Esse Templo era rival mesmo na sua significação, pois os Samaritanos viam Gerizim como o Monte Moriah de Abraão e Siquém como o local de fixação de Josué, durante a conquista de Canaã. Mas as conexões com Jerusalém não terminam aí...


Uzzi é um nome que aparece nos textos Samaritanos. Trata-se de um ancestral do sacerdote Esdras, enviado de Babilônia para reconstruir o Templo de Jerusalém, da mesma família que guardava o Templo desde os tempos de Salomão. Os textos Samaritanos diziam que quando Uzzi morreu, a chama eterna do Templo foi extinta (provavelmente pela chegada de Nabucodonosor II) e os vasos onde ela queimava foram escondidos nas cavernas de Gerizim, à espera do Messias no fim dos tempos.


Neemias 13

10. Soube também que as dádivas devidas aos levitas não lhes tinham sido entregues, e que os levitas e os cantores encarregados do serviço tinham se retirado cada um para as suas terras. 11. Censurei os magistrados e disse-lhes: Por que foi abandonada a casa de Deus? Depois reuni os levitas e cantores, e os recoloquei em seus postos.


Malaquias 1

6. O filho respeita seu pai e o servo, seu senhor. Ora, se eu sou Pai, onde estão as honras que me são devidas? E se eu sou o Senhor, onde está o temor que se me deve? - diz o Senhor dos exércitos a vós ... 10. Vá, antes, um de vós e feche as portas. Não acendereis mais inutilmente o fogo no meu altar.


Tanto os textos de Neemias quanto de Malaquias, contemporâneos do período Persa, dão a entender que o Templo de Jerusalém passava por dificuldades financeiras nessa época. Jerusalém estava sendo reerguida, o Templo sendo refeito, e havia - hoje temos certeza - um outro Templo centralizando os recursos da região de Samaria, a apenas 40 Km dali.


Ao redor do Templo, nas alturas de Gerizim, foi estruturada uma pequena cidade para os sacerdotes e levitas, das quais conhecemos o nome Romano: Flavia Neapolis, hoje fundida a Siquém na grande cidade de Nablus. Alguns historiadores mesmo cogitam se levitas de Jerusalém não migraram para Gerizim e vice versa, durante os 250 anos que esse Templo funcionou. 


AS GUERRAS DO PERÍODO GREGO


Yoma 69

O dia 25 de Tevet (entre Dez/Jan) é conhecido como o dia do Monte Gerizim, que foi estabelecido como um dia de felicidade e no qual elogios fúnebres não são permitidos. O que aconteceu nessa data? Foi nesse dia que os Samaritanos [kutim] solicitaram a Casa de Nosso Senhor a Alexandre, o macedônio, a fim de destruí-la, e ele a deu a eles, ou seja, deu-lhes permissão para destruí-la. Os homens vieram e informaram ao Sumo Sacerdote, Shimon HaTzaddik [Simão o Justo, filho de Onias I, 310–291 a.C.] do que havia acontecido. .... eles esfaquearam os Samaritanos, os penduraram na cauda dos cavalos e os arrastaram sobre os espinhos e cardos até chegarem ao monte Gerizim ... Quando chegaram ao monte Gerizim, onde os Samaritanos tinham seu templo, eles semearam a área com alho-poró, um símbolo de destruição total.


Esse trecho do Talmude Judaico conta sobre a chegada de Alexandre o Grande entre a contenda dos Samaritanos e Judeus. Diversas passagens do Talmude são bastante inverossímeis historicamente, e o historiador Flavius Josephus parece ter se baseado nelas para escrever várias de suas crônicas. Essa, por exemplo, envolve o Sumo Sacerdote reconhecendo a santidade de Alexandre.


O período Persa terminou por volta de 330 a.C., quando o grego Alexandre o Grande (também conhecido como Alexandre da Macedônia) conquistou todas as terras entre o Egito e a Índia. Depois que ele morreu, esse território imenso foi dividido entre seus generais, que fundaram poderosas dinastias e começaram o período Grego. No séc. 3 a.C., essas dinastias empreenderam batalhas históricas entre si. Canaã, em especial, passou muitos anos sendo perdida e reconquistada pelos Ptolomeus (centrados em Alexandria, no Egito, de cuja família nasceu a célebre Cleópatra) e pelos Selêucidas (centrados em Selêucia, hoje Baghdad, e depois em Antioquia, na Síria).


Os reis Selêucidas foram especialmente duros com o Judaísmo, chegando a proibir os idiomas hebraico e aramaico e fechar o Templo de Jerusalém por 20 anos. Em 167 a.C, essa opressão detonou a Revolta dos Macabeus, cujos líderes souberam manobrar aliados aqui e ali para instalarem uma nova monarquia em Israel. Eles foram chamados de reis Hasmoneus, sendo Judeus que governaram no Período Intertestamentário, até a chegada de Roma e sua derrota para a dinastia de Herodes. João Batista foi decapitado e Jesus foi julgado, ambos no reinado do 3º Herodes da Judéia.


No início do séc. 2 a.C., o Templo de Gerizim foi ampliado, passando de 95x95 m para 212x136 m. A vila ao seu redor chegou a ter 400 habitantes. Esse auge foi associado ao estabelecimento de poder dos Selêucidas em Samaria, que agora se tornava politicamente inimiga de Jerusalém, uma protegida dos Ptolomeus. As ruínas do Templo de Gerizim, na época de sua maior riqueza, revelaram um grande número de cerâmicas e moedas de bronze, prata e outro, algo bastante à altura de Jerusalém.


Quando os duelos entre Ptolomeus e Selêucidas passaram de ameaças para os campos de batalha, tanto um Templo como o outro foram severamente atingidos. Os Macabeus deixaram sua visão do que acontecia em Gerizim:


2ª Macabeus 5

21. Tendo Antíoco roubado ao templo [de Jerusalém] mil e oitocentos talentos [1 talento = 20 kg de ouro], voltou sem demora para Antioquia. Com o espírito exaltado, ele cria, em sua soberba, poder navegar sobre a terra e caminhar sobre o mar. 22. Contudo, por motivo de seu ódio para com os judeus, deixou atrás de si oficiais com a incumbência de molestar o povo: em Jerusalém, Filipe, da Frígia, mais bárbaro ainda que seu senhor; 23. no monte Gerizim, Andrônico e, adjunto a estes, Menelau, que se encarniçava contra seus concidadãos de modo mais terrível que os outros.


2ª Macabeus 6

1. Pouco tempo depois, um velho ateniense foi enviado pelo rei para forçar os Judeus a abandonar os costumes dos antepassados, banir as leis de Deus da cidade, 2. macular o templo de Jerusalém, dedicá-lo a Júpiter Olímpico e consagrar o do monte Gerizim, segundo o caráter dos habitantes do lugar, a Júpiter Hospitaleiro. 3. Dura e penosa foi para todos essa avalanche de mal. 4. O templo encheu-se de lascívias e das orgias dos gentios que se divertiam com meretrizes, unindo-se às mulheres nos átrios sagrados e introduzindo coisas ilegais. 5. O altar estava coberto de vítimas impuras, interditas pelas leis.


A QUEDA DE GERIZIM


A luta dos Macabeus contra os Selêucidas fez o Templo de Gerizim como vítima. Logo que assumiu o trono de Judá, o rei-sacerdote João Hyrcanus (neto do 1º Macabeu) sofreu várias derrotas para Antiocus VII Sidetes, rei dos Selêucidas. Hyrcanus chegou a evacuar Jerusalém (Flavius Josephus, Antiguidades dos Judeus 13.240) e pagar Antiocus para que a cidade sagrada não fosse destruída. O preço foi bem alto: 3000 talentos de ouro, retirados da tumba de Davi, e soldados Judeus para o exército de Antiocus (Flavius Josephus, Guerras dos Judeus I cap 2.5).


Quando soube da morte de Antiocus numa batalha contra os Persas em 113 a.C., o rei Judeu resolveu vingar-se das derrotas passadas e lançou um ataque feroz contra a Samaria. Os Selêucidas moveram 6000 soldados para a região, mas não foram suficientes. Após mais de 1 ano de batalha, os Selêucidas foram derrotados. Siquém foi destruída e seus habitantes feitos escravos.


O Templo de Gerizim foi incendiado e demolido por João Hyrcanus, junto com a vila ao seu redor, em 111-110 a.C. Diversos estudiosos interpretam a data festiva de 25/Tevet como uma comemoração da queda do Templo de Gerizim, uma vez que nada nos escritos do Talmude se associa com a "destruição total" profetizada, ou a proibição do lamento pelos mortos. Nos anos seguintes, Samaria foi lentamente repovoada, mas Siquém e a vila ao redor do Templo permaneceram vazias.


DEPOIS DA TORMENTA


O topo do monte Gerizim ficou 200 anos desabitado, ainda que permanecesse um local sagrado para os Samaritanos. Os primeiros a construir algo ali foram os Romanos, no início do séc. 2 d.C. Tratava-se de um Templo de Zeus, pouco ao norte das ruínas do antigo Templo e próximo a Flavia Neapolis, a vila reconstruída.


Já no período Bizantino (Roma agora era Cristã e tinha como capital Constantinopla, na Turquia), o imperador Zeno (476-491 d.C.) ordenou a construção da Igreja de Maria Theotokos [mãe-de-Deus] no topo da montanha, mais ou menos sobre onde ficava o Templo dos Samaritanos. A estrutura octogonal era característica da indicação de lugares sagrados.


Quando os Samaritanos começaram a se organizar contra a igreja em 529 d.C., o imperador Justiniano declarou o Samaritanismo ilegal e igreja foi transformada em uma espécie de fortaleza, de onde os Romanos lutaram contra os Samaritanos.


No início do séc. 8, com o aumento do poder do Islã, a igreja foi abandonada e a região de Canaã logo tomada. No séc. 16, Gerizim se tornou a maqam/tumba do Sheique Ghanem, um dos comandantes do famoso rei Salah al-Din, sultão do Egito e Síria. As atuais ruínas do local foram escavadas e amplamente estudadas pelo arqueólogo Yitzhak Magen.


João 4

[Jesus] Deixou a Judéia e voltou para a Galiléia. Ora, devia passar por Samaria [essa notação é curiosa, pois o caminho dos Judeus entre a Judéia e a Galiléia não passava por Samaria]. Chegou, pois, a uma localidade de Samaria chamada Sicar, junto das terras que Jacó dera a seu filho José. Ali havia o poço de Jacó. E Jesus, fatigado da viagem, sentou-se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Veio uma mulher de Samaria tirar água. Pediu-lhe Jesus: Dá-me de beber. (Pois os discípulos tinham ido à cidade comprar mantimentos.) Aquela Samaritana lhe disse: Sendo tu Judeu, como pedes de beber a mim, que sou Samaritana!... (Pois os Judeus não se comunicavam com os Samaritanos.) ... Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que és profeta! Nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar.


Curiosamente, o destino do Templo de Jerusalém espelhou seu irmão, quase 200 anos depois. O Templo, assim como a cidade sagrada, foram saqueados, incendiados e demolidos pelas legiões em 70 d.C., após um longo cerco, durante a 1ª guerra judaico-romana.


Uns 60 anos mais tarde, o imperador Hadriano empreendeu obras de revitalização e, no lugar do Templo de Jerusalém, ergueu um Templo de Vênus. Jerusalém foi reformada e recebeu o nome de Aelia Capitolina.


Após a ocupação Muçulmana, no séc. 7, o local do Templo foi transformando na mesquita de Al Aqsa, onde fica o santuário do Domo da Rocha, que permanece lá até hoje.


O Cristianismo começou com a pregação no Templo de Jerusalém, entre os Judeus, onde provavelmente Pedro, Estevão e Tiago Boanerges foram líderes. Outra vez de forma hilária, o NT traz 4 Evangelhos: 3 deles baseados no ensino de Pedro e Paulo (Lucas em especial se dedica a mostrar isso, no livro de Atos), e 1 deles (João) com grandes chances de ter emergido de uma comunidade Samaritana.


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ESCRITOS NUMA PEDRA DA MONTANHA


Bourgel J, The destruction of the Samaritan Temple by John Hyrcanus: a reconsideration. Journal of Biblical Literature, v. 135, n. 3, p. 505-523, 2016.


John Hyrcanus - wikipedia


JoLynne M, A Samaritan Temple to rival Jerusalem on Mount Gerizim, Studia Antiqua, v. 16, n. 1, p. 21-29, 2017.


Kirby P, http://www.earlyjewishwritings.com, 2013


Magen Y, The temple on Mount Gerizim, Israel Antiquities Authority.


Mount Gerizim - biblewalks.com


Mount Gerizim and the Samaritans, whc.unesco.org, abr/2012


Sauter M, The temple on Mount Gerizim - In the Bible and Archaeology, Bible History Daily, biblicalarchaeology.org, ago/2019.


Steve, Shmuel Browns on Mount Gerizim, israelseen.com, jul/2012.


Talmude online

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A lei dos heterodoxos - um estudo do Sermão da Montanha

Enrique Simonet Lombardo, 1892

Nem contarei quantas vezes já ouvi pessoas cobrando que os cristãos se comportem de modo “ortodoxo”, ou na melhor definição da palavra, “como se espera façam”. Naturalmente, isso vem da boca de cristãos e não cristãos.

Os cristãos votam a favor de constituírem um grupo coeso, com mesmas roupas, mesmo tom de voz, mesmas frases, mesmo repúdio a quem for de fora do grupo mais austero e santo do munto. Os “de fora” são vistos como necessitando de conversão, sem a qual não é possível passar sequer um tempo prazeroso em sua companhia. Na história de nossa religião, os “de fora” já foram romanos, gregos, pagãos (os europeus em geral), turcos, islâmicos, outras vertentes do cristianismo, feiticeiras, cientistas, protestantes, católicos, negros ou índios, etc. Hoje, os “de fora” parecem ser os Capitalistas, os de crenças afro, os que não toleram restrições comportamentais e os não-heterosexuais. Contra eles e/ou suas práticas entoam a maioria das vozes nos púlpitos. Evidentemente, num mundo onde mesmo outras vertentes do cristianismo podem ser enquadradas como “de fora”, a vida em sociedade requer bastante flexibilização dos relacionamentos. No fim, as igrejas tornam-se uma espécie de porto seguro dos cristãos, em especial os evangélicos.

O que pretendo aqui é falar um pouco sobre como Jesus - pretendido modelo dos cristãos - se relacionava com os judeus. Obviamente não há como negar que se tratava de outro tempo, outra realidade social: Jesus viveu entre um povo de valores orientais, numa província menor subjugada por Roma. As pessoas ali eram educadas mediante textos exaltando a proteção de Deus ao Seu povo e conviviam com a subordinação de seu Estado a Roma, subordinação de seu povo aos romanos, cobrança de impostos e problemas diante da rejeição de César como seu deus. As nações ao redor tinham mais tranqüilidade, nesse ponto. No tempo de Jesus, os “de fora” eram claramente os não-judeus, com especial ênfase no comportamento das classes mais politicamente poderosas. Para esses, seu status dependia da boa graças dos romanos. Mais especificamente, “os outros” não condizentes com a fé judaica eram samaritanos, gregos, romanos e coletores de impostos.

UM MESSIAS DESTRUIDOR

Estamos falando aqui daqueles que se misturavam nas sinagogas onde Jesus ensinava, que freqüentavam o Templo e a companhia de profetas andarilhos como João Batista. O rabi logo chama a atenção por dizer-lhes para serem diferentes. Diferentes não significa fora da congregação, mas diferentes da congregação. No Sermão da Montanha, tido como uma das maiores expressões da Cristandade e bem detalhado no Evangelho de Mateus, Jesus dá as diretrizes de como um cristão deve se comportar. É talvez nesse ponto ele inaugura o Cristianismo, por apresentar uma lei diferente da Lei de Moisés, diferente do que era lido nas sinagogas pelos Fariseus e Saduceus.

Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens. (Mateus 5.13)

Jesus incita o Seu grupo a serem pobres, humildes, misericordiosos, puros de coração, pacificadores, mais justos que os Fariseus e mestres da lei. Reparemos que, se estas fossem as práticas usuais das pessoas, Jesus não seria um rabi ao ensiná-las. Sua contravenção estava justamente em dizer aos “de dentro”, santos das sinagogas, que deviam ser diferentes… pobres, humildes, etc.

Jesus ia mais longe, ao dizer nas entrelinhas que a própria Lei de Moisés era mundana. Em sua fala, ele fez entender que não era suficiente cumprir a Lei, mas era preciso estar acima dela. Separar-se é permitido pela Lei, diz Ele, mas quem se separa faz mal a si e ao companheiro. Jurar é permitido, mas ninguém é digno de jurar. Vingar-se é permitido, mas perdoar é melhor. Jesus quer excelência, não apenas obedecedores.

Mas quando você der esmola, que a sua mão esquerda não saiba o que está fazendo a direita, de forma que você preste a sua ajuda em segredo. E seu Pai, que vê o que é feito em segredo, o recompensará. (Mateus 6.3,4)

Depois de quebrar a auto-santidade das pessoas e a força de sua Lei, nada mais natural que tirar a autoridade de seu julgamento. Jesus afirma então que os recompensados por Deus não são os recompensados pelos homens. Pensemos a respeito disso: os judeus tidos como excelentes, ele dizia que já tiveram seu galardão. Fariseus, saduceus, escribas, exemplos de integridade estariam de fora. O galardão de Deus seria para os que ninguém homenageava...

UM MESSIAS DIFÍCIL DE ENTENDER

Em certas partes de seu ensino, Jesus talvez deixasse os seguidores de cabelos em pé. Ao mesmo tempo em que afirmava a validade suprema da Lei de Moisés, afirmando que passariam Céus e Terra antes que qualquer vírgula fosse alterada (Mateus 5.17-19), Ele seguia com uma enorme série de “a lei diz isso, eu porém vos digo aquilo”. Seu pedido por excelência das pessoas não deixava de ser uma enorme alteração da Lei, no sentido em que substituía o requerido pelo texto pelo requerido por Quem fez o texto. A Jesus não importava o que estava escrito (apesar de Sua referência explícita ao texto da Lei), mas um sentido nas entrelinhas daquilo tudo.

Boa parte dos questionamentos sobre Jesus vinham dos discípulos de João e Fariseus atentos aos Seus descumprimentos de jejum (Mateus 9.14), higiene pessoal (Mateus 15.2), resguardo do sábado (Mateus 12.2) etc, como estava escrito na Lei. A eles, Jesus respondia que simplesmente as circunstâncias não convinham, pois o Noivo estava com eles, era o que vinha de dentro que contaminava o homem e Ele era senhor do sábado¹. Ou seja, Jesus dizia na cara de todos que a Lei não era absoluta, mas devia ser aplicada em algumas situações e não em outras².

FORA DA LEI

Os ensinamentos do Sermão da Montanha e o próprio Messias heterodoxo, às vezes paradoxal, sem dúvida foram criticados por todos atentos a uma representação literal da Lei, algo que fosse maior para os homens do que sua “boa intensão”. Por um lado, Jesus dizia que os seus seguidores deveriam ser conhecidos, que suas obras deviam ser “lâmpadas para serem vistas” (Mateus 5.14-16). Depois, ele emendava que as boas obras deveriam ser feitas em segredo (Mateus 6:1-4). Pelos frutos se conheceria a boa árvore (Mateus 7.16-18), mas nem adiantaria expulsar demônios e fazer milagres, se isso não fosse a vontade do Pai (Mateus 7.22,23). E olha que expulsar demônios era prova de estar a serviço de Deus (Mateus 12.25,26). Jesus também prescrevia o inferno para quem simplesmente chamasse a outro judeu de “louco”, afirmando que isso era equivalente a matar alguém (Mateus 5.21,22), no entanto Ele mesmo repetidamente chamava seus ouvintes de “loucos”, “insensatos”. Como conciliar uma lei escrita com um Messias assim?

O discurso desse Jesus fora-da-Lei entretanto não deixava de conquistar as multidões. Ele instruía a não reagir a ofensas (Mateus 5.38-41) e abandonar-se à providência, pois Deus cuidava até dos menores animais (Mateus 6.25-32). Muitos críticos dizem que ensinamentos como esses, embora fossem prontamente acolhidos pelos menos favorecidos entre os quais Jesus pregava (e somente por eles), ao invés de equilíbrar as relações entre as pessoas, induzem a um estado de vitimização. Em outras palavras, não levaria a nenhuma melhoria social nas relações com os romanos. Talvez crendo nisso, embora Jesus tenha chamado de “bem-aventurados” os pacificadores e os perseguidos (Mateus 5.9-12), os Cristãos de fato logo buscaram poder político e abandonaram seu status de humildade perante outras crenças…

Jesus também prescrevia que perdoassem e amassem os inimigos (Mateus 5.43-47), que orassem em secreto (Mateus 6.5-8). Ao mesmo tempo, Ele colocava que não haveria misericórdia para quem O negasse (Mateus 10.32,33). Dizia para que não ficassem repetindo orações como os pagãos, mas emendava com o ensino do Pai Nosso aos seus ouvintes (Mateus 6.7-15). Quem poderia deixar tudo e segui-Lo, largar terras, família (Mateus 10.37,38), não voltar nem para enterrar um parente? Aparentemente, foi o que muitos fizeram, gerando um Cristianismo que muito se importava com o que Jesus representava e nem tanto com o que Ele havia de fato ensinado.

O CRISTIANISMO DE JOÃO

O Sermão da Montanha, embora tomado como supremo ensinamento Cristão, está longe de ser um conjunto de diretrizes norteando a vida dos Cristãos. Embora exista toda uma valorização da Igreja Primitiva conforme descrito no livro de Atos dos Apóstolos (tido como uma continuação do Evangelho de Lucas), o Sermão não foi seguido fielmente no passado e talvez em nenhum momento da história cristã. Como dito antes, talvez segui-lo em substituição à Lei de Moisés seja impraticável.

Os próprios evangelistas discordam quanto a sua existência. O Evangelho de Mateus apresenta um discurso organizado e proferido sobre uma montanha na Galiléia, perto de Cafarnaum, para onde Jesus teria convocado seus seguidores. Marcos nem cita a existência desse sermão, embora partes dele apareçam claramente no texto, fora de ordem e de forma bem mais sucinta do que em Mateus. Lucas coloca Jesus chamando os seguidores a um local plano, o que faria um “Sermão da Planície”. Há uma quantidade menor de ensinamentos e parte do que está listado em Mateus aparece em outras partes do Evangelho de Lucas, fora de ordem. O Evangelho de João não cita o Sermão nem qualquer dos ensinamentos descritos nos outros evangelhos³. Apenas algumas sugestões são dadas em certas passagens.

Quadro comparativo do Sermão da Montanha, segundo apresentado no Evangelho de Mateus. As referências a João são suposições, sem uma estrutura do texto como nos demais livros.

Se o Sermão não se trata de um conjunto real de ensinamentos de Jesus, mas algo trazido do Velho Testamento ou da cultura judaica em que Jesus e os apóstolos estavam (ver João 7.3,4, condizente com o tema “Lâmpada para ser vista”), então o livro de João é o que temos de mais preciso sobre as falas do Senhor. Em João, não há um Messias fora-da-Lei nem tão heterodoxo, mas alguém que realizava milagres, que perdoava (João 8.3-11), que clamava ardentemente para ser honrado como a representação de Deus4, que pregava a humildade (João 13.1-17), que os homens amassem uns aos outros (João 15.12), que afirmava que estaria sempre com seus discípulos (João 14.21). Curiosamente, com exceção dessa última afirmação, as demais são exatamente o cerne das “Bem-aventuranças” descritas nos Sinópticos como a introdução do Sermão da Montanha ou da Planície.

Embora o Jesus de João seja radicalmente diferente do deus legalista de Moisés, especialmente por pregar mais a fé em Sua pessoa do que o seguimento de leis/ensinamentos, ele está mais próximo do Cristianismo conforme praticado do que os Sinópticos. Claro, os poucos ensinamentos desse Jesus em particular também não foram seguidos…

MUDANDO UMA VELHA HISTÓRIA

Temos de admitir que a ética do Sermão da Montanha, do nosso Jesus fora-da-Lei, é exatamente como é a ética do Antigo Testamento. Nada é dito no sermão sobre a incapacidade do homem para fazer o bem (conforme assegurado por Paulo); nem há nada sobre a necessidade de Jesus como mediador (conforme o Evangelho de João), ou sobre a redenção pelo Seu sangue (Mateus 26.28; Marcos 14.24; Lucas 22.20; João 6.53-57). O que está no Sermão da Montanha é o perfeccionismo, a salvação pela retidão moral do próprio homem. O Sermão da Montanha, assim, se coloca plenamente no contexto do Antigo Testamento e do Judaísmo.

A impossibilidade de cumprir os ensinamentos do Sermão talvez se pareça com o Cristianismo no sentido em que Paulo falaria, mais tarde, sobre uma Lei que não leva a salvação alguma, mas serve para escancarar o pecado de cada um (2ª Coríntios 3). Dessa forma, contudo, o Jesus dos ensinamentos e parábolas dos Sinópticos se tornaria o Jesus de João. Segundo alguns estudiosos, o Sermão que faz um Jesus fora-da-Lei de fato se parece muito a uma coletânea de instruções isoladas, propositalmente organizadas para servirem - muito curiosamente - como uma espécie de instrução pré-batismo.

Quem ensinaria com instruções que não podem ser cumpridas? Talvez a simplicidade do Jesus de João mostre porque, afinal, o Cristianismo nunca tenha podido ser rígido e exato como os mais fundamentalistas desejam.

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É LENDO QUE SE ENTENDE A FRASE

Bob Zunjic, Phylosophy, Sermon on the mount
Joachim Jeremias, 1961, The Sermon on the Mount
Gospel of John - wikipedia
Pré ou Pós Conceito: Porque os evangélicos são vistos como radicais?Kurt Aland, 1885, Gospel Parallels
Sermon on the Mount - Iron Chariots Wiki

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¹ A respeito do sábado, a Lei de Moisés mandava

Lembra-te do dia do sábado, para o santificar (Êxodo 20.8, Deuteronômio 5.12)

Fazer santo significa oferecer a Deus e, nesse caso excepcional, assim como em sua explicação a respeito de Davi, seguir a Jesus podia ser aceito como cumprimento da Lei.

² No entanto, é difícil pensar em boas aplicações de instruções para matar.

³ As discrepâncias de conteúdo entre o Evangelho de João e os de Mateus, Marcos e Lucas (sinópticos) são tão grandes que alguns estudiosos julgam impossível que ambas as versões sejam verdadeiras. Apesar disso, tanto João quanto os sinópticos são condizentes com os anos que se seguiram a Jesus. As variações nas ordens dos acontecimentos sugerem que o material todo se tratava originalmente de ensinos isolados, talvez escritos em tabuletas independentes, como no livro de Provérbios. Em algum momento, esse material teria sido juntado em um texto contínuo, na seqüência que cada autor achou mais conveniente. Alguns erros de datas (ex. o censo de Quirino sendo no tempo de Herodes) e divergências dos fatos (ex. sobre o nascimento de Jesus) são aceitáveis como inclusões próprias de cada autor.

As repetições de alguns ensinamentos reforçam a idéia de uma “arrumação” dos fatos. Mas isso não resolve a questão da diferença de conteúdo. Em todos os pontos onde uma ordem cronológica pode ser traçada (por exemplo com referências a colheita, estações do ano, etc), o Evangelho de João parece ser o mais correto. Também, onde as evidências históricas atuais podem ser confirmadas, o Evangelho de João mostra-se mais preciso que os demais. Enquanto nos Sinópticos os ensinos de Jesus aparecem como falas esparsas (estilo do Velho Testamento) ou parábolas (estilo grego), em João esses ensinamentos aparecem como discursos típicos das sinagogas. Apesar disso, trata-se de um livro mais pobre que os Sinópticos em fatos sobre Jesus, tratando essencialmente de Sua natureza divina.

4 Opinião pessoal: eu diria que a insistência do Jesus de João nesse tema lembra bastante as repetições de Javé sobre “não terás outros deuses” nos livros de Êxodo e Deuteronômio.